Relatório da Conferência “O Mediterrâneo no futuro da União Europeia”, realizada a 11 de fevereiro de 2025 na Escola de Economia, Gestão e Ciência Política da Universidade do Minho, elaborado por Bárbara Reis Rosa, Beatriz Martins Mendes e Matilde Martins Simão, alunas do 2.º ano da Licenciatura em Relações Internacionais da mesma universidade.
A presente sessão ocorreu no âmbito do Ciclo de Conferências “A Defesa Portuguesa, da Bósnia à guerra da Ucrânia”, e teve lugar na Escola de Economia, Gestão e Ciência Política da Universidade do Minho, em Braga. A conferência desenvolveu-se em torno do tema “O Mediterrâneo no futuro da União Europeia” em registo presencial e, simultaneamente, online. O principal objetivo centrou-se na reflexão sobre o impacto das dinâmicas mediterrânicas no futuro da União Europeia (UE), assim como a exposição do trabalho realizado pelo Instituto de Estudos Estratégicos e Internacionais (IEEI), cujo percurso se cruzou várias vezes com o da Universidade do Minho.
O painel foi composto por Álvaro Vasconcelos e por José Pedro Teixeira Fernandes. O primeiro convidado foi uma figura opositora ao regime do Estado Novo e à guerra colonial portuguesa. Álvaro Vasconcelos viveu no exílio na Bélgica e em França (1967 – 1974), tendo regressado a Portugal depois do 25 de Abril, onde participou no processo de transição democrática. Foi essencial na fundação do Fórum Demos e é autor de diversas obras, colaborando também regularmente com os órgãos de Comunicação Social na imprensa, rádio e televisão portuguesas. O segundo convidado, José Pedro Teixeira Fernandes, é docente no ensino superior e investigador nas áreas de Relações Internacionais e de Estudos Europeus no Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI-NOVA). É doutorado em Ciência Política e Relações Internacionais pela Universidade do Minho e tem diversos artigos publicados em revistas científicas nacionais e internacionais e vários livros nas suas áreas de especialização. É comentador de política internacional da RTP e colabora com o jornal Público na análise de questões internacionais. A Conferência foi moderada pela professora e investigadora na Universidade do Minho, Sandra Fernandes, doutorada em Ciência Política, com especialização em Relações Internacionais, pela Sciences Po Paris. Os seus interesses de investigação incluem a ação externa da UE e as suas relações com a Rússia, o espaço pós-soviético, a geopolítica, o multilateralismo, a análise de política externa e a segurança internacional, contando com participações regulares na comunicação social e contributos no âmbito das áreas mencionadas.
Esta conferência abordou as complexas relações geopolíticas de Portugal, destacando o isolacionismo atlântico, a importância estratégica do Mediterrâneo e os desafios enfrentados pela UE em lidar com países de referência islâmica. Para além das questões já referidas, destacaram-se também eventos como a Primavera Árabe e os processos de transição democrática em Estados como a Turquia e a Síria. A discussão incluiu a influência histórica e demográfica no Mediterrâneo, as limitações da diplomacia portuguesa e o processo de democratização na região. A conferência foi enriquecida pela diversidade de perspetivas, assim como pela diversidade de temas, apresentados pelos oradores convidados.

Álvaro Vasconcelos deu a primeira contribuição para o debate intelectual, começando por uma breve introdução relativa ao papel do IEEI. Fundado em 1980, teve uma forte relação com a Universidade do Minho, uma vez que era a única instituição de ensino que possuía um curso de Relações Internacionais progressista face às tradições e culturas geopolítica associadas ao Estado Novo. A Universidade do Minho distinguia-se em relação às restantes universidades pela sua desconexão com a retórica do luso-tropicalismo, promovida pelo professor Adriano Moreira, e que assentava no pressuposto de que Portugal era uma nação multirracial e pluricontinental, argumentos que sustentavam a manutenção do império colonial português. O Instituto foi o primeiro Think Thank português determinado a combater o isolacionismo atlantista crónico, que se referia à tendência de Portugal de manter uma relação distante com Espanha e o resto da Europa continental, focando-se mais nas suas relações com o Reino Unido e os Estados Unidos da América (EUA).
