[Dossier] A Segurança Europeia: da bipolaridade à multipolaridade e as ideias como arma

Introdução

O Instituto de Estudos Estratégicos e Internacionais (IEEI) desenvolveu um vasto pensamento sobre os temas de segurança e defesa europeias, incluindo o papel de Portugal neste contexto. Foram organizadas diversas conferências e publicados vários livros e artigos científicos sobre a temática, dos quais se destacam as Conferências Internacionais de Lisboa.

Neste dossier, preparado para a conferência sobre Segurança Europeia, a realizar no dia 23 de outubro de 2024, na cidade do Porto, olharemos para a evolução do pensamento do IEEI no que diz respeito às questões da Segurança Europeia, que acompanharam o desenrolar dos acontecimentos do mundo bipolar da Guerra Fria, passando pela unipolaridade americana, até à multipolaridade e crescente importância da integração regional.

Demonstraremos também como o IEEI deu grande relevância à vertente normativa da Segurança Europeia, uma vez que a força da Europa residia, além das armas, nos seus valores democráticos, assim como à influência da opinião pública sobre as estas questões.

Segunda e Defesa Europeia durante a Guerra Fria: das armas às ideias

Em 1981, o IEEI organizou a 1ª Conferência Internacional de Lisboa sobre “A Segurança Europeia e a defesa civil das grandes cidades”, cujas ideias foram publicadas num livro com o mesmo nome, em 1982.

Esta conferência foi organizada no contexto da Guerra Fria, particularmente num momento em que a União Soviética (URSS) já havia atingido a paridade nuclear com os EUA, o que trazia riscos para a segurança europeia. Neste contexto, a conferência contou com um consenso em torno de questões como a recusa de visões partidárias estreitas em relação às questões de defesa, a capacidade de enfrentar os desafios do mundo de forma realista e a necessidade de uma reflexão sobre a nova situação internacional (Vasconcelos, 1982).

No que diz respeito às relações transatlânticas, concluiu-se que os governos europeus não estavam dispostos a atribuir à defesa as dotações orçamentais que permitiriam avançar sem a proteção dos EUA. Ao mesmo tempo, o crescimento do neutralismo na Europa estaria a contribuir para o isolacionismo americano, tendo em conta que os EUA poderiam sobreviver sem a Europa, mas o oposto não seria possível. Por outro lado, era necessário que os EUA compreendessem a diversidade da política europeia e da sua opinião pública, tema que foi central ao longo da conferência e no livro a que esta deu origem (Ibid.).

Quanto à “batalha das ideias”, os autores concordaram na reflexão de que a força da Europa residia no seu caráter democrático, sendo que a luta de ideias poderia ser uma arma poderosa contra os inimigos que frequentemente as abandonam (Ibid.).

As questões do consenso nacional em matéria de defesa foram também tratadas, sendo que o consenso nacional entre cidadãos de diferentes ideologias e percursos político-partidários sobre as matérias de defesa era fundamental.

Para entendermos o pensamento produzido pelo IEEI na época, será importante fazer uma contextualização história dos desafios enfrentados pela NATO e como estes ameaçavam a segurança europeia. A intervenção do Coronel Jonathan Alford (1982), que deu origem ao capítulo “Continuidade e mudança na NATO”, é fundamental para entender este percurso. Começa por descrever o contexto histórico e político que estaria a levar à alteração das políticas americanas no seio da NATO, expondo a defesa europeia a crescentes ameaças, através de três tipos de mudanças fundamentais que se sentiram a partir de 1970. Em primeiro lugar, refere a própria mudança nuclear, ou seja, a obtenção da paridade estratégica nuclear entre os EUA e a URSS como prejudicial para a Europa, uma vez que a falta de superioridade estratégica dos EUA não garante a defesa da Europa no contexto de um ataque por parte da URSS. Em segundo lugar, a ansiedade económica, devido à crise da década de 1970, uma vez que quando as economias estagnam ou entram em recessão, a decisão de atribuir recursos ao setor da defesa em detrimento de outros setores económicos é desafiante. Finalmente, as mudanças da ordem política, nomeadamente devido aos acontecimentos no Golfo Pérsico, que levou ao alargamento da agenda estratégica e das necessidades de segurança ocidentais, que deixaram de dizer respeito apenas ao território dos Estados membros.

