Moinhos do Alto Minho
Do que falamos, quando falamos de moinhos?
João Alpuim Botelho
(Publicado inicialmente em: MEA LIBRA, Revista de Cultura, III série, nº 3, Viana do Castelo, Centro Cultural do Alto Minho, outubro 1999)
Diferenças entre moinhos de água e azenhas
Desenho: João Alpuim Botelho
O processo de aproveitamento das energias naturais, geradas pelos ventos ou pelas águas, como força motriz do processo de trituração dos cereais tem um papel fundamental e estruturante na vida das comunidades rurais.
Basicamente o processo de moagem é feito pela fricção do cereal em grão entre duas superfícies duras, as mós, que assim o desfazem e transformam em farinha. O moinho introduz neste processo, em substituição da força muscular, o aproveitamento de energias naturais, através de um mecanismo que capta e transmite essa energia às mós, imprimindo-lhes um movimento giratório contínuo.
Este processo, embora tenha aparentemente poucas diferenças, de facto toma formas muito próprias, para uma melhor adaptação das condições naturais às necessidades sócio-económicas das populações porque se, por um lado, permite a libertação da mão de obra deste trabalho demorado e repetitivo, por outro, obriga à constituição de relações - dentro da própria comunidade para a construção, manutenção e utilização do complexo maquinismo do moinho.
O termo moinho abrange pois realidades muito diversas, que se vão traduzir não só na forma de energia utilizada, eólica ou hidráulica - conforme o recurso mais disponível, mas também nas formas como essa energia é utilizada, que se reflectem na arquitetura e no regime de propriedade e de utilização que são adotados.
Quando nos referimos ao Alto Minho encontramos principalmente moinhos de água, se bem que não possamos esquecer a presença, mais pontual, dos de vento, nomeadamente de velas trapezoidais de madeira, da faixa litoral de Esposende e Viana.
Mas mais do que os ventos, são as águas, fruto dos altos níveis de precipitação e de um relevo acidentado que, criando uma rede hidrográfica vasta mas de pequenas dimensões, que vão fornecer energia aos moinhos.
É nestes rios e ribeiros, que por vezes não passam de linhas de água sazonais, que se vão instalando os moinhos, procurando conjugar a proximidade entre os locais de produção, de transformação e de consumo do cereal, mas em que, conforme a maior ou menor facilidade de acesso a cada um destes fatores: matéria prima (cereal), energia (cursos de água) e consumidores (povoação), vai escolhendo os seus locais e tomando formas diferentes.
As diferentes formas que pode tomar o moinho de água podem enquadrar-se em dois grandes tipos:
- de roda vertical, exterior ao edifício, geralmente sitiados em zonas de planície,
- de roda horizontal (rodízio), no interior do edifício, que são preferidos nas zonas de montanha.
Estas duas formas materializam-se em edifícios de tipologia muito diferente estão também enquadradas por realidades muito diferentes.
As azenhas de roda exterior vertical são edifícios de grandes dimensões, de boa alvenaria, que podem mesmo ser rebocados e caiadas com telhado de duas águas. Localizam-se junto às margens dos rios de maior caudal, no seu curso final, onde o terreno é mais plano.
O aproveitamento da água não é simples e obedece a alguns requisitos, que encaminham e domesticam a sua força bruta.
Assim a água do rio é represada por um açude de pedra solta, que não só a armazena como permite a sua condução para uma comporta (que pode ser uma pequena levada ou uma simples abertura) que a dirige de forma a bater nas pás da roda no ponto exato em que o impacto vai obrigar a roda a mover-se e, com ela, todo o mecanismo que transmite essa rotação à mó. E importante que o impacto da água nas pás seja feito no ponto exato que empurra a roda e a obriga a girar, sendo necessário dosear a quantidade de água, uma vez que, se esta for excessiva, e o ponto de impacto ultrapassado, ou mesmo submerso, a roda deixa de girar, pelo que o açude e a comporta têm também uma função doseadora do caudal.
As Azenhas podem ainda dividir-se em azenhas de propulsão inferior, quando a roda mergulha na corrente, cuja força empurra as penas e faz mover a roda, ou azenha de copos, quando a água é transportada por uma levada para o cimo da roda, sendo “despejada” de forma a que seja represada em “copos” formados pelas penas, juntando assim duas forças: a do impacto do jato e a do peso da própria água.
É comum que os açudes sejam rendibilizados, servindo azenhas nas duas margens, e que estas azenhas tenham, associadas à moagem, engenhos de linho ou serrações de madeira, alimentadas por comportas paralelas ou pelas sobras das águas da moagem. Pode também haver mais de uma roda, principalmente - no edifício da moagem.
É também muito normal a existência de pontes ou pequenas pontelhas, ou simplesmente passagens do rio a vau junto aos moinhos.
