[Dossier] A Política de Defesa Portuguesa: Lições da Bósnia e da Guerra da Ucrânia

A participação de Portugal no esforço de implementação da paz na Bósnia-Herzegovina – IFOR – em 1996, impulsionou uma renovação da Política Externa e de Defesa Nacional no quadro europeu, marcada pelo abandono das considerações tradicionais assentes na neutralidade e não-intervenção.  Motivado pelo clima de mudança, o Instituto de Estudos Estratégicos Internacionais (IEEI) desempenhou um papel de relevo, ao captar o debate da sociedade civil, de académicos e de militares acerca das consequências da presença portuguesa nos territórios da antiga Jugoslávia. A diversidade das análises produzidas no seio do Instituto encontra-se compilada na edição de 1999 da “Estratégia – Revista de Estudos Internacionais” que se debruçou sobre a temática “Portugal na Bósnia”.

Contudo, os debates promovidos pelo IEEI acerca da então possível partida de um batalhão português para aquela parte da Europa começaram mais cedo.  Em novembro de 1995, decorreu em Portugal a XIII Conferência Internacional de Lisboa, organizada pelo IEEI, subordinada ao tema “A União Europeia e as Nações Unidas”. Na sua intervenção final, Álvaro de Vasconcelos referiu a importância central da presença nacional na Bósnia, alinhando-se com os 51,4% dos inquiridos da sondagem do Diário de Notícias/TSF-Euroteste desse mês, quando afirmou que “(…) o envio do batalhão significa contribuir para o alargamento dessa fronteira de segurança, de estabilidade (…) e, por isso, Portugal deve estar na Bósnia. Deve estar na Bósnia porque de facto é um interesse vital para Portugal a continuação do projeto europeu, da UE. O projeto da UE joga-se também, e fortemente, nos conflitos dos Balcãs, nos conflitos da Europa Central, na capacidade da Europa resolver e enfrentar conjuntamente os desafios das suas fronteiras”.[1]

Foi precisamente este o cenário que se verificou a partir de 5 de janeiro de 1996, como mostra a cronologia comentada de João Paulo Costa[2], onde estão patentes os acontecimentos marcantes sobre a presença portuguesa nas missões de paz. A Bósnia mostrou-se um imperativo político para Portugal. Por isso, dois anos depois, em 1998, a XVI edição da Conferência Internacional de Lisboa dedicou-se às “Lições da Bósnia para a Política de Defesa”, levando José Calvet de Magalhães a sublinhar que a partida do batalhão português “(…) constitui um dever de solidariedade que lhe impõe a sua participação na União Europeia”[3].

Neste contexto, as publicações e conferências do IEEI que se seguiram procuraram conciliar as motivações de natureza ética e política com a questão dos interesses nacionais no quadro europeu, sublinhando o forte contraste destas operações com a participação na Grande Guerra de 1914-1918.  Para Nuno Severiano Teixeira, foi no quadro político e diplomático que a presença militar nas operações de paz trouxe maiores benefícios. Dizia que “Durante um longo período, Portugal foi um consumidor líquido de segurança internacional. Porém, com este tipo de participação e este grau de empenhamento das Forças Armadas portuguesas em África, nos Balcãs, e em outras zonas, Portugal torna-se um produtor de segurança internacional. E, ao tornar-se num produtor de segurança internacional, o reflexo mais evidente vai traduzir-se ao nível político e diplomático, na credibilidade do Estado, na performance internacional do país e no prestígio de Portugal na cena internacional.[4] Esta rutura com a política tradicional de não-envolvimento gerou um fenómeno que Álvaro de Vasconcelos apelidou de “Europeização da Política de Defesa”, uma vez que Portugal estava militarmente na Bósnia porque as questões europeias nos diziam directamente respeito, porque tínhamos a pretensão de ter um papel activo na construção de uma Europa democrática e estável”.[5]

A reflexão conduzida pelo IEEI beneficiou também dos resultados de um estudo sobre a forma como os media portugueses e, em particular, a imprensa escrita, reagiram a esta quebra da política isolacionista herdada do Salazarismo. Teresa de Sousa revela que “A imprensa não soube vencer esta tradição, porventura como outros setores da sociedade portuguesa e, nessa medida, contribuiu muito pouco para fortalecer no País um espírito internacionalista e europeu com o novo estatuto internacional de Portugal, como membro da União Europeia”.[6] Contudo, a exceção foi representada pelo Jornal Público que devido à sua postura editorial voltada para a União Europeia foi espaço de análises, comentários e opiniões sobre a matéria.

Era, portanto, uma prioridade produzir conhecimento sobre os processos sociopolíticos sentidos em Portugal que derivavam da experiência na Bósnia através da auscultação dos agentes sociais que protagonizavam e conferiam significado a esta nova realidade da Política Externa.

