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"Paula Rego: Manifesto" para ver em Cascais
Paula Rego: Manifesto celebra a primeira exposição individual da artista, realizada em 1965, na Sociedade Nacional de Belas-Artes, em Lisboa.
![Paula Rego, Mocidade Portuguesa, 2005 | Tinta da China sobre papel, 29,7 x 42 cm Coleção particular | Crédito fotográfico: Nick Willing Paula Rego, Mocidade Portuguesa, 2005 | Tinta da China sobre papel, 29,7 x 42 cm Coleção particular | Crédito fotográfico: Nick Willing](https://www.e-cultura.pt/images/user/image1713351235648.jpg)
18 Abr a 6 Out 2024
Esta exposição reúne pela primeira vez, na Sala 0, dezoito das dezanove obras então exibidas, algumas delas localizadas recentemente a partir da investigação a decorrer para o catálogo raisonné do trabalho de Paula Rego entre as décadas de 1950 e 1960. Este conjunto de obras, bem como a documentação relacionada com a organização e receção crítica da exposição de 1965 evidenciam o impacto do trabalho de Paula Rego no panorama artístico português, que foi sentido com uma magnitude sísmica no território de estagnação vivido então. A exposição teve lugar no final de um ano trágico para a oposição política ao regime ditatorial: entre os eventos mais marcantes conta-se o assassinato em Espanha, por membros da polícia política portuguesa, da figura central da oposição, o General Humberto Delgado, o “General sem medo”. No ambiente repressivo e persecutório da ditadura, que Paula Rego considerava anacrónica e absurda, as pinturas exibidas comunicavam a sua experiência enquanto artista e mulher e revelavam a violência da realidade vivida, que incluía as guerras coloniais que a artista também criticou. Por outro lado, o seu experimentalismo plástico iludiu a censura e permitiu que as convenções artísticas, políticas e sociais pudessem ser postas em causa.
Paula Rego: Manifesto
Curadoria: Catarina Alfaro e Leonor de Oliveira
Entre os anos 1960 e 1970, a abordagem figurativa experimental de Paula Rego, intuitiva e aparentemente caótica, servia a necessidade de expressar as suas emoções, refletindo ansiedade, medo e angústia, sentimentos que eram partilhados por todos os portugueses que aspiravam a uma mudança política no país. A técnica plurimaterial que então desenvolvera, utilizando materiais heterogéneos — tintas, papéis recortados e colados sobre a tela — e os temas abordados, que sugerem um posicionamento crítico e de desafio em relação à autoridade, manifestam uma atitude de resistência política através da prática criativa. A sua primeira exposição individual criou, por isso, nesse ano sombrio de 1965, um espaço de dissensão, confronto e liberdade. Paula Rego: Manifesto continua a revisitação crítica, através do olhar particular da artista, de temas marcantes da história recente de Portugal, abordando, na segunda parte da exposição, o contexto pós-revolucionário e os direitos das mulheres, assim como a intervenção cívica de Rego no país.
Pela primeira vez reúne-se um conjunto de obras que comentam a Revolução de 25 de Abril de 1974 e a persistência de elementos icónicos da ditadura na sociedade portuguesa em democracia. Destacam-se ainda os trabalhos realizados num momento em que a artista mais diretamente interveio na discussão política em Portugal através das suas obras sobre o aborto. Estas obras resultam diretamente das experiências traumáticas da artista, mas também de um sentimento de indignação perante a indiferença dos portugueses, traduzida em abstenção, no referendo realizado em 28 de junho de 1998, sobre a despenalização da interrupção voluntária da gravidez. Paula Rego retratou vividamente o sofrimento das mulheres que praticam o aborto numa clandestinidade imposta pela proibição legal, num ambiente improvisado de domesticidade e solidão. Com estas obras contribuiu decisivamente para consciencialização da opinião pública sobre a necessidade de uma tomada de posição, que viria acontecer no terceiro referendo realizado em 2007 e que veio finalmente alterar a legislação portuguesa. A narrativa sobre a ditadura e o processo de democratização têm sido dominados pela perspetiva e ações masculinas. Em contracorrente, a obra de Paula Rego inscreve na abordagem crítica desses momentos históricos não só a experiência feminina, mas também o papel das mulheres na luta pela democracia e pelos seus direitos. O trabalho criativo e a intervenção cívica da artista recordam-nos ainda que a democracia é um projeto em construção e tem que ser revista e promovida constantemente.
