Património Material
Presépio Tradicional Português
Bem enraizado na tradição portuguesa, o Presépio está associado a um conjunto plurissecular de manifestações artísticas com uma identidade própria, que encontrou firme expressão em diversas “fórmulas” regionais. As personagens, ancoradas na terra ou enviadas do céu, o quotidiano, tanto rural como urbano, as artes e ofícios populares, a paisagem povoada de serras, grutas, rios, fontes e lagos, a multiplicidade dos animais, domésticos e selvagens, a própria montagem, com os seus sucessivos planos, tudo configura um sistema coerente, destinado a traduzir, em termos plásticos muito apelativos, a realidade cristã do Natal. E tudo obedece, de resto, a uma hierarquia temática, chamada a exaltar a presença de Deus-Menino e dos valores da família, da solidariedade, da atenção aos esquecidos, numa partilha, à escala cósmica, que une todos os seres ao redor desse recém-nascido que encarna o Futuro.
Tal como sucede noutros campos das artes tradicionais, a presepística - ou seja, a arte de montar os Presépios – tem vindo a perder nas últimas décadas os seus segredos, as suas técnicas e, até, parte substancial da sua simbologia. A sociedade de consumo procura apoderar-se da quadra natalícia e não se compadece com a dedicação de consagrar centenas ou milhares de horas à conceção de um Presépio com inúmeras figuras em cenografias que aliam a minúcia ao requinte. Assim, também esta prática artística vai caminhando para uma espécie de facilitismo redutor, com soluções improvisadas ou de “pronto-a-vestir”. Isto implica a degradação ou mesmo a perda de um património cultural muito interessante e que tem o especial poder de comover e encantar, independentemente das ideias e crenças de cada um.
Mas há também sinais, em diferentes pontos do país, de um esforço no sentido de manter viva a chama da tradição, tal como ela foi transmitida, de geração em geração, desde tempos antigos.
O PRESÉPIO EM PORTUGAL
O presépio português tem um indiscutível valor iconográfico, folclórico e artístico que o distingue da estatuária europeia da época pelo talento da composição, pela arte de modelação, pelo realismo e rigor da vida popular, nomeadamente a vida dos camponeses com todo o ambiente que os caracterizava, desde os animais às paisagens, a identificação das suas profissões, a família, os instrumentos populares, como a sanfona, gaita de foles, tambor, viola, castanholas.
A origem do presépio português executado em barro não é bem conhecida, no entanto, o seu registo é conhecido desde o século XVI, através do teatro vicentino.
Num documento, de 1618, redigido pela prioresa Madre Soror Maria Baptista, do Mosteiro do Salvador da Cidade de Lisboa, se diz que “… na nossa Igreja se fez o primeiro presépio pela festa do Natal, representando com figuras o que em tal mistério aconteceu naquele divino Presépio de Belém…”.
O painel pintado que acompanhava o presépio que todos os anos se fazia na Igreja, onde está representado Deus no trono, acompanhado de anjos músicos e a Nossa Senhora aos pés, teve origem numa visão de uma religiosa enquanto dormia.
Outras igrejas de Lisboa passaram, também, a fazer os seus presépios. A “Relação de Acontecimentos” destas religiosas dá-nos importante informação sobre a forma como era distribuída a tarefa de montagem e embelezamento do presépio.
Todos os anos era escolhida uma freira que desempenhava as funções de acolita. Assim, a montagem do presépio era uma demonstração de habilidade e imaginação, fazendo ressaltar, subtilmente, uma certa competitividade entre as envolvidas. No final do século XVII, as chamadas “Salas do Presépio”, destinadas à sua montagem permanente encenavam um retábulo vivo que tendia a recuperar a tradição medieval de Gil Vicente no Teatro de “Mistérios”.
No século XVII, a Igreja da Madre de Deus de Lisboa albergava um dos maiores núcleos executados em Portugal, cuja autoria foi atribuída a António Ferreira. Os presépios mais conhecidos são da autoria de Machado de Castro, nomeadamente, o da Sé de Lisboa com 500 figuras feitas em terracota e com um preparo em gesso para depois receber a pintura; e o Presépio da Basílica da Estrela. O melhor escultor de presépios foi António Ferreira (séc. XVIII).
Em 1558, há menção de uma encomenda da Irmandade dos Livreiros de Lisboa ao escultor Bastião d’Artiga, na Igreja de Santa Catarina do Monte Sinai. Tratava-se de um conjunto de figuras destinadas exclusivamente ao presépio. Embora estas encomendas estejam quase sempre associadas à Igreja, havia também algumas de particulares para usufruto próprio. Há referência de encomendas de D. João II, D. Manuel I, D. João III e mais tarde de D. João V.
O século XVII foi uma época de grande produção presepista, espalhando-se por todo o país. No século XVIII, o presépio barroco desenvolveu-se no reinado de D. João V, época em que se notabilizaram os grandes barristas Machado de Castro e António Ferreira.
Com o terramoto de 1755 desapareceram inúmeros presépios de igrejas e capelas de Lisboa. Noutros fogos que ocorreram, mais foram destruídos devido ao facto de os materiais de que eram compostos serem altamente inflamáveis e de a sua iluminação ser feita através de velas.
As esculturas eram feitas de terracota, gesso ou madeira e as suas dimensões variavam. Esta variedade de dimensões permitia, por um lado, o gosto pela representação, por outro, permitia muitas possibilidades do ponto de vista artístico. O realismo da vida popular, a graciosidade e a expressividade dos seus elementos revelavam bem o domínio da modelação do barro ao nível dos artistas europeus da época.
A policromia que simula ricos tecidos, técnica utilizada ainda no século XIX, é considerada uma das características principais das imagens que integram os presépios nacionais.
Um dos mais sumptuosos e preciosos presépios nacionais referenciado como obra-prima da escultura barroca em Portugal, encontrava-se no convento da Madre de Deus, que já em 1882 estaria desmontado. Esta obra monumental ocupava toda uma sala de 6,20 x 6,80 x 4,50 metros e testemunha um dos períodos mais altos da arte representativa portuguesa. Não se sabe ao certo o número de peças com diferentes tamanhos, de 15 cm a 70 cm, e que formam um dos primeiros exemplares de grandes presépios em terracota.
Nos Museus de Arte Sacra em Fátima e de Vila Viçosa encontram-se figurados a Adoração dos Magos, que ao contrário da tradição europeia, nomeadamente napolitana, foi pouco frequente. Privilegiava-se a Adoração dos Pastores.
São vários os presépios que estão em pequenos oratórios concentrando, apenas, a cena principal do presépio. Representam a Adoração, quer dos Pastores, quer dos Magos, junto de um espaço palaciano arruinado. Presépios idênticos encontram-se no Museu de Alpiarça/Casa-Museu dos Patudos, Madre de Deus e numa coleção particular de Lisboa. Mas não deixam de ter pequenas diferenças.
Concluindo, os presépios nacionais são dotados de uma identidade própria, de uma linguagem metafórica muito particularizada, tornando-os únicos mesmo num contexto nacional. Em cada Natividade nota-se a presença de elementos destinados à compreensão de um número restrito de indivíduos.