Segundo o autor, será difícil encontrar um consenso no seio da política ocidental no que diz respeito a assuntos de segurança a nível mundial, com a exceção da necessidade de enfrentar as ameaças do Pacto de Varsóvia, uma vez que, especialmente a partir de 1970, os EUA se tornaram mais vulneráveis e preocupados com a manutenção do seu poder e, por outro lado, a Europa viu a sua economia crescer consideravelmente. Isto trouxe uma maior competição para o seio da Aliança, pelo que os EUA necessitavam de outros aliados além da Europa, ou seja, “no mundo exterior à NATO” (Alford, 1982). Apesar do crescente poder económico dos Estados membros europeus, o autor considerou que era fundamental a Europa não se dissociar dos EUA nos assuntos de segurança e defesa referentes a países que não fazem parte da NATO, apesar da possibilidade de persuadir e moderar as políticas americanas, com vista a um crescente foco no território europeu (Ibid.).

Foi assim, neste contexto de mudança, que vários oradores da 1ª Conferência Internacional de Lisboa apontaram para a necessidade de olhar para a dimensão cultural e normativa da aliança, assim como de alertar e educar a população sobre as temáticas de segurança e defesa. Segundo Baptista Comprido (1982), a dimensão cultural da aliança havia sido, ao longo das décadas anteriores, descuidada, em especial ao nível das gerações mais jovens, sendo destas gerações que acabou por partir a maior oposição ao reforço da NATO. Segundo o autor, as gerações jovens da época “desprezam ou desconhecem os princípios básicos da civilização ocidental” e não têm sentido de cidadania para proteger os valores da “filosofia de vida do Ocidente” (Baptista Comprido, 1982).

Desta forma, era necessário investir no “sistema educativo ocidental”, uma vez que este não estava preparado para formar os jovens para a aplicação dos princípios democráticos ocidentais através das instituições políticas e económicas. Este programa escolar deveria incluir a descrição da herança ocidental comum, desde a sua história, perspetivas e fatores de divisão e união, assim como a dimensão internacional de responsabilidade do cidadão, incluindo questões relativas à sociedade internacional atual (Ibid.).

No mesmo sentido, Joseph Godson (1982), faz referência às diferentes perceções nas relações Europa-América, tentando dar resposta às razões para as mudanças nas atitudes europeias perante a defesa. Por um lado, aponta para a possibilidade de se poder negligenciar a defesa, uma vez que a situação internacional havia evoluído bastante nos anos anteriores, mas acredita que esta não será a resposta mais plausível. Em segundo lugar, refere que as atitudes psicológicas em relação aos temas de segurança e defesa se alterara à medida que as novas gerações se envolviam na cena política europeia, revelando a sua falta de memória histórica.

Em terceiro lugar, admite que as atitudes perante as questões de defesa são bastante voláteis, pelo que são facilmente influenciadas por um determinado acontecimento de grande relevância. Passado esse acontecimento, a necessidade de colocar esforços na defesa deixa de ser sentida. De seguida, o autor menciona que os media contribuem para a crença de que há uma grande rivalidade entre as duas superpotências, o que faz com que a Europa seja menos segura. Assim, a ideia de que se a Europa fosse neutral ou não-alinhada estaria mais protegida é frequente em debates sobre as questões de defesa em vários países (Godson, 1992).

