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DIREITOS LINGUÍSTICOS E LÍNGUA PORTUGUESA

Da autoria de Joaquim Miguel Patrício divulgamos, pela sua importância, o seguinte texto, que poderá ser lido aqui na íntegra.



Camões por Almada Negreiros

Da autoria de Joaquim Miguel Patrício divulgamos, pela sua importância, o seguinte texto:     

I. A Inevitabilidade do Direito à Língua

1. Se temos direito à língua, temos de ter o direito à língua; se não temos direito à língua, temos de ter o direito à língua; em qualquer caso, temos de ter o direito à língua. 
Para rejeitar o direito à língua, temos de usar o direito à língua, ou seja, para argumentar que não temos o direito à língua, temos de ter o direito à língua.
Não existem argumentos biológicos, físicos, históricos, jurídicos, matemáticos, sociológicos, ou outros, contra o direito à língua. 
Qualquer argumento contra a existência do direito à língua, negando-o, tem de fazer uso desse mesmo direito.
Qualquer ser humano pode viver sem liberdade de imprensa, de manifestação, de profissão, mas não sem uma língua e o direito à língua. 
A religião, por exemplo, comunica-se pela língua, a qual se lhe antecipa como meio para alcançar o fim que as religiões perseguem, pelo que quem controla os meios controla os fins. 
Tudo isto prova a inevitabilidade do direito à língua, um direito inevitável. 

II. O Direito à Língua como Direito Humano e Fundamental

2. Desta inevitabilidade decorre a existência de direitos inerentes à dignidade de todo o ser humano, tendo como postulado básico a sua universalidade.  
Trata-se de direitos constitutivos da própria noção de pessoa, intemporais, integrando direitos de todos os seres humanos, em todos os lugares, os quais constituem um núcleo restrito de direitos que se impõem e antecedem a qualquer ordem ou ordenamento jurídico. 
Nesta perspetiva, o direito à língua é um direito humano, um bem essencialmente humano, propriedade de todo o ser humano, um direito originário e universal que vale para todos os povos, seja firmado na natureza ou condição humana,  conjunto de princípios criados por Deus, pela razão humana ou objetivados pela consciência jurídica comunitária, em normas e princípios de Direito, quer sejam reconhecidos e validados pelo costume, tratados ou princípios de Direito Internacional.
Trata-se também de um direito fundamental, sempre previsto na Constituição, vinculando sobretudo os poderes públicos no âmbito de uma ordem jurídica concreta, dado ser um direito mais concreto e menos abstrato que os direitos humanos embora, à semelhança destes, defenda e impulsione a dignidade da pessoa humana. É um direito criado e concebido tendo em vista a tutela dos direitos dos indivíduos face ao Estado.
Para Gomes Canotilho e Vital Moreira, e no que toca à nossa língua, “O direito à língua portuguesa é um direito linguístico de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias (cfr. art.º 17.º)”.1
Para Jorge Miranda, o direito ao uso do Português como língua oficial, no art.º 11.º, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa2, não traz nada de novo. Qualifica tal norma como declarativa e não constitutiva, justificando a sua atual relevância com o facto de Portugal ser parte integrante da União Europeia. Segundo este autor, a consagração como oficial do nosso idioma, era anterior à previsão constitucional expressa de 1997: “Ela já o era por costume constitucional e em face dos preceitos que já se lhe referiam (atuais artigos 7.º, n.º 4, 15.º, n.º 3, 74.º, n.º 2, alínea i) e 78.º, n.º 2, alínea d))”3. 
Estamos em presença de um direito universal (de todas as pessoas)4, permanente (só se extingue pela morte do seu titular), pessoal (intransmissível), não patrimonial (insuscetível de avaliação pecuniária e inexpropriável), indisponível (inalienável), pelo que sendo inerente à qualidade de ser humano dos seus titulares, isso significa que a qualidade de cidadão de um determinado Estado há-de ser, para a sua atribuição e reconhecimento, totalmente irrelevante (direito supra-estadual e transnacional).
Não é o Estado e a Nação, em si e por si, que são o ponto de partida, mas sim os princípios transnacionais ou mesmo universais, que se antepõem (e intrometem) ao (e no) pensamento estadual e nacional. Antes de sermos portugueses e europeus, brasileiros e sul-americanos, angolanos e africanos (e lusófonos), franceses, europeus e francófonos, japoneses e asiáticos, somos todos, em primeiro lugar, seres humanos.  

