Teatro
"A Ilha dos Escravos" volta a Coimbra no Dia Mundial do Teatro e mais de meio século depois de ter "fintado" a censura do Estado Novo
Reconstituição da peça tem a assinatura do coletivo Visões Úteis e lembra, entre outros temas, a importância da liberdade de expressão.

27 Mar 2025 | 21h30
Ironia do destino ou não, as segundas núpcias d’A Ilha dos Escravos, programada para entrar em cena no próximo 27 de março, no Teatro Académico de Gil Vicente (TAGV), às 21h30, não estão nada divorciadas deste tempo que muitas sociedades - ditas globalizadas – atravessam e o qual “já esteve bem mais favorável para muitos direitos fundamentais”, daí a recuperada pertinência da obra.
A observação é de Carlos Costa, diretor artístico do Visões Úteis, coletivo portuense que, com a parceria do TAGV, do LIPA - Laboratório de Investigação e Práticas Artísticas da Universidade de Coimbra e do TEUC, assume a recriação. Ciente da dificuldade desta tentativa de olhar para o passado através da máquina do tempo e da arte cénica, ou, como explica, um “exercício reflexivo em torno da (im)possibilidade de reconstituir um objeto artístico que ‘aconteceu’ no passado”.
Esta reconstituição - que se aproxima da prática artística enquanto investigação científica e, também, dos Estudos da Performance, com uma abordagem mais espetacular, sobretudo na recriação de momentos históricos emblemáticos -, deve-se em grande medida à descoberta, no arquivo do TEUC, do guião do ponto, do técnico de iluminação e da versão final do texto apresentado na data de estreia, bem como de cartas e outro tipo de documentos (já digitalizados com o entusiástico apoio da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra). Os quais confirmam o atribulado processo de criação e produção do espetáculo nos idos de 69, que antecipou as discussões que viriam a ganhar força durante o período da crise académica. Principalmente, em torno da linha de ação da associação de estudantes e do tipo de teatro que deveria vigorar em momentos de repressão política.
Foi neste contexto que, pela primeira vez em Portugal, o TEUC apresentou a peça do dramaturgo francês como um espetáculo de marionetas, encenado por Luís de Lima. No Arquivo da RTP é possível aceder à gravação sem som d’A Ilha dos Escravos feita em Castelo Branco.
Aprovada pelo lápis azul do Estado Novo, a trama oitocentista surgiu como uma reclamação burlesca da liberdade e de renovação do teatro português, que tinha como principais aliados os grupos de teatro académico. Após algumas récitas, o espetáculo foi proibido. A censura prévia compreendeu, finalmente, que na análise do texto dramático já não bastava para adivinhar as intenções dos inquiridos, porque os processos cénicos utilizados acrescentavam múltiplas camadas que podiam contrariar tanto os intentos dos censores como do próprio dramaturgo.
Segundo explica Joana Ferrajão (Visões Úteis), na qualidade de diretora artística e científica desta produção, e citando o encenador e o texto do programa de 1969, o texto da versão francesa d’A Ilha dos Escravos foi despido da ambiguidade e do “tom de comédia alegórica” originais, isto para denunciar abertamente, na versão do TEUC, a “desigualdade que os homens permitem que reine entre eles”.
A peça, recorda-se na sinopse, abre com um naufrágio que atira servos e patrões para a Ilha dos Escravos, um lugar idílico para onde fugiram escravos que queriam ser livres, e que se distingue das demais ilhas gregas pelas leis que ali são aplicadas.
“Nesse passado remoto, era imperativo que se matassem todos os patrões que porventura pisassem aquele solo, pela proteção da ordem coletiva. Porém, os tempos foram benevolentes: agora acredita-se no perdão e na reconstrução do indivíduo, pelo que a inversão momentânea dos papéis de escravo e patrão parece suficiente para a manutenção da liberdade. É numa teia burlesca de relações de poder que as personagens se encontram e compreendem, denunciando “o quanto são lamentáveis enquanto realidades sociais, tanto os patrões como os escravos”, pode ler-se.
Durante a primeira fase do processo de investigação para o novo fôlego da obra, várias questões adicionais foram levantadas sobre a manutenção dos arquivos dos vários organismos autónomos da associação de estudantes de Coimbra que se dedicam às artes performativas, como o CITAC - Círculo de Iniciação Teatral da Academia de Coimbra e o GEFAC - Grupo de Etnografia e Folclore da Academia de Coimbra.
“Os arquivos destas instituições, de inestimável valor cultural, correm sérios riscos de sofrer perdas irreparáveis e os novos membros reconhecem a urgência de cuidar do arquivo, mas não sabem como o fazer. Uma vez que esta nova fase deste nosso programa Reenact Now, além de um programa de investigação, também assume preocupações de transferência de conhecimento, pretendemos propor, em paralelo à estreia do espetáculo, uma outra atividade que aborde este tema”, revela Carlos Costa, do Visões Úteis.
“A Ilha dos Escravos” - Ficha artística e técnica:
Direção e Dramaturgia: Joana Ferrajão, Cenografia: Diogo Barbosa, Figurinos: Lavinia Zuccalà, Desenho de Luz: Nuno Vasco, Banda Sonora: Nuno Pompeu, Interpretação: Mariana Banaco, Maria Rui Cunha, Zé Ribeiro, Coordenação de Produção: Cláudia Alfaiate, Contabilidade: Helena Madeira, Direção Artística e Científica da segunda edição de REENACT NOW: Joana Ferrajão, Coordenação Artística e Científica de REENACT NOW: Carlos Costa, Supervisão Científica de REENACT NOW: Fernando Matos Oliveira, Produção: Visões Úteis, Coprodução: TAGV, em parceria com LIPA - Laboratório de Investigação e Práticas Artísticas da Universidade de Coimbra, Parceria: TEUC - Teatro dos Estudantes da Universidade de Coimbra, Duração aproximada: 70 minutos, Faixa etária: maiores de 12 anos de idade
Sobre o Visões Úteis:
O Visões Úteis é um projeto artístico sediado no Porto, onde foi fundado em 1994. O teatro foi a raiz de uma atividade constante e intensa que rapidamente se alargou a outras áreas das artes performativas. E em reconhecimento da sua ação artística junto de públicos diversificados, o coletivo recebeu em 2001 a Medalha de Ouro de Mérito Cultural da Cidade do Porto. O raio de ação do grupo estende-se a uma panóplia de projetos, paralelos à criação e itinerância de espetáculos, que desde sempre traduziram o desejo de confronto com outras áreas e com públicos distantes da produção artística. O Visões Úteis é membro da PLATEIA – Associação de Profissionais das Artes Cénicas, do IETM – International Network for Contemporary Performing Arts e da APCEN - Associação Portuguesa de Cenografia.
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