Ademais, os partidos de esquerda revelaram-se, um pouco por toda a Europa, contra a defesa, o que parecia demonstrar uma ligação entre o movimento europeu anti defesa e a propaganda soviética, além de que durante os vários anos em que a URSS liderou os programas nucleares, não se verificaram os mesmos protestos. Apenas após o anúncio da NATO sobre a vontade de recuperar os seus programas nucleares é que se verificaram manifestações contra a guerra nuclear. Pelo contrário, as atitudes americanas no que concerne a defesa evoluíram em sentido oposto, havendo um maior consenso sobre a necessidade de investir na área (Godson, 1982).

Perante o exposto, António Gomes de Pinho (1982), esclarece alguns dos desafios enfrentados pelas populações e que podem também explicar a falta de interesse nas questões de segurança e defesa. No plano económico, a inflação e a inacessibilidade a determinadas matérias-primas abalam os sistemas. Ao nível social, o desemprego, a instabilidade social generalizada, o aparecimento de novas vozes jovens cada vez mais ativas e a alteração dos padrões de vida são também novas questões a ter em conta. Finalmente, na dimensão política, a instabilidade das relações internacionais, a crise do Estado e a crítica das instituições, assim como o terrorismo internacional, são alguns exemplos de desafios que, segundo Gomes de Pinho (1982), o mundo enfrentava.

Gomes de Pinho (1982), que reconhece a importância de uma opinião pública favorável aos investimentos na segurança, realça o papel dos meios de comunicação social e do sistema educativo. Estes são fundamentais para “a esperança do mundo ocidental [que] radica na superioridade ética e cultural das respostas que a sociedade pluralista é capaz de segregar.”

Assim, a 1ª Conferência de Lisboa tratou essencialmente das questões de defesa e segurança com base na “força das ideias”, uma vez que, tal como demonstrou Francisco Lucas Pires (1982), “[as] estratégias passam pela linguagem e pelos conceitos e não apenas pelas armas e pelo comércio.” No entanto, e não deixando de considerar o contexto histórico e internacional em que esta conferência decorreu, será importante, aos dias de hoje, refletir sobre utilização de expressões como “civilização ocidental” ou “superioridade ética e cultural [do ocidente]”, que perpetuam noções de “eu” vs. “o outro”.

O fim do mundo bipolar e a “desestrategização” das relações internacionais

Em 1989, o IEEI organizou a VII Conferência Internacional de Lisboa, sobre “A Segurança Europeia e os Fatores de Multipolaridade Mundial”, num contexto bastante diferente do da conferência anteriormente referida.

Após as derrotas sofridas pelos EUA no Vietname e pela URSS no Afeganistão, assim como a implementação da perestroika, o “declínio americano”, a afirmação económica do Japão e o reforço da construção europeia através do Ato Único, começou a falar-se do fim do mundo bipolar (Vasconcelos, 1989).

Se ao nível global o mundo ainda era tido como bipolar, no plano regional, o mundo era cada vez mais multipolar. Assim, no plano global, em 1989, encontrávamo-nos numa fase de reorganização e transformação. Neste contexto, surge a questão de Fukuyama, sobre se teríamos chegado ao “fim da história”, ao fim da “evolução ideológica” ou até mesmo à “universalização a democracia liberal”, ou seja, a uma vitória do liberalismo político e económico (Vasconcelos, 1989). Segundo Vasconcelos (1989), esta é uma visão dogmática, uma vez que, por um lado, as reformas de Gorbatchev ou a vitória do reformismo a leste poderiam não singrar, podendo surgir uma nova alternativa ao liberalismo ocidental.

Neste novo contexto internacional, entende-se que os EUA e a URSS não foram capazes de compreender que os problemas do “Terceiro Mundo” não eram suscetíveis de se inserir nas suas respetivas ideologias, que condicionaram as prioridades estratégicas. Assim, uma das consequências mais visíveis da “desestrategização” das relações internacionais tem que ver com a definição de prioridades nas questões do desenvolvimento económico, das relações culturais, do progresso científico e técnico, e dos direitos humanos (Ibid.).

