[Dossier] As políticas de imigração e asilo da União Europeia: segurança e direitos humanos

Introdução

Durante o seu período de atividade, o Instituto de Estudos Estratégicos e Internacionais (IEEI) analisou o tema das migrações através da preparação de vários artigos científicos e da organização de fóruns e conferências sobre o tema. Neste dossier, analisaremos vários artigos publicados entre 2004 e 2009, que se focam essencialmente nas tendências dos fluxos migratórios na Zona Euro-Mediterrânica, assim como as principais políticas da União Europeia (UE) sobre o tema. Primeiramente, será importante descrever, com base nos referidos artigos, o modo como o IEEI debateu estes fluxos migratórios, com especial foco nas décadas de 1990 e 2000. De seguida, importa entender o modo como o IEEI se debruçou sobre o desenvolvimento das primeiras políticas da União sobre o tema e a sua evolução do âmbito intergovernamental para o âmbito comunitário. Com base no trabalho de investigação levado a cabo pelo IEEI, analisaremos o desenvolvimento destas políticas à luz das questões de segurança, nomeadamente da perceção da UE à época, que via a imigração, por um lado, como um benefício para o mercado de trabalho e, por outro, como uma ameaça e um fator de insegurança. Faremos também um balanço sobre as tensões entre segurança, cidadania, xenofobia/islamofobia e direitos humanos presentes na sociedade europeia e como estas questões influenciaram as políticas da UE neste domínio. 

Comecemos por olhar para o trabalho apresentado por Mariana Vital Morgado e Rita Pais, no âmbito do seminário “O Tratado de Lisboa e o Futuro da Europa”, organizado pelo IEEI, em março de 2009. A decisão de migrar está associada a fatores sociais, políticos e económicos, mas também psicológicos e subjetivos, associados à idealização das potencialidades do país de destino. No artigo, s autoras chamam a atenção para a União Europeia (UE) se ter tornado, aos olhos de muitos potenciais migrantes, num espaço de paz e segurança, prosperidade económica e baseada nos valores da democracia, liberdade e direitos humanos (Morgado e Pais, 2009).

Com a aceleração da circulação de pessoas, bens, conhecimentos e informação, surgem novas ameaças, frequentemente associadas à imigração ilegal, ao tráfico de drogas e de seres humanos, à criminalidade organizada e ao terrorismo. Assim, as primeiras preocupações com a imigração surgem na década de 1990, associadas a questões de segurança (Ibid.).

Na UE, o desequilíbrio entre o volume de pedidos de asilo e admissão de refugiados, o aumento da imigração ilegal, assim como os desafios associados às dificuldades de integração trouxeram problemas sociais e económicos complexos. Neste sentido, tornava-se cada vez mais necessário desenvolver políticas de gestão de asilo e migração, uma tarefa desafiante para os Estados-Membros, uma vez que esta implica abdicar da sua ação política em matérias relacionadas com a soberania e a cidadania (Ibid.). Neste contexto, segundo as autoras, a abordagem comunitária tem como foco a maximização dos benefícios da imigração para todas as partes, acreditando na capacidade de absorção, tendo em conta as necessidades laborais. No entanto, ao longo do desenvolvimento destas políticas comunitárias, a necessidade de retenção de mão de obra foi ultrapassada, em alguns momentos, pela sensação de ameaça provocada pela imigração (Ibid.).

Tendências migratórias na zona Euro-Mediterrânica

Os artigos do IEEI que descreveram os principais fluxos migratórios na Europa centraram-se na zona Euro-Mediterrânica, uma vez que uma grande parte da imigração para os países da UE provinha de países do Magrebe e outros países do Médio Oriente e Norte de África. Ao mesmo tempo, seria a imigração proveniente destes países a que causaria mais preocupações à UE, devido às perceções de ameaça terrorista e dificuldades de integração.

Os fluxos migratórios na Europa foram constituídos por diversas fases, nomeadamente advindas da descolonização, da imigração laboral necessária para sustentar o crescimento económico da década de 1960 e, mais tarde, com o reagrupamento familiar durante o período “imigração zero” (Aragall, Aubarell, 2005).

