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"O CONCELHO DE SEIA NA HSTÓRIA DO CINEMA MUDO EM PORTUGAL"
Publicamos aqui a reportagem que saiu no Jornal "Porta da Estrela" (www.portadaestrela.com) no dia 22 de Junho de 2009. A Parte III será publicada no mesmo jornal a 30 de Junho de 2009.
Publicamos aqui a reportagem que saiu no Jornal "Porta da Estrela" (www.portadaestrela.com) no dia 22 de Junho de 2009. A Parte III será publicada no mesmo jornal a 30 de Junho de 2009.
Em particular, aborda-se o contributo do italiano Cesare Rino Lupo, realizador de cinema.
A investigação insere-se no projecto de investigação "Fazer a História de São Romão - Serra da Estrela até ao ano 2010", da autoria de Carlos Manuel R. S. Dobreira.
O concelho de Seia na História do Cinema Mudo em Portugal (Parte I)
O filme “Os Lobos”, de Rino Lupo, 1923
No início da segunda do século XX, o realizador Cesare Rino Lupo (1884 – 1934?) realizou o filme “Os Lobos” , inspirado na peça de teatro com o mesmo nome da autoria de Francisco Lage e João Correia de Oliveira. A peça tinha um elenco notável, com destaque para Amélia Rey Colaço e Robles Monteiro e a encenação de Inácio Peixoto. Para a concretização do filme escolheu locais na Serra da Estrela, nomeadamente, de Seia, São Romão, Senhora do Desterro e Valezim, mas também de Nelas, Leixões e da Foz do Douro, paisagem idílica. A produção do filme esteve a cargo da Ibéria Film, Lda e custou 250 contos.
Em Valezim, num pátio do Solar da Família Castelo Branco, foi instalado um dos estúdios de trabalho. Existe registo fotográfico que o comprova, sendo confirmado por reconhecimento no terreno e pelo testemunho de António Marques, valezinense com 99 anos de idade. Rino Lupo deixou para a posteridade as vivências durante a rodagem do filme no concelho de Seia. Eis o seu testemunho: “Venho encantado com a extraordinária beleza dos rincões da Serra da Estrela onde trabalhámos consecutivamente durante dois meses e meio. Admirei bastante a gentileza daquelas gentes de Seia e de Valezim desde as pessoas mais categorizadas aos mais humildes camponeses e pastores da serra. Todos me ofereceram espontaneamente os seus serviços e a sua cooperação sincera e leal, pelo que se tornou fácil a construção em plena serra de cinco «décors» sem lhe faltar o mínimo detalhe, assim como proporcionaram todas as facilidades na «mise-en-scène» dos seus exteriores. Aumentei à peça três personagens, refundia-a sem lhe alterar o espírito, de maneira a tornar a acção «cinematográfica».”
Manuel Félix Ribeiro evoca uma estreia oficial do filme no Theatro Circo, em Braga, não indicando a data. Procurou-se confirmar a sua veracidade, sem sucesso até ao momento. Uma parte do espólio do Theatro Circo esteve na posse da Associação para a Defesa, Estudo e Divulgação do Património Cultural e Natural (ASPA) e foi depositado na Torre de Menagem (então sede provisória da ASPA), mas perdeu-se devido a uma vaga de assaltos. Outra parte do espólio está depositada na Biblioteca Pública de Braga (BPB). Precisamente nesta instituição, folhearam-se as edições do Jornal Diário do Minho, correspondentes aos anos de 1923 a 1924 e não se encontrou qualquer referência à estreia oficial.
Recorreu-se também à douta colaboração de Tiago Baptista, conservador da Cinemateca Portuguesa – Arquivo Nacional das Imagens em Movimento (CP-ANIM) e autor de uma recente biografia de Rino Lupo , cuja investigação não encontrou provas de veracidade da estreia em Braga.
Posteriormente, através do historiador Luís Costa, foi possível precisar que em Março de 1922, no Theatro Circo, a Companhia Rey Colaço – Robles Monteiro, levou à cena a peça de teatro “Os Lobos”.
O filme foi apresentado, em ante-estreia, a 2 de Maio de 1923, no “Jardim Passos Manuel” . A estreia ocorreu, no mesmo local, em 7 de Maio de 1923. Em Lisboa, a estreia ocorreu no Teatro São Luís, no dia 7 de Junho de 1923. Tratou-se da versão, designada por “versão de estreia”, com oito partes, infelizmente desconhecida até ao momento.