Quanto à redefinição estratégica da Europa após o Ato Único de 1982, Álvaro de Vasconcelos (1989), no contexto da VII Conferência Internacional de Lisboa, aponta para duas opções: a Europa pode fechar-se e alargar-se apenas para leste, ou pode também abrir as portas a sul, tendo um papel fundamental na resolução dos problemas regionais, aproveitando as condições trazidas pelo fim do mundo bipolar, que contribuem para o reforço da cooperação internacional através do multilateralismo político e económico (Ibid.).

A evolução das políticas de segurança e defesa

Em 2003, o IEEI organizou o Congresso “Portugal e o Futuro da Europa”, agora num contexto de tentativas de aprofundamento da autonomia estratégica da UE.

Devido ao fracasso da Comunidade Europeia de Defesa (CED), em 1954, e dos Planos Fouchet, em 1962, as noções de segurança e defesa desaparecem dos textos e fundadores da construção europeia, focando-se na integração económica. A Guerra Fria trouxe uma nova relação de segurança e defesa com os EUA, pelo que a defesa coletiva é atribuída à NATO, os Estados detêm os instrumentos diplomáticos e as Comunidades Europeias passam a promover o desenvolvimento económico e social (Leitão, 2003).

A “crise dos euromísseis” suscitou o questionamento da segurança europeia, pelo que o Conselho de Ministros extraordinário da União da Europa Ocidental (UEO), de outubro de 1984, avança com a reativação desta mesma aliança de defesa coletiva (Ibid.).

O Ato Único Europeu de 1986 vem formalizar a Cooperação Política Europeia (CPE), realçando a necessidade de uma cooperação estreita nas questões económicas e políticas relativas à segurança europeia, reforçando assim a “identidade da Europa” em matéria de política externa. No entanto, o Tratado define que as questões militares de segurança e de defesa continuam a ser objetivo de uma cooperação no âmbito da UEO e da NATO (Ibid.).

O Conselho de Ministros dos Negócios Estrangeiros e da Defesa da UEO, em outubro de 1987, ao adotar a “Plataforma sobre os interesses europeus em matéria de segurança”, reativou a UEO, permitindo o desenvolvimento da identidade europeia em matéria de defesa, mas dentro dos compromissos assumidos no seio da NATO (Ibid.).

Assim, a noção de segurança apenas reaparece nos textos fundadores com o Tratado de Maastricht de 1992, através da Política Externa e de Segurança Comum (PESC). A, agora, União Europeia, começa a desenvolver uma nova cooperação política nesta área, abrangendo todos os aspetos civis e militares da segurança. O Tratado de Maastricht definiu a UEO como componente da política de defesa comum, através de um vínculo jurídico-político e como “pilar Europeu da NATO” (Ibid.).

No entanto, a PESC começa a demonstrar fragilidade ainda antes do Tratado entrar em vigor. A Guerra do Golfo e os conflitos na ex-Jugoslávia confrontaram as Comunidades e, mais tarde, a União Europeia com a sua incapacidade política e militar, assim como a sua dependência face aos EUA (Ibid.).

Quanto à UEO, desenvolveram-se expectativas acerca do seu reforço operacional devido à sua participação, ainda que limitada, na Guerra do Golfo. Assim, o Conselho da UEO de junho de 1992 previu a criação das “missões de Petersberg” (além das tradicionais missões de defesa coletiva já existentes), através das quais os Estados membros da UEO, sob o seu comando, podem realizar missões de peace making, peace keeping e peace enforcement. Para realizar estas missões, a UEO utilizaria os meios da NATO, que, na Cimeira de janeiro de 1994, acaba por iniciar essa cooperação (Ibid.).