Na década de 1990, 3.5% da população na União Europeia era de origem imigrante, correspondendo a 18 milhões de pessoas. Destes, 5 milhões eram provenientes dos países do mediterrâneo, nomeadamente 41% de Marrocos, Argélia e Tunísia, e 59% da Turquia e países da ex-Jugoslávia. Dentro dos principais países recetores encontravam-se a França, a Bélgica, os Países Baixos, a Espanha e a Itália. Estes fluxos deveram-se essencialmente ao crescimento económico da década e ao envelhecimento da população, espoletando a necessidade de mão de obra e levando a uma maior abertura das fronteiras (Aragall, Aubarell, 2005; Ferreira, 2007).

No âmbito do II Congresso Nacional Portugal e o Futuro da Europa, organizado pelo IEEI, em junho de 2007 com o propósito de debater e conhecer o estado do debate europeu em Portugal, a autora Maria João Militão Ferreira apresentou o artigo “A Politização do Risco na Política Europeia de Imigração”, no qual recordava que, à época, a zona Euro-Mediterrânica era composta por diversos e complexos fluxos migratórios, incluindo fluxos sul-norte (Europa-Magrebe), fluxos sul-sul (da Argélia e da Tunísia para a Líbia e restantes países do Magrebe, assim como do Egipto para o Golfo Pérsico), e fluxos este-oeste (dos Balcãs para a Turquia e para a Europa Ocidental) (Ibid.). Segundo a autora, existia, de facto, uma grande heterogeneidade entre os países do sul do Mediterrâneo, com a Líbia e Israel no papel de “países de imigrantes” e a Turquia como “país de emigrantes”. Simultaneamente, em países como Marrocos fazia-se sentir uma crescente pressão ao nível da imigração. Por outro lado, Malta e Chipre passaram a ser países de trânsito de migrantes vindos da Ásia e África subsariana (Ibid.).

Para os países do Magrebe, a imigração permitia a redução da pressão no mercado de trabalho, sendo também uma fonte de moeda estrangeira e formação profissional. No entanto, o seu impacto não era necessariamente positivo, uma vez que as transferências monetárias não constituem um fator de investimento, as remessas podem causar desigualdades entre setores sociais e inflação, e a “fuga de cérebros” tem um custo financeiro elevado, considerando que há um investimento na formação e qualificação de mão de obra da qual são os países recetores a beneficiar (Ibid.).

Estes fluxos migratórios tornavam-se ainda mais complexos devido ao crescimento da imigração irregular promovida por redes ilegais, nomeadamente de tráfico de seres humanos (Ibid.).

Perante a diversidade do fenómeno migratório na região, o debate crescia entre aqueles que apelavam a políticas mais restritivas com vista a travar a migração económica e a receber requerentes de asilo e refugiados e os que olhavam para o decréscimo da mão de obra disponível e para o envelhecimento da população e, por isso, eram favoráveis a políticas migratórias mais liberais(Ibid.). O desenvolvimento de políticas comunitárias nesta matéria, especialmente entre 1999, com o Conselho de Tampere, e 2008, com o Pacto Europeu de Imigração e Asilo, fez-se também no seio deste debate.

As políticas de migração e asilo da UE: entre a necessidade de crescimento económico e a securitização

Da abordagem intergovernamental às políticas comunitárias

Como iremos observar, a evolução das políticas de imigração e asilo na UE é marcada por uma orientação comunitária em prol de uma política de imigração comum, que deixa de parte a cooperação minimalista (Morgado e Pais, 2009).

Na década de 1990, as primeiras ações relacionadas com a imigração surgem devido a preocupações com a segurança, nomeadamente o combate ao terrorismo, mas também a mobilidade dentro do espaço europeu e o desequilíbrio entre pedidos de asilo e concessão do estatuto de refugiado (Ibid.)