3. Por sua vez, sendo a liberdade de expressão e o uso de uma língua inseparáveis, sendo aquela um direito fundamental (cfr. art.º 37.º da CRP) indissociável do direito à língua, não faz sentido que este último também não o seja.
Se a liberdade de expressão pode revestir as formas de expressão oral, escrita, da imagem, do gesto e do silêncio; de igual modo o direito à língua pode revestir as formas de língua oral, escrita, gestual5, visual e do silêncio.
E se pelo princípio da universalidade todos os seres humanos têm todos os direitos, pelo princípio da igualdade todos têm idênticos direitos. Apresentando-se a universalidade como uma questão prévia da igualdade, importa referir que o princípio da igualdade consagrado no art.º 13.º da CR inclui a língua entre os critérios que tem como arbitrários para a comparação entre pessoas envolvidas no próprio juízo de igualdade. Sucede que ao incluir a “língua” em alguns desses critérios (não taxativos), está a usá-la como um dos exemplos de diferenciações tidas como atentatórias da dignidade da pessoa humana. O que é louvável num país como o nosso, dotado de uma unidade ontológica nacional coesa, partilhando a mesma língua, elemento primordial da nossa identidade. No dizer de José Mattoso, “(…) não existe nenhuma realidade étnica ou do âmbito da cultura popular com uma expressão propriamente nacional (isto é, que se verifique em todo o território português) senão a identidade da língua. Todos os outros são de âmbito regional.”6 

4. O princípio da dignidade da pessoa humana que preside ao nosso texto constitucional (art.º 1.º), é corroborado e resultante do princípio da igualdade do art.º 13.º, do da cláusula aberta do art.º 16.º, n.º 1 e do da interpretação e aplicação em conformidade com a Declaração Universal dos Direitos Humanos (art.º 16.º, n.º 2). 
Do relacionamento de tais princípios e normativos, em conjugação com outros de fundamentalidade assegurada e vigência interna garantida (cfr. art.º 8.º da CRP), resulta a inclusão do fator “língua” entre os critérios tidos como relevantes para a comparação entre pessoas para efeitos do princípio da igualdade.
É o caso, v.g., do art.º 27.º do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, segundo o qual as pessoas pertencentes a minorias linguísticas em determinado Estado não podem ser privadas de usar a sua própria língua; do direito ao conhecimento da língua em processo penal (art.º 5.º, n.º 2 da Convenção Europeia dos Direitos Humanos); do direito que toda a pessoa acusada tem a ser assistida gratuitamente por um intérprete, caso não compreenda ou não fale o idioma usado em tribunal (art.º 14.º, n.º 3.º, alínea f) do PIDCP), entre outros.
De acordo com a Declaração Universal dos Direitos Linguísticos de Barcelona, de 1996, são reconhecidos direitos linguísticos próprios tanto para as comunidades que já estavam fixadas historicamente no território, como para os grupos originados pelo asilo ou emigração. 
Uns e outros têm o direito inalterável de serem reconhecidos como membros de uma certa comunidade linguística, os direitos de falarem as suas línguas nativas em público e privado, de usarem o nome e manterem e desenvolverem as suas culturas (art.º 3.º, n.ºs 1 e 2). Esses direitos têm como contrapartida o não representarem “(…) qualquer obstáculo à sua interrelação e à integração na comunidade linguística de acolhimento, nem qualquer limitação aos direitos desta comunidade ou dos seus membros ao pleno uso público da própria língua na totalidade do seu espaço territorial” (art.º 3.º, n.º 3). 
Essencial é o art.º 4.º, n.º 2, face ao qual as novas comunidades e grupos têm não só o direito mas ainda o dever de se integrarem, sendo recomendável que os que chegam sejam assimilados, desde que, conservando os seus próprios valores, essa assimilação não seja forçada, mas de livre escolha. 
A Declaração Universal da Unesco sobre a Diversidade Cultural, de 2001, proclama a diversidade cultural como património comum da humanidade (art.º 1.º) e que “Os direitos culturais são parte integrante dos direitos humanos, que são universais, indissociáveis e interdependentes” (art.º 5.º).  
Se a Declaração Linguística de Barcelona pretende sobretudo acautelar os direitos das comunidades e grupos migrantes, a da Unesco visa acautelar a identidade e os direitos dos países de acolhimento via salvaguarda da identidade nacional, como a sua harmonização com outras identidades acolhidas. 
Nesta sequência, o direito à língua parece comportar uma dupla perspetiva: por um lado, não tendo a língua vocação exclusiva, isso significa que se podem praticar em simultâneo várias línguas, nomeadamente a identitária ou materna e outra/s, mormente a do país de acolhimento; por outro, havendo em cada pessoa a necessidade de uma língua identitária, de pertença, pode falar-se num direito à própria língua.
Mesmo a entender-se que não existe legislação específica sobre o direito à língua, há um certo direito consuetudinário, a que faz apelo a Carta Europeia das Línguas Regionais e Minoritárias, v.g., o direito que assiste a um mirandês de dizer a outro português: “o teu direito a falar português é exatamente o mesmo que eu tenho a falar mirandês”.
Sendo o direito à língua um direito humano e fundamental, pode questionar-se por que não possui a visibilidade correspondente à sua importância. Provavelmente por ser invisível, por o problema da língua ser trânsfugo, uma vez que não dá nem tira votos, nem se adequa a ser chocante ou sensacionalizado. É algo que se dispersa no espaço e no tempo, em mutação permanente, não palpável, ao arrepio da matéria. Sendo a matéria, pelas leis da física, tudo o que tem peso e ocupa espaço, visível e palpável, o mesmo não sucede com a língua, tida como bem imaterial, escapando aos problemas imediatos do cidadão comum. 

