Património Imaterial
Rendas de Bilros de Peniche
A Renda de Bilros de Peniche é amplamente considerada o ex-libris do artesanato Penichense, um património cultural de referência incontornável e um ativo de substancial importância, reconhecido tanto em Portugal, como no estrangeiro.
Não poderemos falar das rendas de Peniche sem nos debruçarmos sobre as suas precursoras, a passamanaria e o «macramé», bem como das rendas de agulha que se confudiram e misturaram com as de bílros.
A origem da renda é na realidade desconhecida. Vários autores opinam que é antiquíssima, que já os egípcios usavam adornos idênticos a rendas e que nas últimas dinastias se executavam peças em que havia entrecrusamento de fios, que se enrolavam numa espécie de carretos, quem sabe se os precursores dos actuais bilros. Afirmam outros, ter a renda o seu berço na Grécia e passado ao Ocidente trazida pelos fenícios e cartagineses. Sabe-se no entanto que o «macramé», renda árabe muito em voga, lançada pelos «Hipies» ultimamente, tem uma tradição de séculos, senão de milénios. Muitos autores admitem que se expandiu por todos os países de dominação árabe, donde o provável nascimento da renda.
Renda é um trabalho de agulha ou de bilros produzido pelo cruzamento sucessivo de fios sem qualquer tecido como base. Dividi-se em três grupos principais: de bilros, de agulha e de croché.
A renda de bilros é feita sobre um desenho picado em cartão, o pique, sendo produto do entrecrusamento de fios enrolados em bilros. A de agulha, apenas com agulha de coser e linha, é a aplicação nas suas várias formas do ponto de recorte.
Os fios variavam conforme o desenho e o gosto da executante, sendo de realçar que se tornavam tanto mais famosas quanto mais fino era o fio. A título de curiosidade referimos que na Bélgica, no Século XVII, os fios eram tão finos que tinham de ser preparados em caves subterrâneas para que o calor não prejudicasse a sua preparação.
Embora se ignore a época em que se iniciou a produção de rendas, documentos há que nos levam a acreditar na sua existência antes do Séc. XV. Não só citações da senhora Sofia Davidoff sobre renda russa, decalcadas de uma crónica de 1252, traduzida para francês, referindo um «caftan» com guarnições de pontas tecidas com fio de ouro, mas também em 1364 no reinado de Carlos V já se usavam rendas em França; em 1390 num tratado de Bruges com a Inglaterra são mencionadas rendas; num documento com data de 1493 há provas da existência de rendas no ducado de Milão, sendo já em cartas de Luís XIV enumeradas as profissões agremiadas, entre elas a de rendilheira de bilros.
Aparece oficialmente o termo "renda" no inventário da irmã de Francisco I de França, Margarida de Valois, em 1545.
Em Portugal, segundo o Professor José Pedro Machado, já em 1209 se encontram documentos referindo texturas que podem ser identificadas como rendas. Crê-se no entanto que só no reinado de D. Sebastião em 1554 aparece a palavra «renda» citada pela primeira vez. Refere-se também a rendas um judeu português em discursos sobre comércio das duas Índias (1622).
A renda, crê-e ter surgido um pouco por toda a Europa na mesma época e teve o seu desenvolvimento máximo com o movimento renascentista, quando célebres pintores contribuiram com a sua arte para que a tenda atíngisse um alto grau de perfeição e beleza a partir do Século XVI.
Damas e cavalheiros usaram e abusaram, conforme parodiou Molière em algumas das suas obras. Entre nós também o poeta Chiado fez a sua crítica em "Prática de Compadres".
Usaram-se rendas no cano das botas, nos punhos, nos toucados, nos laços dos sapatos, bem como nas "fraises" que nem permitiam o movimento normal do pescoço.
O fausto das cortes de Catarina de Medicis, Henrique IV, Maria de Medicis, Luís XIV, entre outros, levou a considerar factores económicos. Tornava-se necessário reduzir custos de importação e assim se fundaram oficinas para ensinar e produzir as belas rendas para adorno de fidalgos.
