Teatro
EVOCAÇÃO DE DOIS ANTIGOS CINETEATROS DE LISBOA
Faremos hoje referência a dois antigos teatros/cineteatros de Lisboa – ou melhor: faremos referência a duas fachadas, pois é quase o que resta dos cinemas e teatros Ginásio e Odéon. Justifica-se a evocação, no ponto de vista artístico e arquitetónico, mas também no ponto de vista de cultura e estrutura urbana.
Trata-se, em ambos os casos, de exemplares salas de espetáculo que marcaram época, tanto pela atividade artística cultural e recreativa, como pela função urbana junto do público e da respetiva centralidade. Mas também importa evocar o que estava atrás das fachadas, ou seja, as salas de espetáculo propriamente ditas, com a sua estrutura arquitetónica adequada às exigências do público da época.
E mais: o facto de se manterem incólumes as fachadas, em ambos edifícios, e, no Odéon, se manter até o próprio interior, arruinado que esteja, mais justificará esta evocação conjunta, apesar das diferenças no historial.
Nesse sentido, tenha-se presente que em 1846, ano da inauguração do Teatro de Dona Maria II, abre portas ao público um pequeno recinto de espetáculos, chamada Theatro do Gymnasio, o qual, por sua vez herdou o nome, o espaço e a tradição de uma “companhia de cavalinhos”, como então se designavam os espetáculos circenses, chamado Novo Gymnasio Lisbonense.
Júlio César Machado assistiu à inauguração, ocorrida em 17 de maio daquele ano, e assim descreveu o teatro: “era um teatrinho de cartas, sem proporções, sem espaço, sem comodidades, mas alegre e simpático (…) teatrinho de ocasião que parecia sair de uma habilidade de berlique e berloques”…! (cit. no “Diccionario do Teatro Português”, 1908, pág. 343).
Tal como noutro lado escrevemos, este Teatro Gymnasio era o resultado de uma parceria, a Sociedade da Igualdade Teatral, que reuniu o fiscal do Real Teatro de São Carlos, de seu nome Manuel Machado, um construtor civil, Manuel da Silva Reis, que terá conduzido as obras, e curiosamente, dois tipógrafos, João José de Mora, e Francisco Alves Taborda.
Ora este, outro não é do que o grande ator Taborda (1824-1911), que viria a fazer uma longa e brilhante carreira, grande parte dela no Ginásio. Marcou a época. E basta lembrar que, por esse país fora, ainda subsistem alguns dos diversos Teatro(s) Taborda que se construíram a partir de finais do século XIX, como já aqui temos referido e analisado.
Mas voltemos aos Teatros Ginásio de Lisboa. Em 1852, inaugura-se, no mesmo local, um terceiro Teatro do Gymnasio, de maiores dimensões e já valorizado pela própria evolução urbana: o Chiado ganhava relevo, e este terceiro Teatro Ginásio absorveu edifícios contíguos. E valorizou a exploração no ponto de vista teatral e cultural.
Não estaria isolado muitos anos nessa função: o Teatro da Trindade é de 1867, e nele e à saída dele se desenvolve a cena crucial de “Os Maias”, o que é significativo. Recorde-se aliás que a primeira edição é de 1888 e, no capítulo XVI são referidos “os bancos de palhinha”, “os pilares ligeiros que sustêm a galeria, refletidos pelo espelhos” ou “o gaz (que) sufocava, vibrando cruamente naquela sala clara, de um tom demasiado de canário, raiada de reflexos de espelhos”…
Em qualquer caso, é no Ginásio que se estreiam peças de autores que marcaram não só a vida cultural como a vida política da época. Lembremos que António Ennes, Ministro e mais tarde Comissário Régio de Moçambique durante as campanhas de Mouzinho, estreou no Ginásio os seus dramas ultrarromânticos, de grande sucesso na época e, não obstante a evolução, ainda hoje interessantes no ponto de vista dos conflitos e personagens.
Este terceiro Teatro Ginásio ardeu em 1921. Mas em 1927 inaugura-se o quarto Teatro Ginásio, exatamente no mesmo local, então mais do que antes valorizado no ponto de vista urbano. Trata-se agora de um projeto de João Antunes, marcado por certo “revivalismo árabe” na arquitetura de interiores, ainda dominada pela velha estrutura de balcão e camarotes. Em qualquer caso, foi um teatro de repercussão cultural e artística. Nele passaram grandes nomes, como Amélia Rey Colaço, Palmira Bastos, Ilda Stichini, Henrique de Albuquerque…(cfr. Duarte Ivo Cruz “Teatros de Portugal” ed. INAPA pág. 33).