III. O Direito à Própria Língua e a uma Língua Comum

5. A língua é tida como um dos elementos determinantes que definem uma identidade e uma cultura.
Enquanto a religião tem como vocação ser exclusiva, a língua não. 
Pode falar-se e praticar-se, em simultâneo, o português, o inglês, o árabe, o chinês, não sendo aceitável, até hoje, ser-se adepto e praticante de várias religiões.  
Este confronto chama-nos a atenção para o facto de a língua ser fator de identidade e instrumento de comunicação.
Existe, assim, em cada ser humano a necessidade de uma língua identitária.
Daí ser essencial que todo o ser humano tenha direito a conservar a sua língua identitária e a servir-se dela livremente. Trata-se do direito de todas as pessoas falarem a sua língua, a sua própria língua, em relação ao qual não se deveriam suscitar hesitações,  reconhecendo-o sem ambiguidades, à semelhança do que é proclamado pela Unesco.
Sobre a natureza identitária da língua portuguesa fez Pessoa uma exemplar declaração: “A minha Pátria é a língua portuguesa”7. Foi, para o nosso idioma, precursor da Unesco, quando esta proclama a diversidade linguística do mundo. 
Essa língua em boa hora nossa, não é apenas nossa. Língua que não é só nossa, mas também nossa. Daí não serem os portugueses os seus únicos senhores, antes ela dona e senhora de quem a fala, quer na qualidade de condóminos ou comproprietários de um bem imaterial comum. 
No que ao nosso idioma se refere, foi sua sina não caber no berço.
À sua disseminação pelos descobrimentos, associou-se a diáspora portuguesa, a  lusófona e contemporânea, com consequências ao nível da sua dimensão de mercado, da sua globalização, do seu potencial geo-estratégico, como língua de estratégia e de vanguarda, com caraterísticas emergentes e tendentes à universalidade8.  Fernando Pessoa já previa, nos anos 20 do século anterior, que a língua portuguesa estava vocacionada para ser uma das poucas línguas universais de futuro, por ser dotada de duas particularidades fundamentais: ser transcontinental e falada em todas as partes do mundo, tendo como sujeito falante um grande país, tipo potência emergente e continental, o Brasil. Dispersão a que agregaremos as particularidades de língua transnacional, transoceânica, de civilização9,  migratória, miscigenada, de cultura, multicultural, pluricêntrica, dinâmica, técnico-científica, informatizada, internauta, de projeção internacional e de incidência planetária. 
Há um direito à própria língua, neste caso a portuguesa, na titularidade de cada angolano, brasileiro, cabo-verdiano, guineense, moçambicano, português, são-tomense e timorense, direito que não é atribuído em exclusivo a nenhum sujeito individualmente considerado, direito esse extensivo ao conjunto dos falantes dos respetivos povos autonomamente considerados, por quem também não é titulado ou dividido em exclusivo. Daí existir o direito a essa mesma língua na titularidade de todos esses povos e países no seu todo mais amplo da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa e núcleo duro do Mundo Lusófono, uma vez língua comum e partilhada, em igualdade de circunstâncias, sem divisões nem exclusividades.
Apesar de a nossa língua ainda não ser de comunicação global, enquanto língua significativamente usada por falantes de outros idiomas; já é uma língua internacional de um bloco linguístico global, enquanto materna ou oficial de oito países, em vários continentes, que define um bloco linguístico internacional, corporizado na CPLP, com uma margem de crescimento demográfico superior ao do francês, alemão, italiano, russo, entre outros.
Nesta perspetiva, há que ter presente o princípio da cooperação internacional destinado à proteção e valorização do património cultural português, partilhado pelos povos lusófonos por se exprimirem em português e terem connosco episódios de história comum. O que é destacado pelo n.º 4 do art.º 7.º da nossa Constituição, ao consagrar que “Portugal mantém laços privilegiados de amizade e cooperação com os países de língua portuguesa” e, bem assim, pelo art.º 9.º, alínea f), ao prever como tarefa fundamental do Estado a defesa do uso, promoção e difusão internacional da língua portuguesa, sem esquecer o seu ensino e valorização permanente, tanto na sua dimensão interna como externa. Cooperação também acolhida na Lei do Património Cultural, cujos arts. 2.º, n.º 7 e 5.º, mormente os seus n.ºs 2 e 3, ampliam a missão do Estado Português à conservação, preservação, salvaguarda e valorização do património cultural português fora do território nacional e do restante espaço lusófono, tendo como assente que a cultura e língua portuguesa são parte integrante da cultura europeia, mundial e universal, razão pela qual devem ser abrangidas pela proteção constitucional, tendo-se como inconstitucionais políticas de defesa da língua imperialistas, isolacionistas ou xenófobas. 