A moda levada ao exagero acabou por provocar proibições em todos os países. Em Portugal, D. João III em éditos de 1535 ordenou "Que nenhuma pessoa se servisse de desfiado nem rede em alguns paramentos de cama, nem casa". Filipe II refere-se a rendas na sua pragmática relativa a trajes, impondo severas penas a quem as usasse. D. João V obrigando ao uso das rendas flamengas quase aniquilou a indústria portuguesa, o que deu origem a um comício de rendilheiras nortenhas que enviaram a Lisboa uma representante vilacondense, Joana Maria de Jesus. Conseguiu esta um alvará régio para uso das rendas portuguesas em lençóis, toalhas e outro bragal da casa, embora proibisse as rendas de uso pessoal.
Acontece no reinado de D. José a carta de alforria às rendas feitas no reino, cita a pragmática de 1751.
É patente o declínio da renda nos meados do Século XIX em todos os países.
Na renda de bilros, salvo algumas diferenças de país para país, foram usados idênticos utensílios: almofadas, bilros, alfinetes, piques e fios têxteis ou metálicos.
Os bilros, eram de madeira de pinho muitas vezes talhados pelas mãos do homem nas suas horas de lazer, usando-os as pessoas de maiores meios, de pau santo, osso e até de marfim. Nota curiosa a do aparecimento dos alfinetes em meados do séc. XVI quando em França foram concedidos aos fabricantes os respectivos estatutos.
Em Portugal, tudo leva a crer que também como os espanhóis se aprendeu com os mouros a arte das primitivas e grosseiras rendas.
Receberam influência dos padrões franceses e irlandeses atribuindo-se essa influência ao comércio marítimo e terrestre existente entre Portugal, a Inglaterra e a Flandres, aos Descobrimentos e determinada colonização do reino, por franceses e flamengos, depois da revogação do édito de Nantes em 1685 que resultou na expatriação dos protestantes franceses que, emigrando para vários países, levaram consigo as suas artes e ofícios contribuindo para a prosperidade das indústrias das terras onde se estabeleceram.
No nosso país é sobretudo nas povoações da beira-mar que se encontra o tão apreciado lavar, daí o adágio: "Onde há redes há rendas".
Os centros principais são Peniche e Vila do Conde embora noutros tempos em quase toda a costa portuguesa se produzissem rendas desde Caminha, Viana do Castelo, Póvoa de Varzim, Vila do Conde, Ovar, Aveiro, Peniche, Setúbal, Sines, Lagos a Silves e ainda no interior, Farminhão e Nisa, não esquecendo os Açores de onde se julga terem passado ao Brasil.
Em todos os centros rendíferos citados a renda é já uma recordação, restando os de Vila do Conde e de Peniche, embora em franca decadência.
Não há documentos que refiram o aparecimento da renda de bilros em Peniche, a não ser depoimentos de pessoas de idade avançada cujas narrativas testemunhavam terem-se já dedicado a fazer renda, suas mães e avós. Tudo leva a crer que é anterior ao Século XVIII.
Em 1865 o Sr. Pedro Cervantes de Carvalho Figueira, ilustre cidadão desta cidade, pessoa muito interessada pelos assuntos da sua terra, escreve: «da indústria e fabricação das rendas de Peniche na esperança de que seja lida com interesse por serem pouco conhecidos os usos e costumes da gente que nela se emprega e possa concorrer, talvez, para levantá-la da deplorável decadência e abatimento em que se acha».
As limitações da península não possibilitaram aos habitantes a riqueza agrícola obrigando-os a procurar no Mar e na renda de bilros os meios para a sua subsistência.
Calculava-e em 1862 um número aproximado de 962 rendilheiras que se dedicavam a fazer rendas do género «Honiton» e «Chantilly» em fio preto. Eram estas modestas artistas que com o produto do seu trabalho, muitas vezes à luz da candeia e do candeeiro a petróleo, ganhavam o sustento dos seus familiares em tempos de crise por falta de pescado.
Foi muito justo homenagear as rendilheiras atribuindo o seu nome a uma das ruas de Peniche a perpetuar a existência dum labor que corre o risco de dentro de alguns anos deixar de ser conhecido e assim prestar a devida honra a tantas artesãs que em tempos difíceis eram o sustentáculo de suas familias com o produto do seu trabalho, a renda de bilros.
Existiam em Peniche em 1865, segundo o Sr. Pedro Cervantes de Carvalho Figueira, oito oficinas particulares, onde as crianças a partir dos quatro anos de idade, começavam a bela aventura de aprendizagem. Eram iniciadas, depois de sabida a «troca», ou ponto, em geral na renda do ilhó, daí partindo para vôos mais altos.
