Teatro
Companhia de Teatro de Sintra denuncia violência doméstica com peça "As ressuscitadas"
Estreia, na Casa de Teatro da vila, a peça “As ressuscitadas” sobre “a desigualdade de género numa sociedade patriarcal e a misoginia que ainda existe na perspetiva de homens e mulheres”.
28 Nov a 8 Dez 2024
quinta a sábado às 21.30h e domingo às 16h
Violência doméstica, a nível psicológico e maus-tratos físicos, assédio moral e sexual, opressão, coação, alcoolismo, frustrações, o peso das imposições sociais, assim como a entreajuda e sororidade são temas transversais à peça, acrescentou em entrevista à agência Lusa Susana C. Gaspar, que encena e interpreta, com os outros dois diretores artísticos da companhia, Paula Pedregal e Nuno Correia Pinto, o que acontece pela primeira vez no grupo.
“As ressuscitadas”, um texto inédito do professor e dramaturgo Miguel Falcão, vencedor do Prémio Nacional de Artes do Espetáculo Maria João Fontainhas 2022, “inspira-se na história fictícia de duas mulheres, mas que poderíamos ver acontecer ao nosso lado”, observou.
Histórias “muito repetidas na nossa sociedade, histórias de vidas duras” e que, “na vida real”, são visíveis “em casas de acolhimento” ou “nos muitos casos de mulheres que ainda são obrigadas a fugir e a largar as suas vidas para se esconderem dos homens que as perseguem e violentam”, frisou.
A ação da peça centra-se em Guilhermina, conhecida como Winnie, e Hermínia, com cerca de 50 e 40 anos, respetivamente. A primeira provém de um meio rural, é vítima de violência doméstica, quer a nível psicológico quer de maus-tratos físicos, cometidos pelo marido.
A segunda, “uma mulher muito solitária, sem família” oriunda de um meio urbano, foi observada e perseguida por um homem, que conhece num café, e começa a conquistá-la “devagarinho”, e por quem Hermínia se apaixona.
Hermínia torna-se vítima de furto, chantagem, coação psicológica e assédio moral. O homem por quem se apaixonou acaba por confessar-lhe que a perseguiu, observou, lhe estudou as rotinas, acabando por assediá-la sexualmente, o que a levou a fugir.
Com percursos diferentes, as duas mulheres acabam por se encontrar no cemitério onde Guilhermina auxilia o marido - o coveiro, Willie (o casal esteve emigrado nos Estados Unidos durante um longo período antes de regressar a Portugal) - e se “resguardam e escondem numa sepultura”.
“Uma metáfora suficiente para ilustrar aquilo que se passa muitas vezes com as vidas destas mulheres que têm de se esconder dos seus perseguidores”, disse Susana C. Gaspar.
Próxima de uma “estética expressionista” em que “cada gesto conta e onde fica tudo mais focado nas palavras do texto”, a cenografia da peça fixa-se numa estrutura de madeira de cerca três metros correspondendo ao solo, e numa área inferior, a sepultura, onde decorre a maior parte da ação, indicou.
À medida que Guilhermina e Hermínia vão partilhando histórias e cumplicidades, a ação é perpassada por um “elemento de conflito e tensão” ao qual não é alheio um monólogo de Willie, personagem que, “apesar de entrar pouco no espetáculo, tem uma presença muito importante”, explicou Susana C. Gaspar.
A peça não aborda apenas a discriminação “intrínseca que certas mulheres têm em relação a outras”, a violência exercida por homens sobre mulheres, cujos números são “muito maiores” do que na situação inversa, mas também se foca na “perspetiva da questão cultural e sistémica que ainda existe na sociedade atual e que é transversal”, enfatizou.
Naquele monólogo, revela-se também “o peso que leva alguns homens, às vezes, a sentirem-se esmagados [pela comunidade] que os pode levar a esse desvio, de uma certa tendência para a violência”, notou a atriz, sublinhando que é necessário “alterar consciências e mentalidades com vista a terminar com a violência a todos os níveis”.
A violência contra a mulher resulta também de como é visto o seu papel na relação afetiva, no contexto familiar, na sociedade, no trabalho, centrando-se numa ”visão misógina alicerçada neste rancor e ódio contra as mulheres que são vistas para executar um determinado papel, nomeadamente o de ser mãe e ter filhos”, sublinhou.
Questionada sobre a relevância da peça face às mais de oitenta denúncias feitas até à passada semana por mulheres sobre situações de abuso e assédio no meio artístico, Susana C. Gaspar considerou “muito importante” realçando o facto de ser interpretada por mulheres, e em toda a criação estarem “pessoas interessadas nos Direitos Humanos e nos direitos das mulheres”.
“Porque, de facto, aquilo a que assistimos são, continuamente, ano após ano, números demasiado elevados de violência contra as mulheres, não somente em homicídios, mas de uma violência sistémica, psicológica, de perseguição, e cada vez mais casos de 'stalking' [perseguição] , sobretudo de mulheres numa situação mais vulnerável (…) que acabam muitas vezes por cair nas mãos de predadores”, enfatizou.
Um fenómeno que tanto pode acontecer “pelas redes sociais, mas também, como no caso de Hermínia, à mesa do café onde um homem se pode sentar e assediar uma mulher, e começar a ameaçá-la e a persegui-la”, realçou.
Uma realidade para a qual continuam a existir “dificuldades de resposta”, ao nível da justiça, e das autoridades policiais, “em dar seguimento a alguns casos, porque é preciso o flagrante [delito], provas; nem sempre há testemunhas e nem sempre as pessoas se querem envolver”, frisou.
“Ainda há muito estigma e este estereótipo de que 'entre marido e mulher não se mete a colher' (…), [o que] leva à banalização das discussões e violência contra as mulheres como uma questão normal, com receios em alguns meios; ou então é escondida, ocultada, e ninguém fala e é um tabu que se tem de se desconstruir e perceber”, sustentou.
Transpondo a violência de que Guilhermina e Hermínia são alvo para a realidade – que atinge “muitas mulheres em Portugal e, infelizmente, no mundo” –, Susana C. Gaspar rematou: “Quando a mulher vítima de violência é ela que tem de fugir com os seus filhos, as suas malas, as suas coisas e deixar o seu meio e a sua família, vai para uma casa de acolhimento, mas o homem não é detido num acolhimento ou numa prisão, continua livre, está a acontecer algo de muito mau para as vítimas de violência”.
A peça fica em cena na Casa de Teatro de Sintra até 8 de dezembro, com récitas às quintas-feiras e aos sábados, às 21:30, e, aos domingos, às 16:00.
“As Ressuscitadas” tem ambiente físico e sonoro do artista plástico e cenógrafo Luís Santos e do músico e compositor Pedro Branco. O desenho de luz é de Rui Seabra e a direção de atores de Susana Arrais.
O Prémio Nacional de Artes do Espetáculo Maria João Fontaínhas é promovido pela Câmara de Sintra, em parceria com a associação cultural Chão de Oliva, e inclui a obrigatoriedade de encenação do texto por uma das companhias residentes da Chão de Oliva.
Paula Pedregal, Nuno Correia Pinto e Susana C. Gaspar são diretores artísticos da Companhia de Teatro de Sintra criada em 1990, e a primeira residente criada no Chão de Oliva – Centro de Difusão Cultural em Sintra, em funcionamento desde 1987.
Em 1994, formou-se a segunda companhia residente, o Fio d'Azeite – Grupo de Marionetas.