A 12 de Maio de 1924, deu-se a apresentação da “versão da reposição”, com seis partes, ocorrida no Salão Foz e no Chiado Terrasse (Lisboa).
Entre as duas versões existem diferenças, dado que a primeira tem cerca de 1800-2000m e a segunda cerca de 1500m. É desta segunda versão que existe uma cópia da época em nitrato de celulose, arquivada na CP-ANIM, desde 1937. Esta instituição afecta ao Ministério da Cultura procedeu ao restauro desta cópia em 1958 e em 2003.
Em 2003, nos Archives Françaises du film – CNC (Bois d´Arcy, França), foi encontrado um negativo original da versão de reposição do filme “Os Lobos”, datada de 1924.
Conforme documentação existente no Centro de Documentação da Cinemateca Portuguesa, é possível constatar no Arquivo Invicta Film, a existência de correspondência comprovativa do envio, entre 28 de Dezembro de 1922 e 5 de Fevereiro de 1923, de 8 caixas da película virgem negativa Pathé para dois dos locais de rodagem (Seia e Valezim). A este respeito, Tiago Baptista, esclareceu-nos que a correspondência expedida do Porto não indica a morada do destinatário, apenas as localidades.
O concelho de Seia na História do Cinema Mudo em Portugal (Parte II)
Visionamento do filme “Os Lobos”, de Rino Lupo, 1923
Uma cena do filme realizada junto à Capela de São João, em Valezim.
(Colecção Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema)
No passado mês de Abril, foi possível observarmos o filme “Os Lobos” na Cinemateca Portuguesa – Arquivo Nacional das Imagens em Movimento (CP-ANIM), em concreto, a versão de reposição (1924), restaurada em 2004 e composta por 6 partes.
O filme inicia-se com os autores a observar um exemplar da peça de teatro “Os Lobos”, numa mesa duma sala, na presença do realizador, e um suposto guião de adaptação ao cinema.
Surgem a praia do Molhe na Foz do Douro e Leixões. Ruivo (José Soveral) é o “lobo” marítimo e aparece numa pequena embarcação em conversa pouco amigável com o marinheiro Sílvio (Francisco Amores). O motivo é passional, de acordo com a legenda (intertítulo) que diz: ”nega…nega…tu e a minha mulher! …”. Ruivo responde dizendo: “mulheres …são como as ondas…”. A discussão anima e transforma-se numa luta violenta, ante o olhar estupefacto de várias pessoas que, na praia, interrompem o amanhar das redes. A luta termina com o assassinato de Sílvio, à facada. O corpo do marinheiro é retirado do barco. Ruivo é preso pela polícia. Vê-se o casario da Foz do Douro como fundo desta cena. Após algum tempo preso, a justiça desterra Ruivo para o degredo na Serra da Cabreira. No filme, Rino Lupo transporta todo o imaginário paisagístico e antropológico da Serra da Cabreira para a Serra da Estrela. Na peça de teatro, o primeiro acto decorre na “Inverneira” da Varziela, cerca de 1,5 quilómetros para nascente de Castro Laboreiro, sendo que o segundo e terceiro actos localizam-se na “Veranda” da Seara, zona montanhosa.
Entretanto, surge a Fonte das Quatro Bicas em Seia e, depois, diversas vistas de Valezim, nomeadamente a partir do alto de Sazes, vendo-se um forno em zona altaneira por detrás da Igreja de Nossa Senhora do Rosário. Sam Gens (Eduardo Rios), é um serrano que introduz Ruivo na comunidade. É apresentado um intertítulo com a afirmação de Sam Gens: “Já sei que Tónio se casa. Venho ao cheiro das bodas. É amanhã, não é?”, a que responde Águeda (Sarah Cunha), noiva de Tónio, “Se Deus quiser!”. O filme prossegue apresentando a encosta de Valezim e os seus cômbaros. “E o teu Pai, Luzia?”, pergunta Sam Gens. Vê-se uma cascata na ribeira de Valezim, um burro carregado de lenha, puxado à rédea pelo Tio Gemil (Manuel Batista), que carrega um pinheiro às costas. Num forno comunitário, Luzia (Branca de Oliveira) prepara o mesmo para a cozedura do pão, carregando-o de rama de pinheiros, na presença sedutora de Ruivo, o qual pergunta ao Tio Gemil: “Nunca viu o mar, tio Gemil?”. Surge Gardunho (Joaquim Avelar), personagem perverso, correndo atrás de um carneiro tresmalhado, que acabará por matar. Perante o seu rebanho, Tobias constata a falta de um carneiro e exclama com lamento: “Nosso Senhor, falta-me o pedrisco, será lobo?”. Ruivo introduz-se na vida da terra e procura uma cama para dormir. O Tio Gemil diz que não existe hospedagem para o Ruivo, mas pode dormir no moinho velho, e aconselha-o a trabalhar. Aparece Tónio (Joaquim Almada), o montanhês, que se encontra com Águeda, sua noiva, tendo por fundo de imagem uma parede rústica em granito.