O Tratado de Maastricht de 1993 cria um primeiro quadro institucional para fazer face às questões da imigração e asilo, de base essencialmente intergovernamental (Ibid.). Em 1999, o Tratado de Amesterdão define o objetivo político de que a UE se desenvolva como um Espaço de Liberdade, Segurança e Justiça. Assim, a competência legislativa em matérias de transposição de fronteiras, concessão de vistos, asilo e imigração passa para as instituições europeias (Ibid.).

No entanto, foi o Conselho Europeu de Tampere, no mesmo ano, que acordou uma estratégia para a criação de uma política de imigração e asilo, que se baseia no equilíbrio entre a migração económica e humanitária, atribuindo direitos e obrigações para imigrantes idênticos aos dos cidadãos nacionais. O Conselho de Tampere iniciou uma mudança nas políticas migratórias da UE que, ao longo do tempo, se focaram mais na gestão e menos no controlo. Neste conselho, inicia-se a “comunitarização” das políticas de migração e asilo, tendo sido aprovados os seus princípios, nomeadamente a cooperação com os países de origem na definição de políticas, o estabelecimento de um sistema europeu de asilo, o tratamento justo de nacionais de países terceiros, assim como a gestão comum dos fluxos migratórios. (Aragall, Aubarell, 2005; Morgado e Pais, 2009).

Em 2000, a Declaração da Comissão Europeia sobre uma Política Comunitária para a Imigração pôs fim à política de “imigração zero”, reconhecendo a União como uma área de imigração. Este reconhecimento teve especial evidência durante a Presidência Belga do Conselho em 2001. Neste âmbito, considerou-se que a gestão dos fluxos migratórios tinha uma dimensão externa, relativa aos países de origem, e interna, no que diz respeito à gestão das admissões e controlo de fronteiras. Considerava-se também que as questões de imigração deveriam fazer parte da agenda de política externa, que as questões de segurança eram fundamentais no controlo da imigração e, finalmente, que a UE não poderia deixar de se comprometer com a integração de imigrantes numa realidade multicultural (Aragall, Aubarell, 2005).

O Conselho de Laeken de 2001 apoiou a iniciativa do Conselho de Tampere, enfatizando a necessidade de uma política externa de migração. No entanto, no ano seguinte, o Conselho de Sevilha colocou de parte a gestão dos fluxos migratórios, focando-se em propostas de curto-prazo relacionadas com o combate à imigração ilegal, fortalecendo a dimensão securitária e ignorando as ideias por detrás do Espaço de Liberdade, Segurança e Justiça enunciadas no Conselho de Tampere (Ibid.).

Mais tarde, em 2003, o Conselho de Tessalónica acabou por mitigar a lógica introduzida em Sevilha, com a introdução da maioria qualificada para decisões sobre migração, retornando à lógica comunitária com a Comissão Europeia a liderar o estabelecimento da política comum de imigração (Ibid.).

O Programa de Haia ou “Novo Tampere” (2005-2010) veio definir as prioridades para reforçar o Espaço de Liberdade, Segurança e Justiça, tendo como prioridades a imigração e o asilo, assim como o combate ao terrorismo. Neste contexto, os líderes da UE concordaram, como referido, usar a votação de maioria qualificada e o método de codecisão nas áreas de asilo, imigração e controlo de fronteiras. Simultaneamente, é o Programa de Haia que cria o sistema comum de asilo com objetivos definidos até 2009, uma estratégia para assegurar a integração dos imigrantes, assim como medidas para que os imigrantes legais possam trabalhar na União consoante as necessidades do mercado de trabalho. Ademais, verificou-se um esforço para criar uma política de imigração em colaboração com países de origem e trânsito, promovendo sistemas de asilo nesses países e criando alianças contra a imigração ilegal (Morgado e Pais, 2009). Em maio de 2005, foi criada a Agência Europeia da Guarda de Fronteiras e Costeira (FRONTEX), que viria a contribuir para o desenvolvimento destas políticas (Aragall, Aubarell, 2005).

