O terceiro e último debate do Ciclo de Debates sobre o Conceito Estratégico de Defesa Nacional (CEDN) do CD-IEEI, que se debruçou sobre a questão da “Segurança Humana: Garantir a Paz e Proteger os Direitos Humanos”, aconteceu no passado dia 9 de dezembro, pelas 18h30, no Centro Nacional de Cultura (CNC). O debate contou com as intervenções de Ana Gomes, Ana Santos Pinto e Fernando Jorge Cardoso, e moderação de Álvaro Vasconcelos.
Álvaro Vasconcelos dá início à sessão contextualizando a questão da segurança humana na cena internacional. Sublinha a existência de conceitos diversos de segurança humana e faz ainda a ressalva que, apesar de existir o risco, dentro do debate da segurança humana, da híper securitização, esta abordagem é vastamente distinta da ideia da segurança humana que procura colocar os direitos humanos no centro das preocupações de segurança. É neste sentido que interessa debater, diz, de que forma o CEDN deve integrar o conceito de segurança humana.
Ana Santos Pinto, que inicia a sua intervenção por relembrar o inestimável contributo do IEEI para os estudos de relações internacionais em Portugal e para si própria enquanto antiga investigadora do Instituto, traz para o debate a questão da operacionalização do conceito de segurança humana, e a questão do trabalho de campo nas missões de manutenção da paz e de garantia pelos direitos humanos.
De facto, explica, o conceito clássico de segurança humana, adotado pela ONU, tem um problema fundamental de ser impossível de operacionalizar – função sem a qual carece de corpo ou capacidade de intervenção, limitando-se a uma estrutura analista. O conceito de segurança humana, em termos generalistas, é um termo consensual, mas vazio. Este conceito, explica, surge no fim da guerra fria como um conjunto de documentos – os relatórios sobre o desenvolvimento humano da ONU – com o objetivo de se anexar, no início do milénio, as questões de ordem socioeconómicas às prioridades estratégias e de segurança. Em 2005 o conceito de segurança humana é incluído no conceito estratégico da ONU, mas sem aplicabilidade ao nível dos Estados. Como, então, tornar o conceito prático e adaptá-lo à linguagem empírica? Primeiro, diz, é necessário estabelecer como base as liberdades, freedom from fear e freedom from want. Depois é preciso desfazer a ambiguidade entre segurança interna e segurança externa – cuja distinção precisa leva a uma dispersão de recursos, como a gestão da pandemia é exemplo de. Tem havido, diz, uma dispersão nestes dois âmbitos tanto por parte dos Estados, mas também por parte da UE. Contudo, é no âmbito da Europa que a operacionalização do conceito de segurança humana no CEDN deve ser feita.
Retomando a questão lançada por Álvaro Vasconcelos sobre como integrar o conceito de segurança humana no CEDN, refere o relatório elaborado por Mary Kaldor no pós-pandemia, que salienta a necessidade de desambiguar a ideia de segurança interna e segurança externa, passando para uma abordagem da segurança humana que implique o alargamento dos direitos humanos às fronteiras. Para isso são salientados 3 pontos no contributo para uma reavaliação da ajuda de cooperação: 1) desambiguar aquilo que se considera estados frágeis; 2) envolver a sociedade civil dos estados frágeis, dialogando com os povos e tornando a manutenção da paz e a garantia pelos direitos humanos sustentáveis a longo prazo e 3) integrar uma abordagem de subsistência sustentável prolongada e estruturante.
Um conceito integrado e operacional deve, conclui, ir para além das distinções tradicionais e militares: existem outras ameaças à segurança, como é o exemplo o medo do desemprego ou o medo do não direito. O CEDN deve pensar nas ameaças à segurança como um todo e ir para lá da segurança enquanto garante da não violência.
Fernando Jorge Cardoso, que se propõe a falar da questão da segurança humana no contexto africano, começa a sua intervenção por constatar que “a África não existe” enquanto entidade política, mas apenas como facto geológico. Deste modo, quando falamos de África devemos ter o cuidado de perguntar “Qual África?”. Outro dos pressupostos que devemos evitar é o da ideia que África está secundarizada – África está completamente globalizada. O problema africano, reitera, não pode ser visto como um problema regional, mas como um problema de classes.
Os Estados africanos tiveram, nos anos 60, e no seguimento dos seus processos de independência, de tomar uma posição entre Oeste/Leste. Nos anos 80 e 90 fizeram parte da discussão ideológica que marcava o Ocidente. O início do milénio, por outro lado, trouxe com ele a China, que apelava aos Estados africanos não em termos ideológicos, mas em termos económicos. O que encontramos hoje é, portanto, estados frágeis, cujas infraestruturas foram desenvolvidas apenas em certa medida e que se encontram globalizados sem que isso tenha resultado num desenvolvimento interno sustentável, na garantia da paz ou dos direitos humanos. Os projetos de parceria propostos pela Europa são desfasados desta realidade.
Os maiores perigos à segurança humana neste momento, prossegue, são a guerra do Iémen e outras duas no continente africano: a da Etiópia e a do Nordeste do Congo, as quais são largamente negligenciadas pela UE. Esta última passa despercebida por se tratar de uma guerra informal socioeconómica, cujo centro gravitacional é o tráfico ilegal de columbite e tantalite, usados para produzir baterias.
A guerra em Moçambique, por seu turno, assenta em dois pilares: a ineptidão do governo e corrupção das instituições e dos funcionários públicos, por um lado e; a atuação ideológica alicerçada em crenças e tradições enraizadas culturalmente nas sociedades por parte de grupos extremistas violentos.