IV. A Língua Portuguesa na CPLP e na UE    

6. A língua portuguesa tem várias perspetivas e desempenhos em cada um dos dois grandes espaços geográficos e geopolíticos em que se integra, inseridos no todo do processo de globalização: a CPLP e a UE. 
Na CPLP é o eixo e a força que dá impulso ou produz movimento, a causa primária e fundamental, a luz que ilumina, quem conduz e guia. Nela sobressai a componente linguística e a equivalente matriz cultural comum, nas suas vertentes identitária e matricial cultural, correspondendo à sua imagem de marca, ao invés da componente económica e política (cfr. parágrafos 2.º, 3.º e 4.º da Declaração Constitutiva e art.º 3.º, alínea c) dos Estatutos da CPLP). Na UE sobressai a componente económica, existindo um desequilíbrio entre a política económica e monetária e a Europa social, cultural e linguística. O problema linguístico, tido como de retaguarda e não de vanguarda, tem sido negligenciado, a par de uma hipervalorizada componente económica e monetária.
Baseando-se o regime linguístico vigente na UE no princípio da igualdade linguística da União, consagra um regime plurilingue ou de pluralismo linguístico geral,  em que todos os países que a integram vêem consagradas as respetivas línguas oficiais como línguas comunitárias, com a consagração, em termos normativos, da igualdade linguística de direito, tendo como fonte o princípio da igualdade das línguas defendido pela Unesco.
A um critério formal baseado na igualdade linguística, tem-se contraposto um critério fundado numa relação de custos/benefício, rumo a um plurilinguismo restrito, invocando simplicidade e poupanças, à custa de uma discriminação negativa. 
Há quem fale em línguas dominantes e dominadas, estando entre as últimas o Português, prevendo-se que o seu futuro na UE, a manter-se a tendência atual, via secundarização de facto, leve, de seguida, à sua secundarização de direito. Esta inferiorização pode ocorrer pela substituição do princípio da unanimidade pelo da maioria qualificada, ou por uma usucapião pacífica do bem jurídico que são as línguas, argumentando-se a falta de operacionalidade derivada dos custos do plurilinguismo.  
Consagrada oficialmente a solução da diversidade na unidade e a igualdade linguística de direito em termos normativos, acabou por consagrar-se, na prática, a diversidade sem unidade, dada a tendência para a afirmação de um clube trilingue (inglês, francês, alemão), bilingue e, por vezes, monolingue. 
Em síntese, no contexto do Parlamento Europeu e demais instituições da UE, a língua portuguesa não é tratada, nem tem maior preponderância, que o esloveno ou o luxemburguês, o que é incompatível com o maior protagonismo do nosso idioma à escala global e com o reconhecimento formal pelo PE de ser, em número de falantes, a terceira língua do ocidente10. Apesar de o Português não ser percentualmente um dos idiomas mais falados a nível europeu e da UE12, o mesmo não sucede se tomarmos como referência o critério objetivo de difusão mundial das línguas.11 Daí que a CPLP e a Lusofonia possam ser o contrapeso a essa tendência atual da UE , na direção de uma perspetiva intercontinental, anti-eurocêntrica, mais global e universal, deixando de ter como referência central o seu próprio umbigo, sendo aquele o critério que melhor defende os seus interesses em termos de relações externas.13