No pós-Guerra Fria dá-se a reorganização e readaptação da NATO aos mais recentes problemas de segurança e defesa associados aos conflitos nos Balcãs e, em nome da estabilidade do continente europeu, são necessárias opções baseadas na flexibilidade, interoperacionalidade e interoperabilidade das forças militares, através do conceito Combined Joint Task Forces (CJTF) ou Forças de Reação Rápida (Ibid.).

A Cimeira da NATO de 1996 marca o início do processo de “europeização” da segurança, formalizando a Identidade Europeia de Segurança e Defesa (IESD) e a UEO no seio da NATO, e fortalecendo, assim, a aliança euro-americana no que diz respeito à capacidade estratégica europeia. A partir deste momento, a Europa Estratégica fica delimitada à “gestão de crises”, com base na cooperação entre NATO, UEO e UE, com base no referido conceito de CJTF. No entanto, os EUA mantiveram o direito de veto sobre o uso dos recursos da NATO (Ibid.).

O Tratado de Amsterdão de 1997 consolidou esta dimensão de política de defesa comum da UE, focada nas “missões de Petersberg”, que seriam realizadas através da capacidade militar da UEO em cooperação com a NATO. Assim, a UEO passou a ser juridicamente e organicamente dependente da União Europeia, sendo considerada o seu “braço armado”, com a possibilidade de uma futura integração plena na União (Ibid.).

No entanto, em 1997, as divergências entre os EUA e a França relativas ao Comando Sul da NATO, assim como a política externa unilateralista do Presidente Clinton, convenceram o governo trabalhista de Blair de que os EUA não estavam interessados em fortalecer o processo de “europeização” da NATO, concentrando-se no alargamento para leste e na sua “globalização” (Ibid.), o que explica a decisão adotada na cimeira franco-britânica de 1998, que refere que a UE necessita de uma capacidade autónoma de ação, apoiada em forças militares credíveis para contribuir para uma Aliança renovada (Ibid.).

Antes do início deste processo, a decisão franco-britânica foi aceite por todos os Estados membros (à exceção da Dinamarca) e ratificada pela Cimeira da NATO de abril de 1999, através da condição “Berlim Plus”, permitindo que países europeus que sejam membros da NATO, mas não da UE, participem na política de segurança e defesa comum sempre que forem utilizados recursos da Aliança. No entanto, a França e o Reino Unido começaram a demonstrar visões diferentes acerca da decisão de 1998, uma vez que o governo de Blair via as “capacidades autónomas” como uma forma inteligente de usar os recursos da NATO e o presidente Chirac considerava a criação dessas capacidades um passo crucial para reduzir o desequilíbrio entre o poder militar dos EUA e o da Europa. (Ibid.).

Assim, o modelo adotado pelo Tratado de Amsterdão foi parcialmente abandonado, uma vez que, nos Conselhos Europeus de Colónia e Helsínquia, em dezembro de 1999, os Estados membros decidiram dotar a União Europeia de capacidades militares e civis próprias. Ao nível militar, foi criada uma Força de Reação Rápida, com até 60.000 militares e, ao nível civil, investiu-se na política e em peritos de “nation building”, que deveriam estar operacionais até 2003. Reforçaram-se também as dimensões de prevenção de conflitos das políticas externas da UE, com o desenvolvimento de um programa específico de prevenção de conflitos violentos (Ibid.).

Em 2001, o Tratado de Nice formalizou a nova Política Europeia de Segurança e Defesa (PESD) e o acordo entre os Estados membros relativamente à sua institucionalização, estabelecendo estruturas como o Comité Político e de Segurança, o Comité Militar e o Estado-Maior da UE. Assim, passamos a estar perante uma UE com uma dimensão militar (Ibid.).