1. REVISITAÇÃO DA PRIMEIRA EXPOSIÇÃO INDIVIDUAL DE PAULA REGO (Lisboa, SNBA, 1965)
Paula Rego expôs pela primeira vez o seu trabalho em Portugal na II Exposição de Artes Plásticas, organizada pela Fundação Calouste Gulbenkian em 1961, tendo sido considerada pelos críticos de arte a revelação dessa exposição. A artista continuou a desenvolver a sua linguagem figurativa experimental e a abordagem de temas políticos como a violência e a repressão da ditadura e o colonialismo português ao longo da década. A relevância da sua pintura na cena artística portuguesa de então foi confirmada pelo convite para organizar a sua primeira exposição individual em Lisboa em 1965, na recém-criada Galeria de Arte Moderna da Sociedade Nacional de Belas-Artes, dirigida por Fernando Pernes. Esta associação juntava desde finais dos anos 1950 críticos e artistas modernos. A sua história recente tinha sido, no entanto, marcada pelo seu encerramento por parte do regime em 1952 para travar uma tendência crescente de oposição à ditadura entre os seus sócios. A exposição de Paula Rego apresentava dezanove pinturas criadas entre 1961 e 1965, cujos títulos confrontavam o público com um imaginário heterodoxo que invocava diferentes fontes de inspiração (desde os mitos gregos até notícias de jornais portugueses e britânicos), predisposições psicológicas e imagens de violência, medo e ameaça, como O impostor, Ansiedade de Agosto, Trilogia do medo, Violência infantil. No espaço exíguo da Galeria de Arte Moderna, situada na cave do edifício da Sociedade, a acumulação destas imagens gerava um impacto provocador e revelava uma perspetiva crítica sobre a realidade vivida em Portugal.
2. ECOS DA EXPOSIÇÃO DE PAULA REGO
A exposição individual de Paula Rego foi inaugurada em dezembro de 1965 numa cidade politicamente vigiada e no final de um ano trágico para a oposição política ao regime ditatorial: entre os eventos mais marcantes desse ano conta-se o assassinato da figura central da oposição, o General Humberto Delgado, o “General sem medo”, em Espanha por membros da polícia política portuguesa. Ainda nesse ano a repressão política atingiu novos níveis de violência e os combates nas colónias portuguesas em África intensificavam-se, mobilizando recursos e milhares de jovens ou levando outros a fugir do país para escapar à guerra. No entanto, a exposição de Paula Rego e a sua intervenção pública demonstram que eram possíveis atitudes de confronto e de discordância. Victor Willing, o marido da artista, descreve numa carta dirigida a Alberto de Lacerda (poeta e amigo do casal) o ambiente de euforia, alimentado pelo consumo excessivo de álcool, e também de escândalo, sobretudo para o público masculino da exposição: um deles, que tinha “estado a contar os falos” expostos na mostra, perguntou a Paula Rego “se o seu interesse em ‘pilas’ significava que era uma prostituta. Ela respondeu que se as putas pintassem, pintariam igrejas”. O caos que povoava as telas de Rego foi transferido para as salas de exposição da Sociedade Nacional de Belas-Artes e para as ruas de Lisboa, onde os papéis convencionais de género e os comportamentos normalizados foram suspensos. Este espaço efémero de liberdade exorcizou o medo, mas simultaneamente expôs a insanidade dos tempos. Esta exposição converteu-se então no epílogo perfeito para as festividades natalícias de 1965. Havia alguma coisa a celebrar naquele ano? É certo que a vida de todos os dias prosseguia como de costume. Mas acontecimentos como a exposição de Paula Rego permitiam que o quotidiano incorporasse o absurdo da época política.
3. PAULA REGO E O 25 DE ABRIL
Quando a Revolução de 25 de Abril de 1974 aconteceu, Paula Rego estava em Londres e, segundo disse, este terá sido o dia mais feliz da sua vida. Apesar de distante, acompanhou atentamente os acontecimentos nos dias que se seguiram, através dos meios de comunicação britânicos e da correspondência trocada com familiares e amigos. No entanto, as mudanças políticas do país durante o período pós revolucionário geram na artista um sentimento de deceção face às suas expectativas, expressando uma vivência de Lisboa e do país marcada pela desilusão. Nesta época surge uma outra forma de controle e atavismo que a artista critica duramente, ao constatar o anacronismo das páginas artísticas e literárias dos jornais portugueses, que insistiam em análises edificantes sobre o neo-realismo, por um lado, e, por outro, ignoravam outras práticas artísticas mais experimentais. O clima de instabilidade vivenciado pela artista após a tentativa de golpe de Estado de 11 de março de 1975 é sentido como uma atmosfera de desconfiança, ansiedade e medo permanentes, de “lavagem ao cérebro do povo” pela propaganda difundida pela rádio, televisão e jornais, e um ambiente em Lisboa “de se cortar à faca”. Algumas das obras que produziu no período pós-revolucionário referem-se diretamente ao golpe de Estado do Movimento das Forças Armadas, recorrendo ao humor e à paródia para comentar a situação política do país. A temática da militarização do movimento revolucionário é comum às obras Manobras militares, Baba Yaga e Le Petit Théâtre de la Révolution, Abril de 1975 aludindo à tomada do poder pelos os militares, com os problemas da descolonização e da credibilidade do novo regime democrático de Portugal ainda por resolver.