V. O Direito à Língua Apropriada

7. Numa época em que a complexidade é a ciência do século XXI, para além do direito à própria língua e da sua vertente mais abstrata, o direito à língua é também um direito à língua apropriada. Quando se torne inexequível o exercício da língua do próprio falante (nacional, oficial, regional, materna, ou outra), tem o mesmo direito a uma língua sucedânea que, no mínimo, deve respeitar ou tentar respeitar, na medida do possível, a igualdade de tratamento entre línguas dos vários falantes que tomem parte na conversação e, assim, respeitar ou tentar respeitar a identidade matricial de cada um.  
Com frequência os países multilingues são convidados pela Unesco a adotarem uma fórmula que dê reconhecimento público ao uso de três línguas. Uma internacional, para participação na economia e nas redes mundiais. Uma língua franca, do tipo língua veicular local que facilite a comunicação entre grupos linguísticos diferentes. A língua materna, quando esta não for nem a internacional nem a franca. 
Assim se demonstra como se pode consubstanciar na prática o direito à apropriação da língua, quando, de todo em todo e consoante circunstâncias específicas da situação em causa, não pode ser utilizada a própria língua do falante.
Ultrapassada a esfera estadual rumo a uma perspetiva transcontinental e o mais global possível, verifica-se, desde logo, que a língua identitária da maioria dos falantes é insuficiente, dado que o conhecimento do inglês é essencial se se deseja comunicar com o todo do nosso planeta. Daí ser uma língua global e, ao mesmo tempo, uma língua apropriada (embora insuficiente no que toca à nossa necessidade de identidade, uma vez não ser o nosso idioma identitário). Quando um italiano e um turco falam em alemão, exercem através deste idioma o direito à sua apropriação (funcionando ainda, neste caso, um desempenho transétnico de transvivência da língua, não havendo coincidência entre o círculo linguístico e o círculo étnico dos seus falantes). Existe ainda esse direito de apropriação quando falantes lusófonos se exprimem em outra língua que não a própria, em situações em que os interlocutores não falam português, ou em organismos ou organizações internacionais em que o idioma comum não é tido como oficial.  
Para Amin Maalouf é preciso ir mais longe, dado que a língua identitária e a global já não chegam, existindo um espaço entre ambas que é necessário preencher.  
Tendo a língua identitária como a primeira língua e a global como a terceira (hoje o inglês), propõe que se necessita obrigatoriamente de promover uma segunda, voluntariamente escolhida, a que chama “(…) a língua do coração, a língua adotiva, a língua desposada, a língua amada…).14
Haveria, deste modo, “(…) ao lado dos “generalistas”, que conheceriam apenas a sua língua e o inglês, “especialistas” que possuiriam, além desta bagagem mínima, a sua língua privilegiada de comunicação, livremente escolhida de acordo com as suas próprias afinidades, e através da qual realizariam o seu desenvolvimento pessoal e profissional. Será sempre uma desvantagem séria não conhecer o inglês, mas será também, e cada vez mais, uma séria desvantagem conhecer apenas o inglês. Inclusive para aqueles cuja língua materna é o próprio inglês.”15
Tais situações, em nosso entender, de igual modo englobam um direito à língua apropriada, apesar de livremente escolhida, dada a sua natureza dinâmica, móvel e permanente interação. Por exemplo, cabe ainda referir pessoas singulares e coletivas não pertencentes a países e regiões lusófonas que mantêm com esses povos e regiões diálogos em português. À plasticidade, expressividade, expansão e número significativo de falantes naturais disseminados geograficamente, aditamos a capacidade de ser veículo de comunicação de outros falantes como língua de exportação, informatizada e internauta, para além dos que a herdaram desde o berço ou por nascença.

VI. A Língua como Bem Jurídico e o Direito da Língua

8. Examinadas as línguas numa perspetiva teleológica e os interesses dignos de tutela jurídica, há variações que se manifestam em várias dimensões, em obediência à regra de que a língua não é estática, mas um corpo vivo em mutação constante. 
É usual falar-se de uma trilogia de valências: a material, a espacial e a temporal.
A material está relacionada com o próprio “corpus” da língua, o seu conteúdo e estrutura intrínseca, independentemente do seu convívio com outros idiomas e do seu desempenho no círculo dos seus falantes. É a língua na sua versão intra-identitária.
A espacial, diatópica, geográfica e intrageracional tem a ver com a língua como modo de expressão ou meio de comunicação em sociedade, como afirmação e expressão cultural e civilizacional, com tudo o que tem de caraterístico.
A temporal ou diacrónica (e intergeracional) pode mover-se segundo dois vetores: a promoção da língua (política de vanguarda) e a sua preservação em relação a outras línguas (política de retaguarda).16
Exemplo da política de vanguarda, como linha de força da valência temporal, temos o art.º 9.º, alínea f) da nossa Constituição. 
Se a valência material corresponde ao “corpus” da língua, a diatópica e temporal corresponde ao seu “status”.  

9. A proteção das línguas conjugada com os correspondentes interesses dignos de tutela jurídica, está relacionada com os direitos da língua, que ora são vistos como direitos positivos dos ordenamentos jurídicos nacionais ou supra-estaduais, ou como direitos humanos de natureza linguística. Tais direitos, aceitando a tricotomia de valências atrás aludida, tanto andam à volta do “corpus” ou materialidade da língua (dimensão material), em redor do interesse na harmonia entre várias línguas no âmbito interno, externo e supranacional (dimensão espacial), ou em torno da necessidade da sua preservação e dos termos da sua expansão (dimensão temporal).
Além de que, se para cada indivíduo a aprendizagem da língua é primária e inevitável, enquanto que a do direito, a acontecer, é posterior (a língua é “materna” e o direito é “adulto”), não é menos verdade que tanto a língua como o direito são, ao mesmo tempo, fenómenos normativos, uma vez que apesar do direito ser um sistema de normas a língua, com as suas regras gramaticais, também o é. 