Simultaneamente, a dimensão de política externa atribuída à imigração estava cada vez mais presente, nomeadamente através da criação da Política Europeia de Vizinhança. O relatório Wider Europe (2003), submetido pela Comissão ao Conselho e ao Parlamento, introduziu uma nova abordagem para as relações com os países vizinhos a leste e a sul, assim como o papel da União nestas regiões. Este relatório recomendou que a UE deveria estabelecer mecanismos para facilitar o fluxo de nacionais de países terceiros em zonas de fronteira, nomeadamente no que diz respeito à concessão de vistos. O Wider Europe refere também a necessidade de medidas que fortalecessem a integração de migrantes, especialmente provenientes dos países vizinhos (Ibid.).

No seguimento deste relatório, em 2004, a estratégia Wider Europe e a nova Política Europeia de Vizinhança (PEV) realçam a dimensão externa das políticas de migração. No âmbito da PEV, as questões de migração estão inseridas no capítulo sobre desenvolvimento, sendo que, no que diz respeito à gestão dos fluxos migratórios, se baseiam no princípio do compromisso mútuo, ao invés do princípio da condicionalidade positiva. Neste contexto, está também incluído o princípio da diferenciação, assim como a implementação progressiva dos princípios, pelo que os apoios aos parceiros da PEV aumentariam consoante a verificação de um aumento do investimento na gestão da migração (Ibid.).

De facto, ao longo do período referido, denota-se uma crescente liderança por parte da UE, em especial através da Comissão, no que diz respeito à formulação de políticas migratórias. O Conselho de Tampere é o primeiro passo neste processo de comunitarização, passando as questões de imigração a fazer parte do primeiro pilar, ou seja, a estarem dependentes de decisões políticas ao nível comunitário e não ao nível da cooperação intergovernamental.

Assim, as migrações passam a ser tema central nos capítulos sobre desenvolvimento dos vários documentos produzidos pela Comissão, essencialmente associados ao emprego e crescimento económico. As questões de direitos humanos e proteção dos migrantes, em especial requerentes de asilo e refugiados, são também centrais. No entanto, as preocupações com a segurança surgem também sempre associadas às questões de imigração, uma vez que é explicito que a UE tem interesse em receber cidadãos de países terceiros, desde que estes venham de “boa-fé” e que não constituam qualquer perigo para a União, nomeadamente no que diz respeito a suspeitas de terrorismo. Os países parceiros deveriam também aplicar esforços no sentido de travar indivíduos que pusessem em causa a segurança da UE (Comissão Europeia, 2003).

Em 2005, a partir da iniciativa do Programa de Haia, a Comissão Europeia cria o plano de “Abordagem Global de Migração” para dar continuidade às propostas. Esta é uma abordagem global que engloba as dimensões económicas, sociais, humanitárias, legais, de política externa e desenvolvimento (Morgado e Pais, 2009).

Mais tarde, o Tratado de Lisboa de 2007, apesar de não ter efeitos diretos nas políticas de migração e asilo, vem extinguir os pilares da estrutura institucional, pelo que as questões de imigração e asilo se passam a incorporar no contexto comunitário. Alguns elementos ao nível da imigração legal mantiveram-se no regime intergovernamental (Ibid.).

O Pacto Europeu de Imigração e Asilo (2008): segurança vs. direitos humanos

Até ao momento, as iniciativas comunitárias no quadro da imigração e integração foram frequentemente consideradas insuficientes, estando mais ao nível da retórica política do que da ação concreta. A UE era acusada de não ter uma verdadeira política de imigração, por este ser um tema sensível e pouco consensual, especialmente entre Estados Membros (Morgado e Pais, 2009).

No entanto, os crescentes desafios dos modelos de integração de imigrantes em diversos Estados Membros acabaram por promover uma maior proatividade com vista ao estabelecimento de regras comunitárias. Os distúrbios num dos bairros dos arredores de Paris no final do ano de 2005 puseram fim ao modelo de integração vigente, que não tinha capacidade de resposta para as transformações do fenómeno das migrações. Em 2007, a vitória eleitoral do Presidente Sarkozy trouxe uma maior securitização e protecionismo dos fluxos migratórios, em especial a nível nacional, mas que se acabou por transpor para o nível europeu (Ibid.).