As rendas de Peniche podem dividir-se em dois grandes grupos: as eruditas e as populares. As primeiras imitavam os padrões estrangeiros com os seus fundos de pontos vários contornados com um fio mais grosso, ao qual se dá o nome de «torçal», para as quais eram importados os fios de linho muito fino.
As populares ainda hoje conservam a sua característica de ligações por meio de «tranças» e «pastilhas». De nomes com sabor popular como: o casar, o limão, o peixe grosso, a rosa dobrada, a felicidade, etc., as rendas, algumas, necessitam para sua execução de muitas centenas de bilros. Concorreram a várias exposições onde obtiveram galardões pela sua beleza e perfeição. Em 1851 Londres; 1855 Paris; 1857 e 1861 Porto; 1872 Viena de Áustria; 1889 premiados com medalha de ouro em Paris; 1895 Belém no Brasil.
"Depois de comparadas às de Malines, cidade belga, pelo seu desenho e perfeição, passam a ser executadas à mercê da inspiração popular, praticamente sem direcção, por pessoas desprotegidas e sem estimulo para quem a renda era o ganha-pão e não uma obra de arte que por demorada na sua elaboração, entre outras causas, acaba por entrar em franco declínio."
A falta de cultura artística levou o governo do reino a fundar a Escola de Desenho Industrial Rainha Dona Maria Pia, mais tarde Escola de Artes e Ofícios, no ano de 1887. Foi esta escola instalada na Rua Direita n.º 69, numa casa pertencente ao Sr. João Batista Guisado da qual foi primeira directora a artista Sra. D. Maria Augusta Bordalo Pinheiro que, mercê dos ensinamentos ministrados, faz renascer a renda de bilros de uma forma mais artística e decorativa com a reconstituição dos padrões antigos e a aplicação de novas estilizações.
É digno de nota, cita-se, o relatório do inspector Fonseca Renevides, «no acto da inauguração da escola ser entregue, em nome do Governo, a cada trabalhadora da nova oficina, a quantia em que se achava empenhada com a sua rendeira, sendo o custo total da remissão, 52.370 réis». De notar também que às alunas era atribuído um salário e que recebiam parte do lucro das vendas.
Durante algumas décadas os orientadores da escola que passou a ter o curso especializado de renda e desenho, dão àquela uma protecção adequada, mantendo o equilíbrio.
Durante o primeiro quarto deste século existiam ainda algumas oficinas que, por razões óbvias, foram fechando.
Com a extinção por volta de 1956 do Curso de Rendas já pouco frequentado e mais tarde a extinção do Curso de Formação Feminina da Escola Industrial e Comercial é dado o golpe fatal, pois a bem montada oficina passa a um curso livre, sem frequência obrigatória, para alunas interessadas e crianças das Escolas Primárias, nos tempos livres.
Existiu também, durante aproximadamente quarenta anos, uma oficina de rendas na Casa de Trabalho das filhas dos pescadores, onde as executantes auferíam um salário simbólico. As orientadoras desta oficina eram todas diplomadas pela Escola Industrial Josefa de Óbidos, antiga Escola Raínha Dona Maria Pia e de lá saíram também belas rendas para o mercado interno e para o estrangeiro.
Dependente da Caixa de Previdência e Abono de Família dos Profissionais da Pesca e na continuação da anterior oficina, mantém-se ainda uma escola com a frequência aproximada de sessenta crianças em dois turnos.
No ano de 1975 foi criada, com algum entusiasmo, uma cooperativa de rendilheiras, "A Rendimar", com sede na Rua 13 de Infantaria n.º 33, que por falta de condições e organização acabou por fechar.
Com o intuito de não deixar morrer a renda, também Monsenhor Bastos levou acabo a criação de uma oficina que felizmente se mantém no Lar de Santa Maria, graças à boavontade de algumas Senhoras que dedicam parte do seu tempo àquela instituição. De lá têm saído também, para o País e para o estrangeiro, valiosas peças.
Os principais motivos do declínio deste artesanato foram por certo a má remuneração, a evolução do traje que fez diminuir o consumo, a competição da renda mecânica e de croché e por fim a procura de profissões mais remuneradas como o emprego em fábricasde conservas, armazéns de redes, indústria do frio, etc..