10. Tudo nos remete para o estudo do direito da língua, um direito normativo ou complexo de leis que fixam as relações entre os indivíduos, os seus direitos e obrigações, em termos linguísticos. Trata-se de um direito objetivo relacionado com a ciência jurídica, a língua na qualidade de meio de comunicação e a sua prática. 
Tratar-se-á, em suma, de um ramo embrionário da ciência jurídica. 
O direito da língua ainda não emergiu como ramo do Direito, não se autonomizou como ramo e disciplina jurídica, quer no tratamento doutrinário, construção jurídica de conceitos ou no sistema legal de quaisquer dos estados-membros da UE ou de outros estados de direito, que saibamos.
Esse estudo sistemático do direito da língua, tido como um direito objetivo, também não é feito entre nós, nem, ao que sabemos, nos demais estados lusófonos. 
Estamos em presença de uma lacuna sem justificação, incompreensível numa época de globalização em que existe uma interação permanente com o fator língua. 
Ao inverso do que já sucede com o direito do ambiente, de autor, do consumidor, do mar, marítimo, do urbanismo, entre outros, eventualmente não menos meritórios, mas que, de certo, não o serão mais. 
Até hoje têm sido essencialmente sociolinguistas a fazer a abordagem do tema da língua sob uma perspetiva jurídica, dada a interdisciplinaridade entre o direito da língua e a sociologia linguística, havendo necessidade, a nível do Direito, de uma mudança de atitude, por meio de trabalhos sólidos de construção jurídica de conceitos, em desfavor de meras análises pontuais do direito linguístico positivo ou comparado. 

11. Para a não autonomização do direito da língua poder-se-á argumentar, no direito português, com a autonomia do direito do património cultural, de que o elemento “língua” é parte integrante, uma vez que na Lei n.º 107/2001, de 21/09 (Lei de Proteção e Valorização do Património Cultural) a língua portuguesa é tida como um bem de interesse culturalmente relevante, sendo “(…) enquanto fundamento da soberania nacional , (…) um elemento essencial do património cultural português”, consoante decorre do art.º 2.º, n.ºs 1, 2 e 3. Prevê, por seu lado, o n.º 7 deste mesmo normativo: “O ensino, a valorização e a defesa da língua portuguesa e das suas variedades regionais no território nacional, bem como a sua difusão internacional, constituem objeto de legislação e políticas próprias.”
Quanto a nós, a Lei do Património Cultural não impede a autonomia do direito da língua como disciplina jurídica com dignidade própria. Por um lado, a realidade língua que tal lei especificamente prevê não é objeto, para efeitos dessa lei, de proteção e valorização no seu todo, desde logo pela exceção do n.º 7 do art.º 2.º. Por outro lado, numa era informática e internauta em que a língua assume cada vez mais relevância, tem a mesma necessidade de se autonomizar como um bem jurídico com particularidades próprias, autonomizando-se de forma crescente como ramo do direito de outro/s ramo/s jurídicos em que tradicionalmente se vem inserindo de modo parcelar. 
A natureza da globalização assente na eletrónica, cibernética, informática, internet e telemática a isso conduz, onde o fator língua é imprescindível na sua interação acelerada e velocista, com os correspondentes fluxos imateriais, imaterialidade que a própria língua por si transporta.
A ausência de um direito da língua como objeto de estudo de um ramo da ciência jurídica é uma, entre outras, das plúrimas dimensões da língua portuguesa de que o nosso ordenamento jurídico é omisso, o que urge suprir, tornando esse suprimento extensivo aos demais países membros da CPLP, através de uma política multilateral. O que deve ser extensivo a tudo o que se relaciona com o seu papel como Língua do Direito nas suas demais valências, por exemplo, no que toca ao Direito Português, aos Direitos Lusófonos e ao Direito Pactício Internacional. 
Sendo a pluralizada língua portuguesa património imaterial e comum de todos os seus falantes, natural e lógico que toda a Lusofonia17  deva colaborar via ações multilaterais na sua preservação, divulgação, promoção e internacionalização.