Em junho de 2008, o Parlamento Europeu aprovou a informalmente designada “Diretiva de Retorno”, que previa o repatriamento de todos os imigrantes em situação irregular. Esta medida indica um fechamento da União aos imigrantes que viriam, inclusive, fazer face às necessidades de mão de obra qualificada. Apesar de o discurso político realçar a importância da imigração para o mercado de trabalho europeu, assim como a solidariedade e o desenvolvimento dos países de origem, existiam agora novas preocupações com a segurança e ameaças associadas à imigração ilegal (Ibid.).

Assim, em 2008, a presidência francesa do Conselho da UE vem pressionar a aprovação do Pacto Europeu de Imigração e Asilo, um documento de orientação política não vinculativo que define as linhas gerais para uma futura política europeia de imigração e asilo. Este documento baseia-se nos conceitos da solidariedade, especialmente no que toca a questões de asilo, e da migração gerida, com o objetivo de tirar proveito dos benefícios da imigração (Ibid.).

Neste sentido, é importante olhar para os cinco compromissos principais assumidos pelo Pacto em áreas como a imigração legal, imigração ilegal, controlo de fronteiras, asilo e desenvolvimento (Ibid.).

Quanto à imigração legal, o Pacto indica um modelo de imigração com base na capacidade de absorção da sociedade e economia do país recetor, em especial das necessidades do mercado de trabalho. Neste contexto, podemos questionar-nos sobre a viabilidade da existência de regras de gestão de um fenómeno que é fundamentalmente baseado em fatores subjetivos (Ibid.).

O combate à imigração ilegal é também uma vertente fundamental do Pacto Europeu, que propõe o reforço da cooperação entre Estados Membros e países de origem e trânsito, a expulsão de imigrantes ilegais (termo utilizado no Pacto) e a presunção de que todos os países devem readmitir os seus cidadãos. Segundo Morgado e Pais (2009), este ponto levanta questões éticas relativamente à expulsão de um imigrante e à ameaça dos seus direitos humanos.

Simultaneamente, o controlo de fronteiras externas é fundamental a uma área de liberdade e segurança. Neste âmbito, o Pacto tomava medidas para melhorar a vigilância das fronteiras externas, previa um investimento em sistemas de informação e tecnologia avançadas e reforçava o apoio à FRONTEX, atribuindo-lhe maiores recursos e a possibilidade da criação de um sistema europeu de guardas fronteiriços (Ibid.).

A estratégia para a política de asilo demonstra uma preocupação com a divergência em volume de refugiados entre os Estados Membros, assim como com a instabilidade normativa internacional relativamente à definição do conceito de refugiado. O Pacto tinha como objetivo, assim, utilizar a partilha de informação para harmonizar as políticas de asilo, com vista a criar um sistema único de asilo até 2012. No entanto, a disparidade no volume de pedidos de asilo não está relacionada com a capacidade de admissão, mas antes com motivos sociais, económicos e geográficos na perspetiva dos imigrantes. Uma vez mais, como demonstram Morgado e Pais (2009), o sistema de restabelecimento de refugiados num espírito de “partilha de fardo” é também eticamente questionável, uma vez que um ser humano deveria poder escolher livremente o país para onde quer imigrar. De facto, a UE veio a restringir os pedidos de asilo, através da Convenção de Dublin que atribui a responsabilidade por quem pede asilo ao primeiro país onde este entra. Esta decisão implica a “devolução” de um determinado imigrante a países de trânsito, com o potencial de o expor a zonas de conflito e violação dos direitos humanos.

Finalmente, é importante referir que, tal como já vinha a acontecer com diversas medidas e políticas da UE neste âmbito, como por exemplo a PEV, as questões de imigração têm uma relação fundamental com temas de desenvolvimento no âmbito do Pacto. Reconhece-se os constrangimentos da “fuga de cérebros” e, por esta razão, a colaboração com países terceiros é fundamental. Assim, o Pacto propõe que se estabeleçam acordos sobre imigração legal, ilegal, readmissão e desenvolvimento, apoiando medidas que facilitem a “imigração circular” ou temporária, com facilidade de retorno ao país de origem. Propõe também medidas para combater a imigração ilegal, nomeadamente nas redes de tráfico de seres humanos (Ibid.).