Apesar dos avanços, nomeadamente em termos de capacidades, e do acordo de parceria estratégica entre a NATO e a UE, assinado em dezembro de 2002, que permitiu à União aceder a recursos e estruturas da NATO para planeamento militar operacional e estruturas de comando, tanto a PESC como a PESD foram reavaliadas no contexto da Convenção Europeia sobre o Futuro da Europa, tendo em conta o alargamento da UE e as novas ameaças à segurança comum, especialmente após o 11 de setembro. Além disso, a PESD acabou por ser bastante questionada pela conjuntura internacional da época, nomeadamente pela influência da política externa americana, tanto no plano europeu, através do reforço da NATO, como através da nova doutrina americana que assume que as coligações a estabelecer dependem das missões que surjam (Ibid.).

Segundo Leitão (2003), a União Europeia, através da Comunidade Europeia e da União Económica e Monetária, tem um enorme peso enquanto ator internacional, sendo a maior potência comercial do mundo, ao lado dos EUA e do Japão. De facto, instrumentos como a política comercial comum, a cooperação para o desenvolvimento, a gestão ambiental global, a ajuda humanitária e a defesa dos direitos humanos são essenciais à sua Política Externa e de Segurança Comum. Estes instrumentos, que se concretizam através de soft policies, constituem a dimensão civil da UE, permitindo-lhe atuar como um “amortecedor de potência” em relação à hiperpotência americana. No entanto, no seio da, segundo o autor, ordem internacional unipolar, a dimensão de “potência-civil” tem-se mostrado insuficiente para que a União se afirme como um ator internacional credível.

Perante este contexto, surgia uma divisão na visão sobre o futuro papel da União Europeia no cenário internacional. Uns defendiam que a UE deveria afirmar-se como um ator estrategicamente autónomo, sem temer o desagrado dos EUA. No entanto, outros, que com o alargamento de 2004 se tornariam a maioria, veem a UE como um espaço de prosperidade económica e social e de estabilidade política. Para os últimos, a segurança e a defesa da UE devem basear-se numa relação especial com os EUA, priorizando a cooperação transatlântica. Assim, Leitão (2003) afirma que se deve repensar as relações transatlânticas, de forma a instituir-se uma verdadeira parceria de “aliados, mas não alinhados”.

De facto, a PESC nunca se debruçou sobre as relações transatlânticas, pelo que cada Estado membro geria a sua própria relação com os EUA. Como conclui Leitão (2003), este vazio estratégico deu espaço aos EUA para “manipularem” as divisões observadas na Europa. No entanto, o autor refere também que o fim da Guerra Fria trouxe uma “mudança de vocação” para a UE enquanto ator internacional, pelo que os aliados europeus deverão esforçar-se por reforçar as suas capacidades militares, de forma a serem vistos como parceiros credíveis para os EUA.

Deste modo, a UE enfrentava grandes desafios, especialmente devido ao alargamento a dez novos Estados membros, o que traria uma nova diversidade cultural e ao nível do desenvolvimento. No entanto, este alargamento significava também a transição para um mundo em que a violência é substituída pela negociação e pelo diálogo democrático, por uma solidariedade coletiva (Ibid.).

Neste contexto, a UE enfrentava dois desafios contraditório. Por um lado, um sistema internacional que valorizava as ideologias soberanistas, com foco na segurança e na responsabilidade dos Estados, e por outro, o seu alargamento, que promove a partilha de soberania, vendo a paz e a cooperação como essenciais. Assim, questionava-se como os Estados membros iram conseguir equilibrar estas duas posições (Leitão, 2003).

O predomínio americano no sistema internacional fazia, assim, com que a UE e os seus Estados membros tomassem opções claras quanto à sua política de segurança e defesa. Desta forma, a primeira opção seria direcionar a PESD para que fosse um subsistema atlântico, dependente da NATO e servindo como extensão do papel global dos EUA, ou, então, desenvolver a PESD com vista à autonomia estratégica, com o objetivo de criar uma União Europeia de Segurança e Defesa que defenda dos valores comuns, a sua independência e promova a paz e os direitos humanos (Ibid.). Segundo Leitão (2003), o contexto de hegemonia americana e de desvalorização da NATO por parte dos EUA, exigia maiores esforços no âmbito da PESD, mas também ao nível da NATO, de forma a que a UE possa desempenhar um papel decisivo na restruturação do sistema internacional.

