Teatro
Teatros da Guarda: combate à interioridade
Evocamos aqui o Teatro da Guarda, no contexto de uma experiência de gestão em curso, que transforma o Teatro Municipal em cooperativa de interesse público, com maioria de capital da Câmara, mas numa acrescida autonomia empresarial e, em qualquer caso, plausivelmente artística. O Teatro passará a denominar-se muito simplesmente Teatro da Guarda, deixando então cair a sigla de TMG, que, além do mais, se relacionava com o sistema europeu de fixação de hora…
Importa então recordar que o Teatro da Guarda foi inaugurado em 2005 num projeto do arquiteto Carlos Veloso. Não obstante a modernidade do projeto, a implantação não desmerece da tradição urbana envolvente. É um edifício arquitetonicamente muito moderno, decerto: mas a própria estrutura em dois corpos desnivelados integra-se bem, independentemente da traça arquitetónica em si, na tradição urbana, e isto não obstante a proximidade do centro histórico e designadamente da própria Sé, que, como sabemos, tem origem no século XIV.
E citamos a propósito Armando Rabaça, que, em texto publicado pela Ordem dos Arquitetos, assinala a estrutura do edifício do novo Teatro: «distribuído em dois corpos independentes, desenvolve-se para o interior do terreno disponível incorporando o espaço exterior como prolongamento do espaço público e tirando partido da topografia para atenuar a presença da construção». (in “Habitar Portugal 2003/2005” - ed. OA - 2006, pág. 94).
Há registo de pelo menos duas salas de espetáculo anteriores ao Teatro da Guarda. Desde logo, um chamado Teatro dos Bombeiros Voluntários, inaugurado em 1885.
Sousa Bastos, no sempre relevante “Diccionario do Theatro Português” (1908) refere Francisco da Silva Ribeiro como autor do projeto e dá uma dimensão da sala: «duas ordens de camarotes, com 15 em cada ordem, 29 fauteuils, 96 lugares de superior, 100 de galeria e ainda fauteuils suplementares».
Ilustra a referência com fotografia que documenta um edifício sem qualquer interesse arquitetónico E ainda acrescenta que «o Teatro foi inaugurado pela companhia do ator Taveira, que representou o drama Kean em 1885» (pb. cit. 1908 – pág. 323).
Terá havido cinema na Guarda pelo menos a partir de 1909. Mas de concreto, assinala-se a criação, em 1944, de uma denominada Sociedade Cineteatro da Guarda, que encomenda ao arquiteto Manuel Lima de Magalhães o projeto de um Cine-Teatro, projetado em 1948 e inaugurado em 1953. Este estaria em atividade até 1989, «sóbrio e frio» escreveu José Manuel Fernandes (in “Cinemas de Portugal” – ed. INAPA 1995 – pág.124).
Recorda Maria do Rosário Salema de Carvalho que «a fachada principal (…) divide-se em três panos, destacando-se o central, curvo, com entrada através de três vãos retangulares no piso térreo. Correspondem-lhe janelas nos registos seguintes, terminando este volume com o lettering CINE-TEATRO a anteceder a platibanda escalonada. Os planos laterais são também marcados pelo reticulado dos vãos, verticais, a enquadrar a zona central e horizontais a ocupar o restante espaço». (in “Portugal Património” vol. IV, ed. Circulo de Leitores 2007 – pág. 327).
Ora bem: o atual Teatro impõe-se pala qualidade e modernidade arquitetónica. O edifício, imponente na sua fachada plana, não obstante, insista-se, a exuberante modernidade, inscreve-se, pela utilização do granito, numa coerência arquitetónica tradicional da cidade, tal como aliás o próprio arquiteto Carlos Veloso refere (cfr.“Habitar Portugal” cit., pág. 120).
O Teatro tem três salas, sendo uma delas vocacionada para o café-concerto. As duas salas de teatro propriamente dito comportam respetivamente 626 e 164 espetadores, o que desde logo vocaciona o edifício para uma abrangência de público que justificou aliás a inclusão numa rede com Castela-Leão que abrangia para cima de 20 salas de espetáculo. Existe ainda uma galeria de exposições. E entre os dois corpos do edifício implanta-se uma espécie de praça que muito valoriza o conjunto urbano.
Em suma, está-se perante um Teatro que afasta ainda mais do que antes o estigma da interioridade no espetáculo teatral-cultural. Espera-se que a nova qualificação societária mais reforce a atividade. Hoje já não se pode contrapor, para estes efeitos, a maior ou menor interioridade.
Já não se justifica o lamento da cantiga de amigo atribuída a D. Sancho I: “Muito me tarda o meu amigo na Guarda”!
Para terminar esta evocação, citamos uma passagem do texto de Guilherme d Oliveira Martins intitulado “Teatros: Lugares de Vida” que prefacia um livro de minha autoria, “Teatros em Portugal - Espaços e Arquitetura” coeditado pelo Centro Nacional de Cultura, donde retirei e atualizei muitos elementos para o presente artigo.
Escreveu então Guilherme d Oliveira Martins no Prefácio referido:
«Os teatros são lugares de vida. Foram-no desde sempre. E se o teatro como arte e atividade humana permite, desde a Antiguidade, um melhor conhecimento da pessoa humana (ou não fosse a palavra “pessoa” derivada do grego “prosopon”, que significa personagem dramática no sentido de máscara teatral), a verdade é que estamos perante um domínio em que a memória e o património, a história e a cultura, o ser e a representação, a liberdade e a necessidade se ligam intimamente. Esses lugares de vida permitem, deste modo, compreender melhor a essência do património cultural e da sua importância fundamental». (ed. Media Livros e CNC – 2008 - pág.10).