Como veremos na secção seguinte, a gestão das migrações é um desafio bastante complexo, na medida em que é necessário que este esteja em linha com pressupostos económicos e sociais, enquanto mantém o respeito pelos Direitos Humanos, valores aclamados pela União Europeia.

Migrações e cidadania

Intimamente associada à imigração e integração de imigrantes na UE está a questão da cidadania. Com fluxos migratórios cada vez mais recorrentes, a ideia de cidadania deixa de estar apenas associada à nacionalidade, quebrando o conceito como até então era conhecido. A cidadania deixa de ser um conjunto de direitos e deveres baseados na identidade cultural e na pertença a uma determinada comunidade política. Assim, conclui-se que a imigração abre portas a um novo conceito de cidadania europeia, que Aragall e Aubarell (2005) referem como “cidadania cívica”, que é atribuída pelos Estados Membros dentro dos seus próprios enquadramentos legais.

Ademais, a “cidadania cívica” é complementada por uma “cidadania cívica comunitária”, através da qual os cidadãos partilham os mesmos direitos e deveres tendo imigrado para Estados Membros da UE. Esta ideia está particularmente associada ao acesso a um conjunto de direitos sociais, ou seja, ao Estado Social que deve agora ter em consideração a diversidade cultural (Folgôa et al., 2004; Aragall, Aubarell, 2005).

O conceito de cidadania cívica não está livre de contestação, uma vez que, como explicam Aragall e Aubarell (2005), a imigração suscita questões sobre qual deve ser o equilíbrio entre as contribuições dos imigrantes e respetivos benefícios, sobre se os imigrantes são mais dependentes do Estado Social do que as populações locais, ou sobre o quanto os imigrantes reconhecem a generosidade do Estado Social quando escolhem um país de destino.

Perante estas questões, em 2004, no Fórum “Viver a Europa: Uma Constituição para os Europeus”, organizado pelo IEEI, Ana Margarida Silva Lé refere que a maioria dos cidadãos imigrantes têm contratos de trabalho, efetuam descontos para a Segurança Social e estão inscritos nos sistemas tributários, apesar de a lei, muitas vezes, não permitir que se legalizem em território nacional. Assim, estes cidadãos estão a contribuir para o Produto Interno Bruto, sem que a lei lhes reconheça de facto os seus direitos e deveres.

Assim, a possibilidade de um imigrante exercer uma cidadania ativa, com plenos direitos e deveres, inclusive no que toca à participação política, é um conceito fundamental na discussão em torno das migrações, mas é também uma questão de direitos humanos. Ao longo do desenvolvimento de políticas comunitárias sobre imigração, a possibilidade de partilhar a cidadania europeia com plenos direitos com cidadãos de países terceiros foi vista com ceticismo, uma vez que o conceito de cidadania está, na perspetiva da UE, intimamente ligado aos seus valores fundamentais, que poderão não ser partilhados pelos países terceiros.

Migrações e xenofobia

No âmbito das já referidas questões de direitos humanos e cidadania associadas às políticas de imigração da UE, o IEEI dedicou especial atenção às questões da islamofobia e do racismo, fator crucial na já referida perceção de insegurança que, em vários momentos, guiou a evolução das políticas de imigração e asilo da UE.

No relatório anual do EuroMeSCo de 2006, intitulado “Getting it Right: Lessons of the “Cartoons Crisis” and Beyond”, desenvolvido pelo IEEI, os temas da intolerância e xenofobia são vistos como os grandes desafios da época. A crise dos cartoons de 2005, que começou quando o jornal dinamarquês Jyllands-Posten publicou algumas tiras de banda desenhada que caricaturavam o Profeta Maomé, demonstrou que existia, em vários países europeus, uma nova forma de xenofobia, associada à ideia de que os imigrantes, em especial muçulmanos, ameaçavam a sua identidade política e cultural. Ao mesmo tempo, demonstrou a persistência de alguns grupos extremistas associados a ideologias identitárias, em especial no sul da Europa, assim como a vontade de alguns líderes políticos em adotar posições semelhantes, de forma a aumentar a sua reputação a curto-prazo. Assim, esta crise demonstrou como a intolerância com a diferença, especialmente demonstradas através da islamofobia e do antissemitismo, se tornou central nos movimentos populistas (Vasconcelos et al., 2007).