12. O que não colide, ao que pensamos, com o entendimento de Margarida Salema d`Oliveira Martins ao escrever que “(…) qualquer convenção internacional que implique a transferência para a União da defesa da língua e do património português será (se não for direta e materialmente inconstitucional por violar um preceito da Constituição) violador do princípio da subsidiariedade do art.º 7.º, n.º 6, segundo o qual deve ser deixado na esfera nacional tudo aquilo que só a esse nível pode ser adequadamente desenvolvido”18, já que falamos de lusófonos e lusofonia que têm o Português como língua comum, contrariamente ao contexto em que aquela afirmação é feita, a União Europeia, de várias línguas, em que a nossa, em relação aos demais Estados-membros, é tão só a língua de identidade de Portugal. Mais uma razão para que Portugal não possa, nem deva, protagonizar unilateralmente o seu potencial, quiçá com o argumento quimérico de uma língua que é mais nossa do que dos outros, uma vez portuguesa, tipo nova língua imperial, que definitivamente não é. Até porque tal potencial apenas se pode otimizar num cenário mais complexo e mais vasto, que uma estratégia isolacionista, agravada pela escassez de recursos demográficos e financeiros, não comporta. Tal estratégia tem de ser extraída e recuperada em algo que já existe, que está cá dentro, como algo que nos é comum e ao restante Mundo Lusófono, que dá pelo nome de língua portuguesa.
Se o art.º 7.º, n.º 4 da CRP estabelece que “Portugal mantém laços privilegiados de amizade e cooperação com os países de língua portuguesa”, o mesmo sucedendo, v.g., com os artigos 11.º, n.º 6, 12.º, n.º 3 e 8.º, n.º 3 das Constituições das Repúblicas de Cabo-Verde, São Tomé e Princípe e Timor-Leste, respetivamente, por que não aproveitar a vantagem assumida desses “laços privilegiados” decorrentes de forma decisiva de um idioma comum, começando pelo conhecimento, estudo e circulação de tudo o que tenha por base primária e direta essa língua comum?

13. Nesta sequência, entende Jorge Miranda que o direito de acção popular de preservação do património cultural (onde inclui o património linguístico) é susceptível de ser promovido não só por cidadãos portugueses, mas também por estrangeiros e, por maioria de razão, por todos os cidadãos de países de língua portuguesa com estatuto de igualdade, pelo que podemos falar de um direito de ação popular linguística (pró-língua portuguesa) lusófono, conjugado com o art.º 52.º, n.º 3, alínea a) da CRP.19
Todavia, para quem defende a inevitabilidade da autonomia do direito da língua, é cada vez mais premente uma consagração explícita e constitucional de um direito de ação (judicial) popular linguístico, afastando-se uma certa capacidade diminuta a que tem sido votada, não lhe dando a importância devida e demonstrando baixa consciência do seu valor, não obstante ter unido, em vários espaços, várias nações e estados.20

14. Refira-se, a propósito, que com frequência nos deparamos com situações em que são comercializados e distribuídos em Portugal produtos importados que são omissos quanto a instruções escritas em língua portuguesa. Apesar do preâmbulo do Decreto-Lei n.º 238/86, de 19/08 reconhecer que “(…)o crescente alargamento do mercado nacional a produtos ou serviços de origem estrangeira, quando não acompanhado pelo uso da língua portuguesa, inviabiliza na prática o exercício do direito à informação”, muitas omissões continuam, inclusive a nível de novas tecnologias de ponta, sem que nada aconteça, que se saiba, porque continuamente repetitivas, apesar de puníveis. 
Embora lamentemos a atitude de indiferença do cidadão comum em geral, não denunciando nem reclamando de tais situações, por maioria de razão se lamenta a conduta omissiva de entes de fiscalização, já que deveria ser um dado adquirido que sendo nós portugueses e residindo em Portugal, o direito à informação no nosso idioma é fundamental. O que se pode traduzir, em casos extremos, em dizer sim a uma endo-glossofobia, em que os falantes da sua própria língua contribuem para a sua discriminação pela negativa, algo de grave para a saúde identitária de um povo.21
Apesar de existir uma sanção específica, para punição de uma contra-ordenação,  entendemos que tal omissão também pode ser tida como uma violação do conceito de obrigação de conformidade, previsto pelo art.º 2.º da Directiva 1999/44/CE do Parlamento Europeu e do Conselho da União Europeia, de 25 de Maio, transposta para o ordenamento jurídico português pelo Decreto-Lei n.º 67/2003, de 08/04.  
Exigindo a lei geral a obrigatoriedade da língua portuguesa, à semelhança da garantia prevista pelo art.º 9.º, n.º 3 do Dec.º-Lei n.º 67/03, de 08/04, não faz sentido, em nossa opinião, que tal omissão não acarrete uma desconformidade e que não integre uma obrigação de conformidade com as respetivas consequências de reparação, reposição ou outra, prevista pelo art.º 4.º do mesmo diploma. 
Se antigamente a regra era ter como melhor língua a do vendedor, por uma questão de prestígio, indicia-se que hoje não chega, pois apesar de dar prestígio, não dá negócio. Há que invertê-la e defender que a melhor é a do comprador.