Num contexto de divergências entre Estados membros relativamente à segurança e defesa, o desafio de estabelecer uma União Europeia de Segurança e Defesa deverá ser enfrentado no contexto de uma União de geometria variável. Isso significa que será necessário recorrer, de forma particular, às “cooperações reforçadas”, um mecanismo que o Tratado de Nice tentou aperfeiçoar e flexibilizar. O Embaixador Seixas da Costa já havia considerado esse mecanismo de integração diferenciada como “a chave do sucesso do futuro da União”, ideia também subscrita por Leitão (2003), uma vez que “tal heterogeneidade e diversidade não pode, nem deve, impedir que os Estados membros que estejam em melhores condições e politicamente decididos desenvolvam em comum, e sempre de modo aberto, “cooperações reforçadas” com vista ao desenvolvimento e aperfeiçoamento da dimensão militar da segurança e defesa da União Europeia.”

As linhas estratégicas da política de defesa portuguesa com vista à construção de uma Europa de defesa

Em 2005, a XXIII Conferência Internacional de Lisboa foca o papel de Portugal na construção das políticas de defesa e segurança da UE, tema também amplamente tratado pelo IEEI.

A Estratégia Europeia de Segurança, de dezembro de 2003, identificou um conjunto de ameaças às quais a União deveria fazer frente, nomeadamente o terrorismo, a proliferação de armas de destruição maciça, os conflitos regionais, os Estados falhados e o crime organizado. A Estratégia aponta ainda para o facto de os Estados não serem capazes de resolver esses problemas sozinhos, pelo que era fundamental que Portugal contribuísse ativamente para os esforços dos aliados. Assim, através de uma Europa de Defesa, Portugal consegue defender os seus interesses, contribuindo simultaneamente para a afirmação da União Europeia como ator global (Gomes, 2005).

O debate sobre o contributo de Portugal para a defesa europeia estava, à época, refém do receio de competição com a NATO. De facto, existem ambiguidades na relação entre a NATO e a UE que devem ser solucionadas. No entanto, a NATO é uma aliança puramente militar, ao invés da União Europeia, que está a adquirir capacidades militares para dotar-se com mais essas ferramentas fundamentais para a sua ação externa e que inclui também políticas de desenvolvimento, de comércio, de ajuda humanitária, e a PESC, que vai além da segurança e defesa, incluindo, por exemplo, a prevenção de conflitos (Ibid.).

Sendo Portugal um país com poucos recursos, é importante que não se dupliquem esforços, pelo que as Forças Expedicionárias da NATO e o Grupo de Intervenção Rápida da UE devem ser compatíveis. Ao nível das capacidades, é importante garantir a compatibilidade entre os compromissos da NATO e o Plano de Ação Europeu. A criação da Agência Europeia de Defesa promete uma mais coerente direção estratégica e uma coordenação mais próxima com a NATO (Ibid.).

É importante que Portugal contribua para a modernização tanto da NATO quanto da União Europeia. Por um lado, a NATO é essencial para a cooperação transatlântica na área da defesa, enquanto que a UE oferece aos Estados membros a oportunidade de desenvolver a autonomia estratégica e investir em capacidades que nenhum país europeu conseguiria alcançar sozinho. Uma Europa mais forte e integrada beneficia a aliança com os EUA. Além disso, a UE, comprometida com o multilateralismo e os princípios da ONU, reforça a segurança global e a “responsabilidade de proteger” (Ibid.).

Portugal, tendo em conta a sua tradição atlantista, pode beneficiar ao contribuir para a construção de uma União Europeia da Defesa, enquanto a NATO redefine a sua identidade. Isso permitirá ao país participar no diálogo transatlântico de defesa, crucial para o multilateralismo e para a modernização das forças da NATO, ao mesmo tempo que apoia a autonomia estratégica da União Europeia. Tal autonomia não visa contrariar os EUA, mas sim garantir que a Europa possa agir de forma independente, caso necessário (Ibid.).

Neste contexto, e relembrando as referências à importância da opinião pública para as questões de defesa e segurança feitas durante a I Conferência Internacional de Lisboa, Ana Gomes (2005), refere que o aprofundamento da defesa no projeto europeu pode unir a opinião pública em torno da União Europeia como poucos outros temas. Segundo o Eurobarómetro de 2005, 67% dos europeus apoiam uma política externa comum, enquanto 77% são a favor de uma defesa comum. Apesar do sentimento de insegurança global, especialmente devido ao terrorismo, não há disposição entre cidadãos e governos para aumentar os gastos com defesa além de 1,9% do PIB. A solução está em gastar de forma mais eficiente e integrada. Assim, os europeus esperam que a UE desempenhe um papel ativo na paz e segurança globais, prevenindo conflitos e assumindo a “responsabilidade de proteger”.

Conclusão

Este dossier pretendeu analisar a evolução do pensamento do IEEI sobre a Segurança Europeia no contexto da bipolaridade da Guerra Fria até à multipolaridade e o fortalecimento da integração regional após 1989.

De facto, o IEEI desenvolveu um vasto pensamento sobre os temas de segurança e defesa europeias, incluindo o papel de Portugal neste contexto. As Conferências Internacionais de Lisboa entre os anos de 1982 e 2005 foram fundamentais para o debate sobre a Segurança Europeia. Por um lado, enquadraram a segurança europeia no seio da NATO, ao mesmo tempo que analisaram as principais iniciativas políticas da CEE e, mais tarde, da União Europeia na área da segurança e defesa.

Por outro lado, olharam para a necessidade de preservar as relações entre a Europa e os EUA no contexto da NATO, não deixando de realçar a importância do investimento nas políticas de segurança e defesa da União Europeia e da sua autonomia estratégica.

Finalmente, centraram também a atenção na dimensão normativa da Segurança Europeia, cuja força residia nos seus valores de liberdade e democracia.

Referências

Godson, Joseph – Diferentes percepções nas relações Europa-América: A Segurança Europeia e a defesa civil das grandes cidades. Estudos Estratégicos. Lisboa: IEEI, 1982, pp.26-31

Gomes, Ana – As grandes linhas estratégicas da política de defesa portuguesa – construindo uma Europa da defesa. XXIII Conferência Internacional de Lisboa: Portugal na Europa e no Mundo. Lisboa: IEEI. 2005

Leitão, Rogério – “A Política Europeia de Segurança e Defesa: Que Futuro?”. III.2: Política externa e de segurança comum, Política europeia de segurança e defesa, Congresso Portugal e o Futuro da Europa. Lisboa: IEEI, 2003

Pinho, António Gomes – A Defesa e a importância da opinião pública: A Segurança Europeia e a defesa civil das grandes cidades. Estudos Estratégicos. Lisboa: IEEI, 1982, pp.63-65

Pires, Francisco Lucas – A defesa do Ocidente e a revolução das ideias: A Segurança Europeia e a defesa civil das grandes cidades. Estudos Estratégicos. Lisboa: IEEI, 1982, pp.49-53

Vasconcelos, Álvaro – Nem só de armas vive a estratégia: A Segurança Europeia e a defesa civil das grandes cidades. Estudos Estratégicos. Lisboa: IEEI, 1982, pp.110-114

Vasconcelos, Álvaro – “A segurança europeia e os factores de multipolaridade mundial”, 7th INTERNATIONAL LISBON CONFERENCE EUROPEAN DEFENSE AND ATLANTIC CONSENSUS, IEEI, 9th-11th November, 1989

Mafalda Infante, 03 de outubro de 2024