A crise dos cartoons foi, acima de tudo, uma crise política, apesar das tentativas de a tornar numa crise cultural e religiosa. Na Dinamarca, o assunto foi alimentado pelas tensões entre a comunidade muçulmana e a extrema-direita xenófoba. Já no Médio Oriente, o incidente foi analisado no contexto do debate das reformas políticas, o crescimento do Islão político, assim como das crises regionais e internacionais. De facto, esta crise confirmou que perceções negativas do “eu” versus “os outros” se tinham desenvolvido na região Euro-Mediterrânica, refletindo as tensões acumuladas, em especial devido à guerra no Iraque, à questão da Palestina, aos atentados terroristas na Europa e às decisões da administração Bush. A manipulação política do tema que é, por si só, sensível, serviu para aumentar estereótipos e intolerância (Ibid.).

Tendo em conta este contexto, o relatório do EuroMeSCo confirmou a crescente popularidade de teses como o “choque de civilizações” de Samuel Huntington, assim como o desenvolvimento da política identitária na região. Segundo o relatório, o recurso à tese do “choque de civilizações” para explicar a crise dos cartoons alimenta a xenofobia e os estereótipos, ao associar regiões, sociedades e religiões a determinadas atitudes. Este discurso polariza as relações na região Euro-Mediterrânica, uma vez que identifica civilizações como atores políticos em confronto. A falta de conhecimento relativamente às realidades políticas e sociais associadas a esta questão, o “knowledge gap”, teve como consequência generalizações sobre dois mundos supostamente opostos (Ibid.).

No entanto, durante a crise, a maioria dos líderes políticos, representantes das comunidades de migrantes e sociedade civil optaram pelo debate político e pelas manifestações pacíficas, demonstrando vontade em evitar mais divisões. A mesma atitude verificou-se entre grupos islâmicos no sul do Mediterrâneo, o que indica a possibilidade de um “destino partilhado” (“shared fate”) e interesses comuns para a região Euro-Mediterrânica (Ibid.).

Assim, paradoxalmente, a crise dos cartoons demonstrou que pode existir uma base política para concretizar os objetivos da Parceria Euro-Mediterrânica. Além disso, a própria parceria pode contribuir com uma abordagem concreta para gerir crises como esta, uma vez que tem como objetivo a construção de uma comunidade democrática entre diversas culturas e religiões. Esta comunidade baseia-se no princípio da inclusão dentro da diversidade, na medida em que todos os cidadãos devem gozar os mesmos direitos, incluindo o direito à diversidade cultural no contexto do princípio da hospitalidade (Ibid.).

O princípio da hospitalidade foi um conceito tratado pelo IEEI como a resposta mais acertada às questões da imigração em oposição à simples coexistência e tolerância, nomeadamente no II Congresso Nacional – “Portugal e o Futuro da Europa”. Este princípio diz-nos que os imigrantes e respetivas comunidades devem gozar os mesmos direitos dos restantes cidadãos, uma vez que são, acima de qualquer diferença cultural ou religiosa, seres humanos. Por outras palavras, o princípio da hospitalidade permite-nos ver o “outro” não como de origem, nacionalidade, religião ou “civilização” diferente, mas como intrinsecamente igual, porque além das diferentes características que, para muitos, poderiam separar, existe uma característica fundamental que une: a da humanidade que partilhamos. Além do mais, este tem sido o princípio que tem permitido a existência de democracias e comunidades como a própria UE, pelo que deve ser também aplicado a imigrantes e cidadãos de países terceiros (Adbulá, 2007; Maciel, 2005; Vasconcelos et al., 2007).