Podemos assim estar em presença de verdadeiros complexos semi-industriais, com lógica comercial muito assumida pela oferta variada que vai desde a moagem de cereais, serração de madeiras e maceração do linho, à própria travessia do rio, que abre o mercado à margem oposta, para além de transformar em pontos de passagem obrigatória no quotidiano da comunidade, combatendo assim o isolamento causado pelo afastamento do centro das povoações.
Estas azenhas são propriedade privada, podendo o proprietário ser o moleiro ou a exploração ser feita por um sistema de arrendamento, O pagamento da moagem é feito por uma maquia, ou seja, por uma parte do cereal levado para moer, e o moleiro vive do consumo e comercialização desta maquia.
Quando falamos dos moinhos roda horizontal ou de rodízio, falamos de edifícios muito mais pequenos, em que por vezes mal cabe uma pessoa ao lado da moenda e de construção um aparelho muito mais rude, cobertos por um telhado de uma só água.
A pequena dimensão destes moinhos está muito ligada aos condicionalismos dos locais onde se implantam, frequentemente em zonas de relevo acentuado, em que as águas correm em pequenos cursos com grandes desníveis, onde não só é difícil encontrar terrenos disponíveis para grandes construções, mas onde há também um espírito de grande economia que reduz a construção ao espaço estritamente necessário para a sua utilização.
Também a forma de utilização e propriedade destes pequenos moinhos não requer mais espaço, uma vez que não são propriedade privada de um só dono, antes são construções coletivas - não confundir com comunitárias, uma vez que cada moinho é de um conjunto determinado de proprietários e não de toda a comunidade, em que não existe um moleiro profissional, mas em que cada proprietário faz a moagem do seu próprio cereal.
Assim, em cada utilização do moinho o proprietário leva a quantidade de grão que prevê moer nesse número de horas e, quando termina o seu período de tempo, a sua vez, recolhe a farinha moída e o grão que não foi moído, deixando o espaço livre para o próximo utilizador, uma vez que não há espaço para qualquer armazenamento. Da mesma forma não há necessidade de ter uma grande capacidade de resposta, uma vez que a utilização é personalizada, pelo que a existência de várias mós seria desnecessária, além de que a própria escassez de água impossibilitaria, de uma maneira geral, essa dupla utilização.
A própria posse do moinho é medida em termos do número de horas de utilização, pelo que um proprietário diz que tem um determinado número de hhoras de utilização e não que é dono de uma determinada percentagem do moinho. De facto o direito de posse resume-se ao direito de o utilizar e à obrigação de o manter.
A manutenção destes moinhos é pois uma obrigação inerente ao direito de propriedade. Os trabalhos relacionados com a picagem das mós, substituição das peças estragadas, ou a recuperação do edifício, telhado e também da levada que conduz a água que faz mover o moinho e até dos caminhos e calçadas de acesso, têm de ser feitos por todos, criando laços comunitários muito fortes que, se forem quebrados, podem inviabilizar o funcionamento do moinho por não haver capacidade de trabalho e/ou financeira para proceder às reparações.
A levada é um canal que desvia a água do seu leito e a conduz até ao moinho, de onde, depois de fazer mover o rodízio, regressa ao seu curso normal ou vai alimentar outros moinhos ou ainda seguir para o regadio dos campos. Se as condições do terreno forem favoráveis, a levada pode fazer esta separação a uma curta distância do moinho e a sua função é fazer o encaminhamento da água, e também criar um desnível que faça a água cair com um grande impacto sobre as penas do rodízio obrigando-o a girar.
No entanto as condições do terreno podem obrigar a que estas levadas vão buscar a água a grande distância por vezes centenas de metros, conduzindo-a por terrenos pedregosos e irregulares, em situações que por vezes necessitam de grande labor e soluções imaginativas para vencer desníveis ou a rudeza do terreno, até porque, sendo a água um bem precioso, tem de ser reaproveitada depois de ter feito mover o moinho, para rega ou para mover outros ou pelo menos de ser devolvida ao seu leito natural até para não tornar os terrenos em lameiros.
A levada é pois um elemento fundamental do funcionamento do moinho e da vida comunitária, já que o uso da água se toma precioso, principalmente no verão, quando escasseia e se toma mais necessária para a rega, tendo então de ser muito bem doseada, chegando mesmo a ser interdita a sua utilização entre o S. Pedro e o S. Miguel (de 29 de junho a 29 de setembro).
Também os caminhos de acesso a estes moinhos são tratados pelos proprietários, a sua limpeza, a manutenção e construção de calçadas que permitem o acesso fácil, até porque o moinho mói dia e noite e muitas vezes as mudanças de turno ocorrem a meio da noite e os percursos podem ser perigosos e pôr saúde em risco.