Ana Gomes reflete sobre os avanços feitos no conceito de segurança humana partindo da sua experiência pessoal. À semelhança do que Ana Santos Pinto tinha referido, o conceito tradicional e amplo de segurança humana ganhou automaticamente aderência. O conceito, contudo, da responsability to protect (R2P) dividia alguns membros tanto da ONU como da UE, que temiam que este servisse como uma desculpa para intervir. No seguimento desta ambiguidade, Mary Kaldor reúne um grupo de pessoas, entre eles especialistas, investigadores e militares, para desenvolver um conceito de segurança humana a partir do conceito de R2P, para ser incluído nos conceitos e na operacionalização da Europa, da NATO e da ONU. Esta interação resultou num conceito holístico e integrado. Este conceito de segurança humana, diz, estava preparado para englobar questões como as dos estados frágeis, questões históricas, políticas, económicas, culturais, religiosas e outras. Não obstante, o conceito de segurança humana continuou a encontrar resistência no contexto europeu – para grande espanto seu, diz Ana Gomes, por se tratar de um conceito que tem tudo a ver com o projeto europeu, que sempre procurou aliar a intervenção militar à intervenção civil.
O conceito desenvolvido por este grupo de especialistas tinha uma abordagem bottom to top; procurava envolver as mulheres nas missões de modo a envolver as mulheres das sociedades em conflito na preservação da paz a longo prazo; e tentava perceber quais os tipos de intervenções que se adequam às diferentes ameaças – o que não implica o abandono da “hard security”, mas resulta numa diversificação das formas de atender às diferentes vertentes da segurança. Esta perspetiva, argumenta Ana Gomes, é vital e faz imensa diferença na forma como o conceito de segurança é assumido pelos diversos conceitos estratégicos – nacionais, europeus, das Nações Unidas, etc. Não ter esta perspetiva, diz, é desastroso, já que esta se revela fundamental para uma visão política, para além de estratégica, das missões dos países tradicionalmente chamados de doadores.
Álvaro Vasconcelos abre o debate questionando os oradores sobre aquilo que deveria ser incluído nesta revisão do CEDN do ponto de vista da segurança humana – se a revisão de 2003 tinha a imigração como uma questão da segurança (o que se provou extremamente danoso), o que é que poderá a crise do Afeganistão adicionar ao CEDN hoje? Do público surgiram ainda duas outras questões: 1) como pensar na segurança humana num mundo pós-pandemia quando aquela que provou ser a ameaça mais desafiante, em termos humanos, das últimas décadas, resultou na não cooperação em que as patentes se mantiveram? De que segurança humana podemos falar hoje no Ocidente?; 2) a evolução dos conceitos de que Ana Gomes falava não correspondeu a uma evolução das metodologias e da operacionalização (que deve compreender o empoderamento das sociedades fragilizadas) – isto faz-nos questionar se o que precisa de ser revisto serão os conceitos, ou as metodologias. Que paz queremos alcançar com a intervenção: paz liberal? Paz democrática? Paz emancipatória?
Ana Gomes começa por endereçar as reservas demonstradas quanto à questão da imigração como parte das preocupações de segurança, afirmando que, apesar de algumas questões não fazerem parte das preocupações de segurança tradicionais, elas têm por base questões securitárias: no caso da imigração e do asilo, estes têm muitas vezes origem em situações de guerra, crise ou perseguições. Dizer que estas questões não podem ser indiferentes à questão da segurança é distinto de dizer que elas são fonte de insegurança. No que diz respeito à pandemia, intitulada por muitos como uma guerra, relembra que, em epidemias anteriores – de dimensão reduzida – as patentes foram suspensas, pelo que concorda ser irracional que não se tenha feito uso de instrumentos pré-existentes por conta de um setor. Neste aspeto, Portugal devia ter tomado uma posição clara no seio da UE e da ONU de apoio à suspensão das patentes.
Fernando Jorge Cardoso volta a lembrar a questão do tráfico no canal de Moçambique, que perfaz 30% do tráfico mundial, para relacioná-lo com a miopia estratégica portuguesa no que diz respeito à questão do Atlântico Sul. Portugal, diz, deve ultrapassar o seu “elitismo bacoco” relativamente à UE e fazer uso do seu valor hidrográfico de forma a valorizar o poder político da União e colmatar a falta de poder geoestratégico da mesma.
Ana Santos Pinto endereça a questão da operacionalização do CEDN refletindo que enquanto não houver um desembaraço do dilema conceptual entre segurança e defesa, o CEDN correrá sempre o risco de ser demasiado amplo e ficar aquém no âmbito da operacionalização. Isto é particularmente importante se tivermos em consideração a escassez de recursos: Portugal deve evitar a dispersão e perceber que âmbitos da estratégia portuguesa devem ser priorizados. Destaca, neste sentido, a cyber, a IA, a inovação aeroespacial, e a interligação com as outras áreas políticas que capacite o conceito. A segurança humana deve ser um destes âmbitos e deve, hoje, obrigar a pensar nos direitos humanos holisticamente (envolvendo as questões do emprego, da saúde, da imigração, etc.). Esta compreensão holística previne, por seu turno, que o conceito – tanto o de segurança humana como o CEDN – funcione como cata-vento.
Conclui-se o debate sublinhando-se os novos caminhos de discussão abertos e aqueles tantos outros que ficaram por discutir, como é o caso da ecologia e dos atentados ao humanismo, às humanidades e às artes – questões indispensáveis da segurança humana.
Jéssica Moreira (CD-IEEI)
Dezembro 2021