Perante isto, o IEEI, nomeadamente através do relatório do relatório do EuroMeSCo, admite que a Parceria Euro-Mediterrânica depende não apenas da capacidade de democratização dos Estados do sul do Mediterrâneo, mas também da capacidade da UE em aceitar a sua diversidade interna e transformações culturais, abordando o tema das migrações de acordo com os valores da própria União. Neste contexto, o IEEI sugere um conjunto de recomendações políticas para a inclusão e a diversidade no seio da Parceria. Primeiramente, a tomada de iniciativa contra a intolerância e a xenofobia, estabelecendo um conselho contra a discriminação e o racismo e um observatório sobre racismo e intolerância. Em segundo lugar, a criação de uma Carta para os direitos dos migrantes, com foco na igualdade através da participação política. Em terceiro, uma iniciativa comum para ultrapassar o referido “knowledge gap”, organizando uma Convenção sobre a sociedade baseada no conhecimento. E finalmente, a promoção do pluralismo artístico e liberdade intelectual no espaço Euro-Mediterrânico, reorientando o mandato da Fundação Anna Lindh, que promove o diálogo intercultural na região (Vasconcelos et al., 2007).

Conclusão

Entre 2004 e 2009, o IEEI publicou um conjunto de artigos científicos e organizou diversas conferências sobre as políticas de imigração e asilo da União Europeia, analisando as tensões entre segurança, cidadania e direitos humanos.

Neste dossier, preparado para a Conferência “Migrações e Segurança”, a decorrer no dia 3 de outubro, em Évora, analisamos os principais artigos publicados pelo IEEI nesta temática. Assim, foi possível compreender que as políticas da UE nesta matéria foram evoluindo de uma lógica intergovernamental para uma abordagem comunitária, passando também do foco no controlo para o foco na gestão da imigração.

Ao mesmo tempo, mantiveram uma consistente abordagem às questões do mercado de trabalho e crescimento económico, sendo a imigração vista como uma mais-valia para a União, apesar das consequências negativas para os países de origem, em especial devido à “fuga de cérebros”. Foi também possível verificar uma crescente vontade, por parte da UE em cooperar com os países de origem no que diz respeito à gestão de migração, não só nas questões relativas ao emprego e qualificação da mão de obra, mas também em relação à imigração ilegal e repatriamento de migrantes, como é especialmente possível observar no Pacto Europeu de Imigração e Asilo de 2008.

Finalmente, foi também possível compreender a tensão entre segurança e direitos humanos. Por um lado, verifica-se a preocupação com o crescimento de redes de crime organizado, especialmente de tráfico de seres humanos, mas por outro, com o aumento da imigração ilegal por si só. Relativamente a este último ponto, Maias e Lemas (2004), trazem uma reflexão relevante. Segundo os autores, pensar em segurança no contexto de ameaça grave, como no caso de terrorismo, é afirmar que, por vezes, a segurança se impõe como central na vida política, económica e social de um Estado. No entanto, é fundamental questionar que medidas se podem tomar e se os direitos humanos se podem desrespeitar em nome da segurança, ou se, ao desrespeitá-los, não estaremos a criar um clima de insegurança ainda maior. Assim, é fundamental relembrar que “os direitos fundamentais do Homem são universais, indivisíveis e inalienáveis”. O aumento da imigração, especialmente da imigração ilegal, para países da UE está relacionado com a conjuntura política, social e económica dos países de origem, que estimula a emigração. No entanto, a questão fundamental reside na forma como estes cidadãos são recebidos nos países de acolhimento, ou seja, como serão tratados os seus direitos fundamentais.

Neste sentido, o trabalho do IEEI sobre xenofobia, especificamente islamofobia, sobre o princípio da hospitalidade e a oportunidade de criar uma União que respeita a diversidade cultural e os direitos humanos foi fundamental, uma vez que procurou ter um contributo concreto para o aperfeiçoamento das políticas nesta área, nomeadamente através do relatório “Getting it Right: Lessons of the “Cartoons Crisis” and Beyond” (Vasconcelos et al., 2007).

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Mafalda Infante, 3 de outubro de 2024