Esta manutenção dos caminhos é também muito importante no acesso a campos de cultivo ou bouças mais afastadas e para a circulação mais fácil entre lugares mais isolados. A medida que os moinhos vão sendo abandonados os caminhos deixam de ser transitáveis por falta de manutenção e porque ao perderam importância face às novas estradas e ao uso mais comum do automóvel, que prefere uma distância mais longa por um caminho menos acidentado, esta rede capilar de pequenos caminhos foi desaparecendo, impossibilitando pequenos complementos desta economia tão frágil, e que muitas vezes levou mesmo ao abandono de campos e habitações em lugares mais afastados, e quebrou laços e solidariedades respeitadas durante séculos.
Por serem construções menos elaboradas e com um mecanismo motor mais simples em que a rotação do rodízio é transmitida directamente à mó andadeira, estes moinhos são muito mais numerosos e constituem parte importante das economias familiares, uma vez que a escassez de terrenos cultiváveis em zonas de montanha tomaria mais penosa a dispensa de uma parte da colheita para o pagamento da maquia.
As azenhas de roda vertical, pelo contrário, estando localizadas em zonas de planície, vão-se desenvolvendo de forma a responder a requisitos bem diferentes.
Por um lado serve uma zona com mais e melhor terreno cultivável, o que lhe dá a possibilidade de ter um maior excedente para pagar a maquia ao moleiro, o que torna possível e necessária uma construção mais cuidada e com um mecanismo mais potente, com grande roda a redirecionar o seu movimento vertical num movimento horizontal e desdobrar o seu movimento, através de um sistema semelhante ao de rodas dentadas (a entrosga e o carrinho) que transformam cada volta vertical da roda da azenha em seis voltas horizontais da mó, imprimindo-lhe maior potência e velocidade, tão necessárias a quem tem compromissos a cumprir com clientes apressados. Também o facto de estarmos a falar de terrenos planos tornaria dificil a criação do desnível necessário para o jato de água fazer mover o rodízio.
Dentro da tipologia dos moinhos de roda horizontal ou rodízio, podemos também falar de moinhos de maré. Neste caso é o desnível entre a maré-alta e a maré baixa que é utilizado para criar a energia que faz mover os moinhos.
Para isso algumas condições naturais têm de se verificar: a proximidade da costa, onde as marés se fazem sentir e a existência de um terreno que a maré-alta alaga (a que se chama caldeira).
O mecanismo funciona da seguinte forma: quando a maré está no seu ponto máximo e a caldeira completamente cheia, é fechada uma comporta que impede a água de sair. Espera-se então que a maré baixe um pouco, criando um desnível entre a água que está no interior da caldeira e a que está no exterior. Então é aberto um canal que dirige um jato de água para um rodízio, que funciona sem diferenças significativas com os outros moinhos, esvaziando progressivamente a caldeira. Quando o nível das águas do exterior e do interior se equilibram, o moinho pára. Nessa altura volta a abrir-se a comporta, esperando que a nova maré encha a caldeira, repetindo todo o processo.
Em Viana do Castelo situa-se o moinho de maré mais a Norte do nosso país, conhecido localmente como Azenhas de D. Prior, que está atualmente a ser recuperado para integrar o parque da cidade.
Estamos pois em presença de duas realidades bastante diferentes, de duas formas de resolver o problema da farinação do cereal, de acordo com as possibilidades da sua implantação: Por um lado, uma agricultura menos produtiva e uma economia mais débil, que não produz o suficiente para a existência de excedentes que possam pagar um serviço a terceiros e que, numa solução própria de economias de auto-subsistência, recorre com frequência a formas de trabalho comunitário para resolver os problemas, sem necessidade de pagamento.
Por outro lado, uma economia mais aberta, em que já há excedentes de produção suficientes para a contratação de um serviço. Ainda não é um serviço pago com dinheiro, mas, de certa forma, funciona dentro da lógica de mercado uma vez que o moleiro poderá vender uma parte das maquias.
Esta lógica de funcionamento possibilita e convida mesmo um investimento em termos quantitativos e qualitativos, uma vez que quanto maior for a produção maior será o valor obtido pelas maquias e quantas mais forem as formas de alargar as possibilidades de negócio que a domesticação da força das águas possibilita, como é o caso dos engenhos de linho ou de serração ou a instalação de mais rodas e mós no moinho, maior será a sua rendibilização e receita.
Apesar de serem diferentes nas formas encontradas, estes moinhos têm sempre em comum o grande respeito e a perfeita adequação com o meio em que estão inseridos, sabendo usufruir das possibilidades que o meio natural oferece e vencendo as dificuldades pela procura inteligente de respostas com soluções eficazes e duradouras.
Por todas estas razões é justo enquadrar estes edifícios, no seu conjunto e diversidade, na categoria que a Carta de Veneza consagra de Pequenos Monumentos, como verdadeiros representantes de modos de vida rurais seculares de perfeita harmonia com o seu meio.
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