Foi neste sentido que Helena Carreiras efetuou um inquérito junto do contingente que tomou parte na operação militar na Bósnia-Herzegovina, procurando compreender o que pensavam os militares portugueses acerca do peacekeeping. De acordo com o estudo, a experiência dos militares na Bósnia foi gratificante tanto no plano pessoal (82,9%), como, sobretudo, no plano profissional (91,3%). O desempenho do contingente português mostrou-se outro indicador fundamental com 97,1% dos militares a afirmar que o contingente esteve completamente ou bastante à altura das exigências da missão, tanto que 91,7% dos inquiridos estava disponível para participar em futuras missões internacionais. Assim, o estudo concluiu que “à participação na missão na Bósnia e à global legitimação das missões de paz se associam novos valores em termos da percepção de funções e objectivos das Forças Armadas e da própria concepção de profissionalidade militar”.[7]

O contexto da presença nacional na Bósnia expôs a nova complexidade da política externa portuguesa. Em finais de 2005, dez anos depois da partida do primeiro contingente português, Maria do Rosário de Moraes Vaz reforçava as impressões retiradas do estudo de Helena Carreiras, ao afirmar que “o bom desempenho das tropas e das forças de segurança portuguesas, na Bósnia e nas missões que se lhe seguiram, o apoio que nunca desfaleceu mesmo quando houve baixas a lamentar, tem de ser entendido, mais que como um acréscimo ao protagonismo nacional, como um contributo tangível aos resultados que essas missões proporcionavam”.[8]

À luz dos dias de hoje, onde o conflito parece ser de novo a palavra de ordem, é urgente pensar sobre as lições que podemos retirar da participação e papel de Portugal na Bósnia. As questões levantadas nos textos publicados pelo IEEI continuam a ser fundamentais para pensar os conflitos atuais, como a invasão da Ucrânia pela Rússia. Foi precisamente este o ponto de partida para a conferência realizada em novembro de 2023 no Centro Nacional de Cultura, ao abrigo do protocolo de colaboração com o Ministério da Defesa Nacional. A sessão contou com a presença da Ministra da Defesa Nacional, Helena Carreiras, e foi moderada por Álvaro Vasconcelos, antigo Diretor do IEEI. Através do formato de diálogo participativo, uma plateia composta, maioritariamente, por estudantes universitários debateu a política de defesa portuguesa, olhando para as lições conjuntas da Bósnia e da Guerra da Ucrânia. O modelo participativo permitiu explorar os conhecimentos e interesses dos participantes comprometidos com a necessidade de (re)pensar as relações internacionais e a política de defesa nacional.

A decisão de enviar um batalhão português para a Bósnia em 1996 enquadrou-se numa decisão de conciliar a postura nacional com os desafios do pós-Guerra Fria que se desenhavam no final do século. Atualmente, num mundo marcado pelo surgimento de novas ameaças sem precedente, importa olhar para o passado para retirar lições sobre qual deve o papel de Portugal na Europa e no mundo.

Mariana Cavalheiro Galvão, 17 de abril de 2024


[1] Vasconcelos, Álvaro – “Síntese final da CIL” – XIII Conferência Internacional de Lisboa – A União Europeia e as Nações Unidas, IEEI, 22 -24 de novembro de 1995

[2] Costa, João Paulo. O Envolvimento de Portugal na ex-Jugoslávia: a Participação Militar nas Missões IFOR e SFOR (1990 – 1999). Estratégia – Revista de Estudos Internacionais: Lisboa. IEEI. Nº 14 (1999)

[3] Magalhães, José Calvet – Palavras de abertura. XVI Conferência Internacional de Lisboa. Lisboa: IEEI (1998), 1-3.

[4]Teixeira, Nuno Severiano. Das campanhas de guerra às operações de paz: as intervenções militares portuguesas em teatro europeu. Estratégia – Revista de Estudos Internacionais: Lisboa. IEEI. Nº 14 (1999).

[5] Vasconcelos, Álvaro de. A europeização da política de defesa. Estratégia – Revista de Estudos Internacionais: Lisboa. IEEI. Nº 14 (1999).

[6] Sousa, Teresa de. A Imprensa Portuguesa e o Conflito na Bósnia: os Meses Decisivos. Estratégia – Revista de Estudos Internacionais: Lisboa. IEEI. Nº 14 (1999)

[7] Carreiras, Helena, O que pensam os militares portuguese do peacekeeping?. Estratégia – Revista de Estudos Internacionais: Lisboa. IEEI. Nº 14 (1999)

[8] Vaz, Maria do Rosário de Moraes – Europa: Um Interesse Vital. Mundo em Português. Lisboa. IEEI. Nº 60 (dez. 2005), pp. 21-23. págs.