Uma Peça | Um Museu
Tentações de Santo Antão
Assinado por Bosch, este tríptico integra os quatro elementos do Universo (céu, terra, água e fogo) tornando-os cenário de personagens horrendas.
Uma peça do Museu Nacional de Arte Antiga.
TENTAÇÕES DE SANTO ANTÃO
Jheronimus Bosch (‘s Hertogenbosch c.1450/60 – 1516)
[assinado no canto inferior esquerdo do painel central]
c.1500
Óleo sobre madeira de carvalho
Proveniência: Palácio das Necessidades, 1913
Inv. 1498 Pint
Uma inventada unidade do espaço integra as múltiplas cenas e narrativas que preenchem o painel central e os volantes laterais, território para um formigar de seres e de episódios que desafiam a nossa interpretação e que ocupam, literalmente, os quatro elementos do universo (céu, terra, água e fogo), matéria matricial da representação. Santo Antão divisa-se em três sequências da sua lendária experiência eremítica: à esquerda, agredido física e diretamente pelos demónios que o elevam no ar e precipitam no solo; à direita, enfrentando a tentação da carne e o pecado da gula; ao centro do painel central, sendo confrontado talvez com a maior de todas as tentações, a do abandono da Fé. Aí, no centro de tudo, no centro de um redemoínho diabólico, num espaço e num tempo invadido pelo mal, Santo Antão olha para nós e aponta para uma dupla representação de Cristo, figura e imagem refugiadas numa ruína.
Para além desta narração hagiográfica, a obra encerra no seu conjunto uma visão totalizante do Mundo invadido pelo Mal, personificado aqui por uma legião de seres demoníacos e aparentemente fantásticos que também significam um tributo do pintor a uma longa tradição figurativa medieval. O tríptico pode considerar-se, assim, o equivalente visual de um velho tratado de demonologia, muito embora Bosch entenda o espaço e o mundo numa unidade sintética moderna, também pela utilização, não oculta, antes expressamente patente, das mais chocantes imagens, no que é um modo novo de utilizar, organizar e mostrar um material iconográfico antigo e tradicional.
A contemplação da peça não fica completa se não se virem as dramáticas “grisalhas”, no reverso dos painéis laterais, que nos mostram dois passos da Paixão de Cristo: a Prisão e o Caminho do Calvário no momento do encontro de Cristo com Santa Verónica. Ambas as cenas são marcadas pela violência e por um espaço desértico em primeiro plano, deserto que é lugar de cadáveres e de condenados, de morte e desolação, o que vem acentuar a mensagem pessimista, embora não desesperada, de todo o tríptico.
Incorporada no MNAA a partir do antigo palácio real das Necessidades, desconhecem-se as circunstâncias da chegada da obra a Portugal, não sendo certo que tenha feito parte da coleção do humanista Damião de Góis, como algumas vezes é referido.