E nele tiveram inicio as atividades da “Casa da Comédia” ligada desde a origem ao Centro Nacional de Cultura. Efetivamente, foi no Ginásio que em 1946 se estreou ”A Caixa de Pandora”, peça de Fernando Amado, que inaugurou os trabalhos da “Casa da Comédia”, numa ação teatral-cultural diretamente relacionada com as origens do CNC. E bastaria ver os nomes que integraram esse espetáculo: além do próprio Fernando Amado, registe-se a intervenção de Afonso Botelho, Gastão da Cunha Ferreira, Ruy Cynatti, António Dacosta, nomes que mantiveram atividade no Centro por largas dezenas de anos. Em 1962, “A Casa da Comédia” mudou-se para uma sala própria, por iniciativa de Fernando Amado e de João Osório de Castro.
José Manuel Fernandes evoca neste quarto Teatro Ginásio um salão de artistas e camarins e destaca “uma fantástica maquinaria que permitiria à plateia, dividida em sucessivas placas (de betão?) móveis e transversais, rodar sobre si mesma e inverter as cadeiras fixas para se transformar em lisa sala de baile!” (in “Cinemas de Portugal” ed. INAPA 1995 pag. 40).
E vejamos agora o Cinema (e Teatro) Odéon, inaugurado em 1927, hoje transformado numa aparente ruina, mas que ainda marca a área urbana, sobretudo através das imponentes galerias que terão sido acrescentadas à fachada cerca de 1931, juntamente com um insólito balcão lateral que pouco se adaptava ao cinema. Reforçaram entretanto uma perspetiva harmoniosa de art deco, sublinhando o ambiente epocal da sala. Apesar de ter sido construído para a exploração cinematográfica, manteve a estrutura tradicional de palco e camarins, tendo acolhido espetáculos teatrais. Recordo ter assistido, na transição dos anos 40/50, a um espetáculo de Eurico Lisboa Filho, de quem mais tarde fui aluno -ouvinte de História da Literatura Dramática no então Conservatório Nacional, depois (até hoje) Escola Superior de Teatro e Cinema de Lisboa.
Margarida Acciaiuoli evoca com desenvolvimento o debate e impacto que o Odéon provocou na época: “embora se reconhecesse que o Cinema Odéon tinha também uma orquestra «excelente» e que os seus «fauteuils» eram «aceitáveis», criticava-se violentamente a traça do recinto e a sua decoração de «discutível gosto» ” (in “Os Cinemas de Lisboa” Bizâcio Ed. -2012 pág. 117). Funcionou como cinema até finais do século passado. Mas ainda ao longo dos anos 60, mercê de uma gestão articulada com uma distribuidora, alcançou enormes sucessos na projeção de filmes espanhóis.
E veja-se agora a implantação urbana de Lisboa no que respeita a espetáculos. A verdade é que o eixo urbano constituído pelo Chiado, pela Avenida da Liberdade e zonas circundantes mantem uma tradição de área de espetáculos, mesmo considerando as transformações redutoras no Parque Mayer e o desaparecimento da atividade cinematográfica do Condes, herdeiro de uma sucessão de teatros e cinemas que vinham do século XVIII, com mais tarde o Olimpia, o Eden e o Cinema Restauradores, para já não falar do Teatro do Príncipe Real, esse de finais do século XIX e que ainda vi a funcionar nos anos 50 então denominado Teatro Apolo.
Mas subsistem em atividade o São Jorge, do Arquiteto Fernando Silva (1943 – Prémio Valmor), o Politeama, do Arquiteto Ventura Terra (1913), o Coliseu dos Recreios, dos Arquitetos Goullar e Manuel Garcia Júnior (1890) e o Teatro do Palácio Foz. Dir-se-á que são ou eram edifícios, salas e explorações de exigências culturais completamente diferentes. Em qualquer caso, o certo que em matéria de espetáculos, a zona urbana continua relevante, mas mudou. E já não falamos do admirável pórtico arte nova do velho Animatógrafo do Rossio!