O orador referiu, igualmente, a importância da aproximação de Portugal com as suas raízes mediterrâneas, dada a sua cultura, língua latina, história e a presença do islão durante séculos, bem como a interação com o Norte de África, apesar da sua estreita relação com o Atlântico. O processo de aproximação de Portugal à comunidade europeia foi árduo, já que o império português tinha criado relações difíceis com o resto do mundo, tendo recebido mais de cem condenações das Nações Unidas pela sua política colonial. Pretendia-se transmitir que o passado colonial português não era agora impeditivo de uma política ao nível e segundo os modelos europeus.
A adesão às Comunidades Europeias constituía uma valorização do Mediterrâneo, enquanto elemento-chave favorecedor para Portugal. Marrocos é referido como um exemplo de um país onde há uma perceção muito positiva face a Portugal. Neste sentido, para tirar proveito da nossa identidade mediterrânea, Portugal procurou desenvolver atividades com Marrocos e criar redes no âmbito da Mediterranean Studies Comission. Esta rede procurava fortalecer as ligações entre os países de norte e sul do Mediterrâneo, bem como com o Médio Oriente, estimulando o desenvolvimento de processos de transição democrática e a normalização das relações.
Durante o processo, surgiu um impasse político-cultural: a questão islâmica. Os países europeus tiveram uma dificuldade em aceitar e reconhecer que estes tinham uma cultura política dominante com referência no Islão, o que Álvaro Vasconcelos explica a partir do estigma existente relativamente a estes partidos, normalmente associados a fações terroristas, sobretudo depois do ataque às Torres Gémeas, no 11 de Setembro de 2001. Segundo o convidado, esta conjuntura teve três repercussões principais. Em primeiro lugar, a enorme dificuldade do processo de adesão da Turquia à UE, dada a oposição do Papa João Paulo II e democracia cristã alemã. Esta situação fez com que a Turquia entrasse num processo de autocratização, vendo as lógicas democráticas como impositivas. Em segundo lugar, Álvaro Vasconcelos aponta a disseminação de uma visão hostil em torno da imigração, oriunda destes países, o que resultou na ascensão dos movimentos populistas e nacionalistas na Europa. Por fim, no âmbito da Primavera Árabe, a UE não apresentou uma resposta face aos golpes autocráticos nesses países, compreendo qua a estabilidade residia em regimes autoritários, já que a democracia tinha permitido a vitória de países de inspiração islâmica. Perante este impasse, o Álvaro Vasconcelos aponta possíveis soluções para atenuar estas divergências, sendo elas: alteração da nossa perspetiva sobre o Islão; entender a sociedade civil islâmica como paradigmaticamente distinta; a defesa dos Direitos Humanos.

A conferência teve continuidade com a intervenção do Professor José Pedro Fernandes, que focou o seu discurso no Mediterrâneo Oriental, endereçando aquilo que designa como “A Nova Questão do Oriente”. Segundo este, esta área é caracterizada por lógicas muito diferentes do Mediterrâneo Ocidental, que nos é mais familiar, nomeadamente em termos diplomáticos e estratégicos. O convidado refere também as divergências históricas, mencionando o desigual impacto da decadência do Império Otomano nas duas facetas do Mediterrâneo. Enquanto que no Mediterrâneo Central, a presença do Império Otomano era simbólica, no Mediterrâneo Oriental era fundamental para entendermos o panorama geopolítico da Europa. Este continente, segundo o referido professor, apresenta determinados problemas geopolíticos, os quais a UE se vê incapaz de resolver, tal como o conflito entre a Rússia e a Ucrânia, no âmbito das ambições expansionistas do “Império Russo”. O convidado aponta que o Mediterrâneo Oriental tem um passado completamente divergente, sendo que a UE se moldou pela experiência Ocidental, revelando uma falta de preparação intelectual para compreender as especificidades do leste europeu. Ainda assim, a expansão da ideias europeias ajudou a normalizar as relações na Europa, “europeizando” os países do leste europeu, sudoeste e zona euro-mediterrânica. Vivia-se um período de hegemonia europeia, “a Europa era o mundo”. Contruiu-se um modelo de referência para o mundo no pós-II Guerra Mundial, implementando as ideias kantianas da paz perpétua, mas que agora servem cada vez menos. Efetivamente, os países do antigo Império Otomano não entraram da mesma forma nem ao mesmo tempo no processo de modernização face ao bloco ocidental. Os processos de amadurecimento da ideia de Estado-Nação assumiram contornos distintos no Mediterrâneo Oriental.
A questão clássica do Oriente passava pelo processo de ascensão europeia, uma vez que, após o desmantelamento do Império Otomano, esta zona se viu órfã de um elemento de coesão. Este período de instabilidade foi instrumentalizado pelos britânicos, franceses e russos como uma oportunidade de exercer a sua influência sobre esta região. No entanto, a nova questão do Oriente retrata um refluxo da Europa e uma Turquia em ascensão. Constituída apenas por 14 milhões de habitantes na época da sua formação, esta é atualmente mais poderosa a nível demográfico relativamente à Alemanha. Segundo o Professor José Pedro Teixeira Fernandes, Erdoğan, o atual presidente da Turquia, nunca teve a intenção de integrar a UE, utilizando, na verdade, estratégias políticas de modo a manipular a instituição e os setores secularistas a seu favor, construindo, no final, um estado secular autoritário. Este comportamento é entendido como um ressurgimento de uma retórica de ambições otomanas.
O problema do Mediterrâneo Oriental é que a Turquia sente-se confiante para seguir as regras do jogo, mas contra os interesses da UE, em áreas como o gás natural e a ausência de um parecer democrático no Mediterrâneo Oriental, face ao qual o convidado se revela pessimista. A democracia, tal como a UE reconhece, tem problemas em lidar com outras conceções orientais. Ainda assim, o convidado reconhece a Turquia como um parceiro estratégico relevante e que o corte de relações com a mesma seria um erro.
Dada a dificuldade de conversão dos valores democráticos da EU e respetiva adaptação aos moldes do Mediterrâneo oriental, o interlocutor acredita que é necessário que a UE desenvolva poder para efetivar a sua influência na região do Mediterrâneo Oriental. No entanto, com o afastamento dos EUA deste modelo, agrava-se a dificuldade de propagação dos valores europeus, dada a ausência do hard power que esta potência exercia. A China assume-se enquanto uma potência emergente, claramente despreocupada com questões morais, tais como o respeito pelos Direitos Humanos e os valores democráticos. Princípios estes que não têm sido convertidos numa política externa eficaz, dada a falta de instrumentos adequados a essas lógicas democráticas.
Após uma breve abordagem sobre o questionado processo de democratização na Síria, estando este a ser realizado por um partido com uma antiga filiação à fação Al-Qaeda, o convidado aponta para uma impossibilidade do estabelecimento de um regime democrático correspondente com os sistemas democráticos da Europa Ocidental. Esta impossibilidade evidencia-se, por exemplo, nos critérios de proteção de minorias, que seguem uma perspetiva islamista.

Terminadas as intervenções dos oradores foi reconhecido pela Professora Sandra Fernandes, enquanto moderadora, um discurso divergente entre as partes, com a primeira revelando um lado mais otimista das relações com o Mediterrâneo Oriental e com a segunda apresentando uma perspetiva marcadamente mais realista.
Em seguida, deu-se a possibilidade ao público de intervir com questões acerca do tema em discussão. Foram colocadas duas questões por duas alunas do segundo ano de Relações Internacionais, às quais ambos os interlocutores responderam.
A primeira aluna revelou uma inquietação face a uma possibilidade de democratização da Síria, perante o abandono de uma visão eurocêntrica e do reconhecimento dos moldes orientais como paradigmaticamente diferentes, mas aos quais é possível uma adaptação. A esta pergunta, Álvaro Vasconcelos responde que este é um processo muito difícil e praticamente impossível, mas citando a expressão “o pessimismo da razão e o otimismo da vontade”, este revela que apesar de árduo, é necessário um esforço por uma solução o mais adequada possível à realidade política na Síria. Este refere, assim, a necessidade de uma alteração da perceção europeia pessimista face a qualquer partido islamista, mediante um diálogo diplomático e tendo em vista a normalização dessas forças políticas. O interlocutor termina referindo a importância de depositarmos confiança política nas nossas ideias, empenhando-nos, pelo menos, na tentativa de as fazer render.
Fornecendo uma segunda perspetiva, o Professor José Pedro Teixeira Fernandes admite uma possibilidade de democratização da Síria. Contudo, este refere que o problema de implementação da democracia é fundamentalmente a ausência de pré-requisitos. Este aponta uma imagem falaciosa sobre uma vontade comum dos oprimidos nestes regimes autoritários de verem implementada uma democracia, tal como ocorre na Europa Ocidental, e refere que “infelizmente, muitos oprimidos são ditadores impotentes”. Um exemplo do contexto apresentado é o caso da Líbia, onde o convidado refere que a eleição do Presidente da República, segundo a constituição, tem como critérios ser cristão marmita, enquanto que o Primeiro Ministro deve ser um muçulmano sunita, já o presidente do Conselho tem de ser um muçulmano xiita, revelando o carácter não democrático deste país. Partindo deste pressuposto, o convidado afirma que em nenhum país do oriente existe uma identidade secular transversal, sendo a democracia uma completa ilusão.
Perante estas respostas, a Professora Sandra Fernandes, responsável pela moderação, intervém usando as perspetivas de ambos os convidados e refere que uma qualquer abordagem democrática só pode ser inteligível à luz de um determinado contexto histórico, social e cultural.
A segunda aluna revela discórdia face à perspetiva do segundo interlocutor e endereça-lhe uma questão relacionada com a política isolacionista da administração Trump face à afirmação do convidado de que esta política seria prejudicial à propagação dos valores democráticos europeus. Esta coloca a hipótese de esta ausência dos EUA ser uma oportunidade de a Europa se tornar mais independente e até ter mais possibilidade de intervir nos conflitos do Mediterrâneo Oriental, abandonando a forma impositiva da democracia norte-americana.
O Professor José Pedro Teixeira Fernandes revela a dificuldade que a UE poderá ter em produzir uma política externa coerente, que lhe permita ser bem-sucedida. Este aponta para a UE enquanto um organismo complexo, composto por 27 Estados-Membros, que carece de uma atuação ágil e coesa. Para além disso, mesmo na ausência dos EUA, existem outras dificuldades à atuação europeia no plano internacional, tal como a China.
A posição de Álvaro Vasconcelos denota a imprevisibilidade da atuação europeia, face a uma grande divisão entre os membros desta instituição. Segundo o mesmo, neste momento, a UE não quer a democracia nos países do Mediterrâneo e, para sustentar o seu argumento, este refere que a Europa está demasiado “obcecada” com a questão da imigração, desvalorizando a oportunidade de implementação de um sistema democrático nos países do Mediterrâneo. Este conclui com uma reflexão relativamente ao risco que a democracia ocidental enfrenta, dada uma crescente vaga autocrática nos nossos sistemas políticos.
A conferência termina com uma nota feita pela moderadora, que refere o contributo desta sessão para o envolvimento ativo do público no âmbito destes desafios internacionais, agradecendo a todas as instituições envolvidas, assim como à plateia e aos participantes via zoom.
Bárbara Reis Rosa
Beatriz Martins Mendes
Matilde Martins Simão
Alunas do 2.º ano da Licenciatura em Relações Internacionais da Universidade do Minho
Escola de Economia, Gestão e Ciência Política
Universidade do Minho
11 de fevereiro de 2025, Braga, Portugal