Havia, e ainda há, cinco intervenientes na indústria rendeira: a rendilheira, a rendeira, o vendedor, a cerzideira e a picadeira. O papel da última é muito importante dado que o desenho de renda só pode ser feito por pessoa especializada.
Não é fácil calcular o número de rendilheiras que se dedicam ainda exclusivamente a esta arte, tão pouco o número das que a ela se dedicam apenas nas suas horas vagas, tanto em Peniche como nas povoações do concelho, nomeadamente Geraldes, Atouguia da Baleia, São Berdardino e Serra de El-Rei.
Para distração ou aumento de rendimentos é certo haver uma procura de piques e outros acessórios para a execução de rendas. Estará a processar-se o ressurgir, o revigorar, para assegurar uma das mais belas manifestações de arte popular?
A Câmara Municipal de Peniche, promovendo um optimismo digno do maior apoio das gentes da Cidade e seu Concelho, criou em setembro de 1987 a Escola-Oficina de Rendas que faz parte do Museu vivo, satisfazendo o desejo de muitos interessados, preservando assim um artesanato centenário, que não pode perder-se no esquecimento dos mais velhos.
Em julho de 2016, inaugurou o seu Museu das Rendas de Bilros, que pretende conservar e divulgar uma arte que tem mais de 400 anos no concelho. O estudo, conservação, valorização e divulgação deste património cultural é o objetivo maior do espaço museológico implantado num concelho onde há 400 profissionais a trabalhar esta forma de arte.
Ao longo dos tempos, alguns poetas dedicaram também parte da sua inspiração às rendas e rendilheiras de Peniche. O poema que a seguir se transcreve é da autoria de António Maria de Oliveira:
RENDAS DE PENICHE
Oh! rendas feitas de luz!
Espuma branca do mar...
Qual o manto de Jesus,
Feitas com linha de Luz,
Feitas de argentão Luar!
Oh! rendas maravilhosas
Feitas de amor e ventura!
Perfumadas como as rosas...
Como estrelas fulgurosas
Feitas de sonho e ternura!
Oh! rendas que uma sereia
inventou, com mãos de fada...
P'ra tecer tão linda teia
Pediu ela à Lua cheia,
Pr'a lhe servir de almofada.
Pediu os bilros ao mar
Que lh'os deu, d'oiro e coral,
Duma beleza sem par!...
E a linda filha do mar
Fez a renda de vitral.
Fez a renda encantamento,
Cheia de luz e de amor;
Fez a renda sentimento,...
Qual asa do pensamento...
A um tempo - Riso e Dor!
E enquanto a renda fazia,
Pôs-se a Sereia a cantar...
Um cantar sem alegria...
Um cantar que antes parecia,
D'uma pessoa a chorar!
É que a sereia coitada,
Andava louca de amor;
Andava modificada...
Só porque fora beijada,
Por moreno pescador.
Nunca mais teve alegria!
Já nem seu meigo cantar
O pescador atraia.
Fora-se a doce magia
Da linda filha do mar.
Nunca mais secou o pranto
Nos seus olhos de azeviche!
Foi duma paixão, portanto,
Que nasceu a renda Encanto...
Linda renda de Peniche.
Quando a renda terminou,
Morreu a linda Sereia!
Num murmúrio, o mar levou
seu lindo corpo, E chorou
Lá no céu, a Lua cheia.
Nos seus passos, Leonor
Princesa que, diz a lenda
Veio ali carpir a dor
Dum lindo sonho de amor
Encantou a linda renda.
A renda feita de luz
Espuma branca do mar...
Qual o manto de Jesus,
Feito com linha de Luz,
Feita de argenteo Luar
António Maria de Oliveira
"Arte Popular em Portugal" (Rendaria) | Manuel Maria Calvet de Magalhães
"El Encaje em Espanha" | Carmen Baroja de Caro
"Indústria de Peniche" | Pedro Cervantes de Carvalho Figueira
"La Dentelle Ancienne" (Style et Tecnique) | Baron Alfred de Henneberg
"Peniche na História e na Lenda" | Mariano Calado
"Rendas e Bordados da Beira" | Maria Júlia Antunes
"Revista de Enografia (Rendas e Rendeiras do Ceará) | Alceu Maynard Araújo
"Tencnologia de Bordados e Rendas" | Manuel Maria Calvet de Magalhães