15. O que não invalida que o diálogo seja sempre promovido, sendo sabido   vivermos um momento em que as políticas linguísticas são cada vez mais  multilaterais, por maioria de razão sendo o idioma comum a várias culturas, como sucede com o nosso, com reflexos no Direito, em paralelo ao cumprimento das agendas nacionais.22    

Joaquim Miguel Patrício, 14/01/14          
Licenciado e Mestre em Direito  
Direitos autorais para publicação reservados nos termos legais.  


NOTAS:

1“Constituição da República Portuguesa Anotada”, art.º 11.º, Volume I, Coimbra Editora, p. 292. 

2Embora na Lei Fundamental o Português seja consagrado como língua oficial da República Portuguesa, existe uma outra língua com reconhecimento oficial de direitos linguísticos em Portugal, a mirandesa, via Lei n.º 7/99, Diário da República, I Série A, n.º 24, de 29/01, regulada pelo Despacho Normativo n.º 35/99, de 20/07. 

3“Constituição Portuguesa Anotada”, art.º 11.º, Tomo I, Coimbra Editora, p. 109.

4O que é diferente de um “direito à língua” universal, no sentido de uma só e a mesma língua falada por todas as pessoas e povos, em todos os lugares.

5A nossa Constituição, no art.º 74.º, n.º 2, alínea h), prevê expressamente que incumbe ao Estado “proteger e valorizar a língua gestual portuguesa, enquanto expressão cultural e instrumento de acesso à educação e da igualdade de oportunidades”.

6“A Identidade Nacional”, Edição Gradiva, 2.ª edição, 2001, Lisboa, p. 72.

7“Livro do Desassossego” por Bernardo Soares, edições  Ática, Lisboa.

8Cfr. Fernando Pessoa, em “A Língua Portuguesa”, Assírio & Alvim, Lisboa. 

9“Uma civilização representa a mais ampla entidade cultural”, reunindo várias culturas, Samuel Huntington, “O Choque das Civilizações e a Mudança na Ordem Mundial”, Gradiva, Lisboa, p. 47.

10Baseada num relatório apresentado no Parlamento Europeu pelo deputado português Mário Soares, em Fevereiro de 2003, foi adotada, em 08 de Abril, uma Resolução Parlamentar que reconheceu a língua portuguesa como a terceira língua europeia de comunicação universal.

11Estando acima de idiomas mais falados na UE, como o francês, o alemão, o italiano, o polaco e o holandês.

12Podendo falar-se num dilema bipolar da língua portuguesa, ao assumir o estatuto de língua global a nível mundial e de “pequena” língua da UE.

13Um dos mais recentes exemplos em que foi usado o critério do número global de falantes das várias línguas à escala mundial, é o acesso à biblioteca digital mundial, em sete línguas: árabe, chinês, francês,  espanhol, inglês, russo e português (sítio www.wdl.org.). 

14“As Identidades Assassinas”, Difel, 2.ª edição, p. 156.

15Idem, p. 156.

16Para maior desenvolvimento sobre tais valências ver, entre outros, Miguel Faria de Bastos, “Língua e Cultura”, Revista Trimestral, V volume, ano 2000, da Sociedade de Língua Portuguesa, Lisboa. 

17Em especial o seu núcleo duro e central, constituído pelos Estados-membros da CPLP.

18“O Princípio da Subsidiariedade em Perspetiva Jurídico-Política”, Coimbra Editora, p. 409.

19“Constituição da República Portuguesa Anotada”, Tomo I, p. 495/96.

20Não se tendo como suficiente, nesta ótica, que tal direito está previsto no art.º 9.º, n.º 2 da LPC (mesmo que de forma mitigada), segundo o qual: “É reconhecido, nos termos da lei geral, o direito de participação procedimental e de ação popular para a proteção de bens culturais ou noutros valores integrantes do património cultural”.

21Portugal ao aderir ao Acordo de Londres, no âmbito da Convenção da Patente Europeia, ao prever que se deixe de exigir a tradução para português, devendo adotar outro idioma, nomeadamente o inglês, francês e alemão (línguas dominantes), está a impedir a afirmação da nossa língua enquanto língua tecnológica, já que o custo de tradução das patentes passará para as empresas portuguesas, contrariamente à anterior obrigatoriedade legal de que as patentes em vigor seriam sempre  traduzidas para português.

22Será o caso, v.g., do Acordo Ortográfico, enquanto instrumento estratégico orientado para o exterior da comunidade, para que esse exterior deixe de olhar a língua portuguesa com o um idioma de fragmentação, o que não significa, quanto a nós, que a nível criativo (nomeadamente artístico e literário) impere a homogeneidade, uma vez ser esta, por natureza, contrária à arte.  

           

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