Vemos muros de divisão de propriedades e caminhos, uma ponte antiga, talvez a ponte romana de acesso à Capela de São Domingos.
Junto à ribeira de Valezim, uma aldeã, com traje minhoto, carrega uma canastra com hortaliças. Os trajes são tipicamente minhotos e correspondem ao enquadramento da peça de teatro.
Surge a torre sineira da Capela de São João e o sino anuncia o “toque das Trindades”. As personagens rezam: “Ave-maria, cheia de graça, guardai o meu rebanho…”.
Tendo como fundo mais uma linda paisagem de Valezim, vista do alto de Sazes, os intertítulos mostram-nos: “Rogai por nós pecadores”. Gardunho também reza.
O filme proporciona um momento da lida rural. Andreza (Flora Frizzo), a mãe de Tónio, lava os pratos numa gamela de madeira, amassa-se o pão numa masseira e é depois tendido para ser colocado no forno. Numa lareira antiga cozem-se as hortaliças em grandes caldeiras de cobre, suspensas por correntes de ferro. Tónio côa o leite, vê-se cestaria e o fumeiro. Realiza-se o cerimonial de bênção para o pão. Águeda faz cruzes sobre a massa. Na peça de teatro, esta tradição é associada à seguinte reza: “Sam Mamede te levede, Sam Vicente te acrescente”. Carregam os tabuleiros à cabeça protegida por uma “rodilha”. Tudo isto num cenário representando um amplo pátio interior de uma habitação rural de Valezim, claramente um dos “décors” preparados para o filme, cuja localização exacta não foi possível apurar.
Avista-se a rua do Cabo, em Valezim. Enquanto decorre a cozedura do pão, as três jovens que transportaram os tabuleiros trocam impressões entre si, enquanto apreciam uma racha de lenha, efectuada por dois homens, que chegaram com uns pinheiros às costas.
O filme prossegue com o intertítulo “As prendas do Noivado”. No cenário em que tem decorrido a cena de vida rural, Águeda, a noiva, recebe prendas de casamento sob o olhar do seu noivo. Entretanto, o realizador transporta-nos para mais uma cena da vida serrana, mostrando a chegada de um rebanho à aldeia proveniente do pasto na serra. Assiste-se à recolha do rebanho numa corte e surge um cão pastor, numa travessa de Valezim, por identificar.
Somos surpreendidos ao vermos a Capela de Nossa Senhora da Saúde sem a escadaria hoje existente, e com o largo ainda despido de arvoredo. Realiza-se o casamento. O cortejo sai da Capela, encabeçado pelos noivos, com intérpretes do filme e figurantes de Valezim. É apresentada a boda que decorre numa cozinha típica de Valezim, com a presença de Ruivo, recebido com desconfiança. Um serrano toca concertina e Ruivo deslumbra com a sua guitarra e voz enquanto se legenda: “as ondas do mar são brancas…”. As personagens cantam.
Surge o fontanário da Abilheira, onde duas mulheres enchem os seus cântaros. Retrata-se o pastoreio da serra. Tobias (Santos Castro), guardador de cabras, “arranca da sua flauta agreste notas de melodia rústica.” A ele se opõe o encanto que anda no ar devido ao dom de Ruivo no canto da sua voz e no toque da sua guitarra.
O enredo ganha vivacidade com a denúncia de Gardunho, por Ruivo, como o autor do roubo das ovelhas. A comunidade decide perdoá-lo por ocasião da Semana Santa, mas Gardunho ausenta-se.
Ao nascer do Sol surge um local de rodagem preservado que posiciona as filmagens junto à Casa do Manuel do Desterro, em São Romão, na Senhora do Desterro. Existe um registo fotográfico desta cena, tendo-se confirmado por familiares a veracidade do local, podendo admitir-se, que, na versão original, de 8 partes, mais cenas tenham sido rodadas nesta localidade, dado que na existente parece reconhecerem-se algumas paisagens da zona.