4. PAULA REGO E OS DIREITOS DAS MULHERES
Para Paula Rego, a arte e a história da arte reproduzem as convenções e normas da sociedade patriarcal e constituem um poderoso território visual e discursivo no qual as mulheres são deliberadamente obliteradas e objetificadas. Logo no início do seu percurso artístico, a artista rejeitou a narrativa de vitimização e vulnerabilidade sobre as mulheres e assumiu o controlo sobre as suas histórias e representação. Paula Rego levou então a cabo uma dissecação do corpo e tornou visíveis nas suas obras os genitais femininos e masculinos, criando assim uma visão radical das mulheres e do seu universo íntimo e desejos sexuais, contrariando as abordagens artísticas tradicionais que utilizavam o corpo feminino como mero objeto da luxúria masculina. A provocação escandalosa produzida pela sua exposição individual em 1965 relacionou-se também com a subversão da representação da feminilidade pela própria artista, que desmantelou a imagem preconcebida de uma jovem artista bem-educada, esposa e mãe. Apesar do tom subjetivo que as obras de Paula Rego inevitavelmente transmitem, a artista partilhava e tornava também visível uma experiência comum de repressão, violência e discriminação. Ela criou novos ícones contemporâneos e novas histórias que são ao mesmo tempo profundamente evocativas e também transgressoras. O desenho produzido em 1952 de uma “mulher-cão” criou uma nova linha de trabalho à qual Paula Rego daria continuidade nos anos 1990 na série de pinturas com o mesmo título. A humanidade crua do seu trabalho e a sua dimensão solidária possibilita que as observadoras das suas obras se reconheçam a si mesmas nas histórias representadas e que construam ainda novos significados através da projeção das suas próprias memórias e experiências nas imagens produzidas pela artista.
5. “MUTILAÇÃO GENITAL FEMININA” (2009)
Dez anos após a série do aborto, Paula Rego expõe um outro problema social terrível, com contornos religiosos, que atinge sobretudo as crianças do sexo feminino entre o nascimento e a puberdade. O mesmo impulso de revelação e confronto com a dura realidade de muitas crianças e jovens em todo o mundo estará na origem da série de seis gravuras a água-forte e água-tinta intitulada “Mutilação genital feminina” (2009). Apesar de não saber ao certo o que a motivou a fazer as gravuras, a artista confessou que ficou sensibilizada com “um documentário espantoso na BBC4 que mostrava tudo isto a acontecer num país onde era proibido por lei.” Esta prática ritualista silenciada “acontece por todo o mundo” e tem vindo a aumentar em Portugal, de acordo com os dados da Direção Geral da Saúde. O procedimento varia consoante o grupo étnico, visando remover fisiologicamente a origem da libido e assim prevenir comportamentos sexuais considerados inapropriados. A maior parte das vezes, o ato cirúrgico é executado num ambiente improvisado, em condições não higiénicas, acabando muitas vezes por resultar na morte das crianças. “Diz-se que não se deve criticar os costumes de outra cultura. Talvez não. Mas se causam semelhante dor não vejo porque não se há de dizer qualquer coisa.” A este flagelo real Paula Rego faz corresponder imagens irreais, criando as terríficas cenas que o tema exige e que obedecem a uma construção estética própria do terror, ou que derivam de um olhar prisioneiro do mais horrível pesadelo, retratando o cruel e traumático processo num cenário despojado que destaca a monstruosidade transfigurada de algumas das personagens executando o macabro ritual com a cumplicidade das mães — também elas violentadas na mesma idade: “… as mães insistem que isso seja feito às filhas … das mães nunca se fala.” Esta série, tal como a do aborto, sintetiza o sentido interventivo e político do trabalho de Paula Rego. Nela a artista optou por técnicas de gravação, certa de que os múltiplos alcançarão um público mais vasto, permitindo-lhe comunicar mais eficazmente com o tempo presente.
Citações retiradas de uma entrevista de Paula Rego a The Spectator, 2009.
6. PAULA REGO, UMA CONTRAHISTORIADORA
A obra de Paula Rego desafia leituras cristalizadas da história e destabiliza criticamente os discursos políticos do seu tempo. O imperativo de revelação e denúncia da realidade política vivida em Portugal durante a ditadura, marcada pela repressão, guerra colonial e violência, levou-a a projetar nas suas obras da década de 1960 a dramatização de episódios históricos com fortes consequências políticas, como foram o regicídio (1908), a batalha de Alcácer-Quibir (1578), o Cerco de Lisboa (1384) ou o assassinato de Inês de Castro (1355). Nestas obras a artista confrontou criativamente o discurso narrativo dominante da história, transmitindo em pinturas e desenhos não uma representação literal, mas um universo igualmente caótico, absurdo e aterrador, que dava expressão à experiência e às sensações de viver sob regimes não democráticos e à violência e desumanidade neles instalada. Alguns episódios da atualidade política, como as eleições de outubro de 1969 para a Assembleia Nacional, as primeiras realizadas no período designado por Primavera Marcelista, são também alvo do mesmo olhar crítico e por vezes caricatural, revelando os seus desenhos o ambiente vivido durante essas eleições. A obra de Rego tem o poder de, no seu tempo, desconstruir a imagem propagandística e as fantasias históricas da ditadura, como a dimensão heroica e pacífica do colonialismo português, que são ainda hoje repetidas. O universo radical e subversivo da artista ainda nos recorda que uma perspetiva já convencionada deve sempre ser questionada e que não nos devemos resignar com a ordem estabelecida.
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De terça a domingo
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