O IEEI e a sua alta reputação como organização não governamental dedicada aos estudos estratégicos e às relações internacionais está estreitamente ligado, na minha memória, às funções governativas que exerci na área da defesa nacional a partir de 9 de junho de 1983.
Foi nessa data que tomou posse o IX Governo Constitucional de Portugal chefiado por Mário Soares, constituído por uma coligação pós-eleitoral entre o Partido Socialista e o Partido Social-Democrata, um verdadeiro governo de salvação nacional para executar um “programa conjuntural de emergência” e com a missão patriótica de resolver a gravíssima crise económica e financeira com que o País se debatia. Com Ernâni Lopes a chefiar o Ministério das Finanças e a negociar um empréstimo com o FMI foi possível restabelecer os equilíbrios financeiros e preparar as condições para a integração europeia e o início de uma prolongada fase de progresso e desenvolvimento económico e social no nosso País.
O lugar de Ministro da Defesa Nacional foi exercido, em regime de acumulação, pelo Vice-Primeiro-Ministro Carlos Mota Pinto, presidente do PSD e antigo primeiro ministro. Atribuir um lugar cimeiro na hierarquia governamental ao Ministro da Defesa que, pela primeira vez, em democracia, assumia poderes de administração das Forças Armadas, era, intencionalmente, um sinal do prestígio das Forças Armadas e de respeito pelos militares.
Tive a honra de integrar a equipa governativa da defesa nacional como Secretário de Estado, a convite de Mota Pinto, com quem, em 1978/79, já tinha participado no IV Governo como Secretário de Estado da Administração Pública na sua direta dependência. As minhas funções consistiam em apoiar o ministro na organização e na gestão corrente do novo ministério e coordenar diretamente os trabalhos preparatórios da extensa legislação complementar e das medidas de política previstas no Programa do Governo e na Lei de Defesa Nacional e das Forças Armadas (LDNFA), a Lei 29/82 de 11 de dezembro, aprovada na sequência da revisão constitucional de 1982 e da extinção do Conselho da Revolução.
Adivinhavam-se, então, tempos de transição difíceis com a subordinação das Forças Armadas ao poder político democrático e a responsabilidade política de o Governo promover as importantes e complexas reformas que modificavam profundamente o “statu quo”. Até à revisão constitucional de 1982 e à entrada em vigor da Lei da Defesa Nacional e das Forças Armadas era o Conselho de Chefes de Estado-Maior e depois o Conselho da Revolução que legislava sobre a organização das Forças Armadas e o Ministro da Defesa era essencialmente um elemento de ligação entre o Governo e as Forças Armadas, sem interferência nos assuntos militares.
Estávamos perante uma área de políticas públicas até então desconhecida pela administração pública, sem referências nem estudos conhecidos, com exceção do sector militar onde recentemente se tinham organizado centros de excelência ligados ao Instituto de Altos Estudos Militares (IAEM) e ao renovado Instituto da Defesa Nacional (IDN), identificados com personalidades militares que se notabilizaram pela investigação que desenvolveram e a publicação de larga documentação sobre estes temas, cujos contributos foram fundamentais para a elaboração das propostas das leis orgânicas e outra importantes medidas relativas à organização e funcionamento das Forças Armadas e aos estatutos dos militares.
Já no que respeita a outras matérias, sobretudo, na componente civil da Defesa Nacional, considerou-se recomendável organizar grupos de estudos e reflexão compostos por especialistas de reconhecido mérito, estudar as experiências de outros países nossos aliados, e ainda suscitar a participação de instituições de reconhecida idoneidade e competência para apoiarem tecnicamente a formulação de propostas coerentes com os objetivos previamente definidos pelo Governo e pela Lei, todos colaborando desse modo na construção do novo edifício conceptual e legislativo da Defesa Nacional em regime democrático.
É assim que, além de inúmeras personalidades, militares e académicos, a quem pedimos colaborações sobre temas específicos, sobressaem neste contexto dois institutos espacialmente vocacionados para promover estudos, investigação e debates públicos.
Por um lado, o Instituto da Defesa Nacional (IDN), integrado nas estruturas do MDN, que tinha granjeado um elevado prestigio nos anos mais recentes quando passou a orientar as suas atividades para a sociedade civil, com programas pedagógicos de enorme alcance como os Cursos da Defesa Nacional abertos à participação de militares e civis, principalmente orientados no sentido de facilitar o diálogo e a boa compreensão entre a sociedade civil e os militares, acabando com uma divisão artificial que, naquela altura, ainda se mantinha.
Por outro lado, o Instituto de Estudos Estratégicos e Internacionais (IEEI), criado três anos antes, mas já credor de elevado mérito nos meios políticos e militares. Considerado como o melhor tink tank nacional na área dos estudos estratégicos e de segurança, tinha também a vantagem de o seu fundador e diretor ser uma personalidade carismática, de reconhecida competência nestes domínios, um europeísta e atlantista, defensor do multilateralismo e acima de tudo dotado de uma elevada capacidade de liderança e simpatia.
Álvaro Vasconcelos conseguiu congregar no IEEI muitas pessoas com especial interesse pelos estudos estratégicos e de defesa, especialmente académicos e militares de elevada reputação. Estas matérias assim como as relações internacionais davam então os primeiros passos nos programas universitários em Portugal, sobretudo nas novas universidades, como a Universidade do Minho.
Não é por isso de estranhar que a primeira proposta para promover um grande debate público e aberto sobre o conceito estratégico de defesa nacional tenha sido dirigida ao IEEI, que aceitou organizar um seminário sobre esse tema no dia 19 de março de 1984 na sua sede, na Avenida da República, em Lisboa.
Perante uma numerosa audiência que ultrapassava a capacidade da sala, tive a honra de apresentar as linhas gerais do projeto das Grandes Opções do Conceito Estratégico de Defesa Nacional que, nos termos da LDNFA, teriam de ser objeto de debate na Assembleia da República antes da aprovação pelo Governo do Conceito Estratégico de Defesa Nacional.
Como se pode ler nos jornais do dia seguinte, estiveram presentes nesta sessão de informação e debate diversos especialistas em questões de defesa e estratégia, nomeadamente militares das Forças Armadas, investigadores e académicos. Recordo a participação e intervenção de reputados militares infelizmente já falecidos, como os Generais Firmino Miguel e Loureiro dos Santos, os Comandantes Virgílio de Carvalho e Ferraz Sacchetti, além de um elevado número de membros do IEEI, de que destaco a saudosa Maria do Rosário Moraes Vaz, uma especialista nas questões de segurança cujo dinamismo, dedicação pessoal e capacidade de intervenção em muito marcaram a vida do IEEI.
Álvaro Vasconcelos conduziu o debate e contribuiu com o seu saber e capacidade moderadora para que esta iniciativa conjunta fosse geralmente reconhecida como um valioso e substancial contributo para a formulação do CEDN, podendo também considerar-se como o ponto de partida para o estabelecimento de uma parceria duradoura entre o IEEI e o Ministério da Defesa Nacional (CEDN), que se manteve nos anos seguintes, independentemente das naturais mudanças dos respetivos ministros.
Na sequência destes debates, foram elaboradas as Grandes Opções do Conceito Estratégico da Defesa Nacional que, depois de submetidas a debate parlamentar, estiveram na base do primeiro Conceito Estratégico da Defesa Nacional, aprovado em 31 de janeiro de 1985.
Como é sabido, o CEDN teve a sua terceira revisão em 2013. As anteriores ocorreram em 1994 e 2003, o que dá um intervalo médio de nove anos entre as três. Embora não exista qualquer orientação formal sobre as circunstâncias que determinam a revisão do CEDN, não é difícil verificar que todas elas estão ligadas a acontecimentos mundiais próximos daquelas datas com importantes implicações na ordem nacional e internacional, exigindo um esforço de atualização de objetivos e a adaptação das políticas de segurança e defesa, como foi o caso da queda do muro de Berlim em novembro de 1989, dos ataques terroristas nos EUA em 11 de setembro de 2001 e da crise financeira internacional, desencadeada em 2008, nos Estados Unidos, com repercussões desastrosas para a economia da zona do euro e que atingiu dramaticamente Portugal no período de 2008 a 2013. E como é presentemente a crise pandémica que estamos a viver.
Se é certo que a minha ligação ao IEEI se desenvolveu de modo mais intenso a partir da sua intervenção no processo de elaboração do Conceito Estratégico de Defesa Nacional, em 1984/85, a verdade é que já antes tivera a oportunidade de participar numa realização de grande relevo que viria a impor-se como uma atividade emblemática na agenda do IEEI, a Conferência Internacional de Lisboa.
Era um evento de sucesso, cuidadosamente programado para promover o debate e estimular a apresentação de comunicações sobre um tema forte diretamente ligado a questões da atualidade internacional com particular interesse para Portugal. Com a duração de três dias, a Conferência Internacional de Lisboa era estruturada em sessões destinadas a abordar subtemas cujo debate suscitava uma participação muito alargada com intervenções onde não faltava alguma polémica.
O interesse e atualidade dos temas, a elevada qualidade dos participantes e também a atração da bonita cidade de Lisboa, contribuíram sem dúvida para que aqui acorressem especialistas e investigadores de renome vindos da Europa, dos Estados Unidos da América, do Brasil e outros continentes para apresentar as suas comunicações ou simplesmente participar nos debates.
Tive a honra de ser convidado para presidir à sessão de encerramento da Conferência Internacional de Lisboa de 1983 dedicada ao tema “A Europa perante novos desafios: Defesa e Integração”.
Como se pode hoje ver pelos recortes de imprensa, no meu discurso enalteci o elevado interesse nacional desta iniciativa que coincidia com a vontade do governo de promover o debate e a informação sobre a Europa no quadro da nossa futura adesão. Teci então algumas considerações sobre o processo de integração em curso, chamando a atenção para a perceção de que alguns países nossos futuros parceiros não estavam a valorizar a integração de Portugal como uma mais valia geopolítica e um reforço na defesa de valores comuns europeus, parecendo mais preocupados com os custos acrescidos para a Comunidade.
Em matéria europeia, o IEEI esteve sempre na primeira linha da informação e do debate esclarecedor dos grandes desafios e oportunidades que a integração europeia representava para o nosso País, foi membro ativo de redes europeias e parcerias com institutos congéneres que desenvolviam projetos de estudos financiados pela Comissão Europeia, do mesmo modo que promoveu o estudo e a reflexão sobre outras regiões e outros continentes com relevância e interesse geoestratégico para Portugal.
Posso assim concluir este meu primeiro testemunho focado sobre as atividades desenvolvidas pelo IEEI na primeira parte da década de oitenta, quando exerci funções de Secretário de Estado da Defesa Nacional, sublinhando e enaltecendo o importante papel que o Instituto desempenhou no apoio à decisão política e na formação da cultura de segurança e defesa.
Regressei no início dos anos noventa às mesmas funções no XII Governo Constitucional, quando me deparei com uma parceria MDN/IEEI e planos de cooperação já bem consolidados. Tal como dez anos antes, o apoio do IEEI foi considerado da maior utilidade nos trabalhos em curso que finalmente levariam à conclusão das reformas iniciadas em 1983 na área da defesa nacional.
Lisboa, 31 de julho de 2020
António Figueiredo Lopes