Noutra cena vê-se a Igreja Matriz de Seia e o burgo histórico envolvente, com Gardunho posicionado no antigo caminho que ligava Seia a São Romão, de regresso a Valezim onde pretende vingar-se de Ruivo.
O filme reporta-nos a mais umas paisagens rurais de Valezim, a saber: o típico “carro de bois”, as lareiras fumegantes, um grupo de moças transportando à cabeça as “taleigas” com farinha que foram carregar ao moinho, este também enquadrado na queda de água que faz movê-lo.
Entretanto, Ruivo prossegue o galanteio de Águeda, sem conhecimento de Tónio, e também de Luzia.
A revelação do adultério de Águeda é feita por Gardunho que diz para Tónio:”Bateu a noite à tua porta com a traição lá dentro”. Perante a incredulidade de Tónio, Gardunho insiste:”Vi-o eu com estes olhos que a terra ainda não quis comer.”
Perante as paisagens serranas, uma mudança de cenário leva-nos à Foz do Douro com imagens das ondas batendo fortemente nas rochas, enquanto que sobre estas, três mulheres aparecem-nos numa cena dos primeiros e arrojados “nús” do cinema português.
Rino Lupo segue o desfecho da peça, mas altera o “modus operandi”. Na peça de teatro, Tónio, golpeado na cabeça por Ruivo, consegue com uma machadada certeira ferir de morte Ruivo na cabeça. No filme, o lobo da serra (Tónio) e o lobo do mar (Ruivo) lutam com ferocidade em zona altaneira, pensamos que na zona do actual Cabeço do Crasto de Valezim (Demestre ou Darnelas) mas, no final, Tónio fere de morte Ruivo com uma dentada no pescoço. Tónio esconde-se num rochedo próximo. Eis que surge Gardunho, deambulando pelas serranias e, perante o corpo inanimado de Ruivo, agita-o e cheira-o, com faro de lobo.
No final do filme, dá-se o pôr-do-sol, surge a Igreja da Misericórdia de Seia e o toque do sino na torre sineira.
Carlos Dobreira
Os Lobos ("vistos" por Guida Lami)
“A neve na Senhora do Desterro Casa do Manuel do Desterro
Neste local filmou-se uma scena dos Lobos.” (Fotografia de José Seabra Figueiredo)
Volvidos mais de oitenta anos sobre a data da estreia do filme “Os Lobos” (7 de Maio de 1923), de Rino Lupo, a sua apreciação tem de basear-se em critérios diferentes daqueles que se aplicam aos filmes de hoje, em tudo diferentes daqueles que foram vistos pelas primeiras gerações do século XX.
Um filme mudo deve ser apreciado, do ponto de vista do seu impacto no público, tendo em conta aspectos como a qualidade da imagem, a qualidade da interpretação, a qualidade do argumento, o enquadramento na paisagem exterior ou a reconstituição dos ambientes interiores.
De forma sucinta, consideraremos estes vários aspectos, tendo em conta o facto de o filme observado ter sido posteriormente restaurado em 2004, com meios tecnológicos pertinentes.
Imagem – a preto e branco e de boa qualidade, nítida e contrastada, permite um agradável visionamento, quer das pessoas, quer dos ambientes, sobretudo dos que retratam os interiores.
Interpretação – tal como é característico dos filmes mudos, os intérpretes têm de exprimir sentimentos, intenções e objectivos mercê da sua expressão corporal, o que é bem conseguido no filme talvez até, por vezes, com um certo exagero.
Argumento – a história do filme baseia-se numa tragédia amorosa com todos os ingredientes próprios do estilo: amor, ciúme, traição, vingança e morte. Pelo facto de o filme não ser sonoro, as várias fases do argumento são interrompidas por intertítulos que de certa forma auxiliam a compreensão do argumento.
Enquadramento na paisagem – as cenas de exterior, filmadas em diversos locais da Serra da Estrela e outros, permitem reconhecê-los graças a pormenores, como casas, fontanários ou igrejas, ainda hoje existentes. As cenas que decorrem em ambientes interiores reconstituem-nos cuidadosamente, focando pormenorizadamente quer objectos, quer os respectivos enquadramentos.
Comentário
O nome do filme induz o espectador em erro já que os lobos não são os animais ferozes da Serra, mas sim dois homens cujos sentimentos violentos os assemelham a lobos: o lobo da serra, o homem traído que acaba por se tornar um assassino, e o lobo do mar que virá a ser morto pelo primeiro devido ao seu miserável comportamento. O homem, ou o lobo, que mata, serve-se como o animal dos seus dentes; o homem que morre, morre como o animal, com a garganta dilacerada. Por fim e nas últimas imagens, o filme sugere ainda uma cena de canibalismo: com efeito, um terceiro personagem, a quem chamam o Gardunho, devorador de ovelhas, surge na última cena para tomar posse do cadáver do assassinado.
Embora velho de mais de oitenta anos, o filme é de um realismo notável que o assemelha a qualquer congénere dos nossos dias. É um bom filme, digno de ainda hoje ser apreciado nas salas de cinema.
Guida Lami
Seia, São Romão e Valezim na história do cinema mudo português
A personagem Gardunho no antigo caminho de Seia para São Romão,
vendo-se ao fundo a Igreja Matriz de Seia e o centro histórico em redor.
(Colecção Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema)
A personagem Gardunho no antigo caminho de Seia para São Romão, vendo-se ao fundo a Igreja Matriz de Seia e o centro histórico em redor. (Colecção Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema)
O enredo da peça e, portanto, do filme, decorre na Serra da Cabreira (Distrito de Braga) mas, sabe-se lá porquê, o realizador optou por fazer a maior parte da rodagem do filme na Serra da Estrela, pelo que lhe ficam associados belos locais. Visionando o filme (restauro de 2004, com base no negativo original da versão de reposição, encontrada em França), é flagrante para nós, conhecedores do ambiente onde o mesmo se desenrola, o contraste entre a realidade da Serra da Estrela e a que o filme apresenta, nomeadamente no que se refere aos trajes tradicionais. Já quanto aos costumes pouca diferença se nota, pois também aqui se recorda o moinho, o forno comunitário e a preparação do mesmo para a cozedura do pão, os rebanhos, a feitura do queijo, o fumeiro, entre outros.
O filme foi rodado entre Novembro de 1922 e Fevereiro/Março de 1923, na Foz do Douro, Leixões, Nelas e, como dissemos, em diversas locais do concelho de Seia. Em cenas do filme podem ver-se monumentos emblemáticos de Seia, desde a Igreja Matriz e o centro histórico em redor, a Igreja da Misericórdia (com parte da escadaria e o sino da torre) até à Fonte das Quatro Bicas e ainda paisagens da entrada da Senhora do Desterro, em São Romão. A este respeito, existe uma fotografia original, na posse de José Seabra Figueiredo, de São Romão, com a seguinte legenda: “A neve na Senhora do Desterro Casa do Manuel do Desterro Neste local filmou-se uma scena dos Lobos.”
Mas é em Valezim que são rodadas muitas partes do filme visionado. Ficam registados para a história, além das paisagens abrangentes de Valezim, a Capela de São João e o seu sino (no toque das Trindades), a Rua do Cabo, muito do seu casario ainda hoje existente e recuperado, as casas em granito junto à actual piscina, as fachadas traseira e direita da Igreja de Nossa Senhora do Rosário, os batoréus e caminhos, a Capela de Nossa Senhora da Saúde (onde se realizou o casamento dos personagens Tónio e Águeda, com figurantes de Valezim), a Capela de São Domingos com alpendre e sem telhado, a Fonte Abilheira, o Vale da Ribeira de Valezim, e paisagens junto à ponte Romana. Das cenas de serra, apurou-se um local de rodagem designado por Carvalhal.
Carlos Manuel Dobreira
O concelho de Seia na História do Cinema Mudo em Portugal (Parte III)
Recordando a rodagem do filme “Os Lobos”, em Valezim…
(Entrevista com António Marques)
Esta fotografia localiza um dos décors do filme.
Trata-se do átrio de entrada da casa de Isaac Fonseca, em Valezim, que mantém a traça.
(Colecção Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema)
“Então não me lembra! Se lembro! – diz António Marques, um provecto valezinense, enquanto conta o que foi possível lembrar-se, oitenta e seis anos após os factos, que remontam a Novembro e Dezembro de 1922 e a Janeiro e Fevereiro/Março de 1923.
Seria difícil encontrar alguém que ainda fosse capaz de nos confirmar a passagem por Valezim dos intervenientes do filme “Os Lobos”. Tentámos, e através de pessoa amiga, chegámos à conversa com António Marques, natural e residente em Valezim, que no próximo dia 5 de Julho completará 100 anos de idade. Teria, pois, 14 anos, na data do acontecimento. Aceitamos ser possível não esquecer o “rebuliço” vivido na época, como resultado da presença de pessoas de outra região, e que teriam provocado grande alteração na pacatez da vida de Valezim da época.
Porta da Estrela (PE):
Sr. António, em finais de 1922 e inícios de 1923, em Valezim, andaram por aqui uns artistas a fazer um filme. Lembra-se de tal coisa e dos sítios onde filmaram?
António Marques (A.M.):
Então não lembra! Foi lá cima no Carvalhal. Arrastavam daqui lá para cima as torgas secas e acendiam-nas lá no alto. Faziam um monte e deitavam o fogo para fazer fumo e carvão. Era lá num “talegre” que lá havia. Eles não carregavam nada às costas…
PE: Pois é. Vinham lá das capitais…
A.M.: Pois vinham. Eles traziam aquelas máquinas grandes, antigas…antigas …daquelas com trapézios (são tripés) que deitavam um pano por cima.
PE: E aqui em Valezim?
A.M.: Andaram ali naquela ponte, que é a ponte romana. Ficavam ali uns moinhos. Olhe, havia dois deste lado e lá abaixo o do Isaac, que tinha também um moinho ali.
PE: Mas lembra-se deles andarem a filmar aqui em Valezim…
A.M.: Era…era nestes sítios que eles viam que ficavam melhor para aparecer noutros lados. Aquilo era para ser vendido, claro. Iam ganhar dinheiro, senão não o andavam a gastar…
PE: Mas, eles filmaram aqui na casa onde hoje fica o clube?
A.M.: Ah. Pois. Filmaram toda a Casa Real! Casa Real! Até lá estão as armas reais. Havia lá uns homens…eram todos importantes.
PE.: É a Casa dos Castelo Branco gente nobre.
A.M.: É. Andaram lá em frente e naqueles quintais e na casa.
PE: Porque é que chama a Casa Real?
A.M.: Porque havia cá homens…reais…gente nobre, claro. Agora não há cá ninguém como nesses tempos. Naqueles tempos havia aqui homens rijos e tesos.
A.M.: Deixe-me cá ver. (E aponta para uma foto). E diz: Estes eram dos que cá andaram.
PE: Então lembra-se dos artistas cá andarem?
A.M.: Eles lá andavam nessas comédias com as raparigas…bem, com as mulheres, que elas eram uns mulherões. Eu não sei, mas agora já não há mulheres da estatura que aquelas tinham. As mulheres agora são mais pequeninas. (E arranca uma estrondosa gargalhada) Eram uns mulherões. Lembra-me muito bem. Eu já tinha idade. Já andava com os rebanhos por aí.
PE: Há uma fotografia que apresenta um casamento na Senhora da Saúde…
A.M.: Mas ainda não estava como agora…era terra em volta…não tinha escadaria nem muros.
PE: Convidaram pessoas daqui para serem figurantes, lembra-se?
A.M.: Sim…Sim…Então, eles traziam tanta gente. E carros! Transportavam tudo de carro. Não vinham a pé, pois já havia caminho. Eu lembro-me. Eu vi. Eu também era danado para ver. Entregava as ovelhas a um irmão meu e ia ver. Eu gostava de espreitar aquilo.
PE: Então lembra-se disso?
A.M.: Então não me lembra! Se lembro! Muito bem até. Aquilo era uma seita do “carago”, também lhe digo.
PE: O Sr. António tinha 14 anos. Portanto, uma idade que lhe permitiu registar o que se passou. Lembra-se se essa gente pernoitava em Valezim ou iam e vinham todos os dias?
A.M.: Iam e vinham.
P.E.: Para onde, não sabe?
A.M.: Era para Seia, porque o Zé Morgado (com carro de aluguer em Seia na época) é que os trazia e levava. O Zé Morgado tinha um carro…um carrão vermelho…aquilo andava! Eles andavam em dois carros, não era só um. E então não tinham lotação. Era os que cabiam.
P.E.: O Senhor António conheceu três homens na fotografia…
A.M.: Ah. Pois conheci. Eram os que estavam mais melhor de se conhecer. Naquele tempo Valezim era muito sossegado. Apareceu aqui aquela rapaziada…foi uma revolução, um desassossego…
Pois foi. Todos gostavam de ver. Andaram a espreitar como eu. