Há um pequeno livro que guardo na minha biblioteca e que me traz à memória uma velha e fiel amizade. Trata-se de “Portugal Sem Salazar”, de Mário Mesquita, de outubro de 1973, constituído por uma entrevista com Manuel de Lucena e por uma mesa-redonda com António Barreto, Eurico de Figueiredo, Medeiros Ferreira e Valentim Alexandre.
Agora, que o Mário nos deixou inesperadamente, voltei à leitura desse precioso documento e do que ele nos diz nas linhas e nas entrelinhas. Numa espécie de profecia, Mário disse um dia que seria lembrado num obituário como jornalista. Por mim, acho que foi muito mais, porque o conheci bem e mantivemos uma relação de proximidades e distâncias. Éramos da mesma geração e tínhamos os nossos Manes comuns e diferentes. Antero de Quental e a sua aura aproximava-nos e fomos amigos de Mário Soares em momentos diversos, segundo razões várias, mas valores comuns. Prefiro, pois, referir-me a Mário Mesquita como cidadão, dos melhores do nosso tempo. O livro em causa foi um documento político, um grito cívico, um apelo à inteligência e à democracia. E se o cidadão dignificou o jornalismo e formou tantos jornalistas, fê-lo na tradição da liberdade de expressão do pensamento e do debate pluralista das ideias, como pedra angular da democracia, vista não como um modo de organização da sociedade, mas como um verdadeiro sistema de valores. Por isso, quando se organizou o conjunto de estudos e testemunhos em sua homenagem (Tinta da China, 2021), o título natural foi “A Liberdade por Princípio”.
Vasco Pulido Valente disse dele ser “um açoriano cético e, portanto, temível”. Que significava essa apreciação? Que Mário Mesquita não se eximia à exigência de usar a liberdade com um agudo sentido crítico enquanto método sistemático, acima das considerações de mero interesse ou de acomodação circunstancial. Nesse livro mínimo que publicou aos vinte e três anos de idade esclarecia que os textos indicavam “um tipo de jornalismo que me parece necessário praticar, neste momento, em Portugal. Impossível na imprensa diária ou semanal, compete aos jornalistas promover a sua prática através de iniciativas autónomas e marginais”. Era o combate à censura e a construção da democracia que estavam em causa. E faltou então a entrevista fundamental de 1970, com Ernesto Melo Antunes, feita nos Açores, revelada por Maria Inácia Rezola no livro de homenagem (“A entrevista que pressagiou Abril”). Manuel de Lucena considerava os estrangeirados o reverso dos provincianos, e dizia, preto no branco, que “as sociedades avançam por rutura” e que urgia a independência política dos territórios em guerra. Reconhecia “a força do marxismo na análise económica e social”, mas discordava de uma visão escatológica, que deixasse a liberdade apenas para o fim da “pré-história da humanidade”. Na mesa-redonda (cortada pela censura no “República”), o tema europeu suscita dúvidas ligadas à “evolução capitalista”, na expressão da época, mas premonitoriamente José Medeiros Ferreira, referindo a democracia como conquista dos povos, pensa que “independentemente do processo de evolução europeia, as nações vão ter grande força”, estando convencido “de que vai haver coexistência de Estados nacionais com poderes transnacionais”. Estão lá, de facto, as questões fundamentais. E Mário Mesquita vai direito ao assunto que importa. E quando recordamos o seu exímio uso da crónica, entendemo-la como a definia Carlos Drummond de Andrade – “de notícias e não notícias se faz a crónica”. E “Deve & Haver”, quando era diretor do DN, em 1981 e 1982, com o sal e a pimenta necessários, ilustrava bem o que Chesterton disse: “Nenhum homem se deve sobrepor às coisas que a todos os homens são comuns. Esta forma de igualdade deve ser carnal, grosseira e cómica. Não só estamos todos no mesmo barco, como estamos todos enjoados”. Ironia, sempre.
Guilherme d’Oliveira Martins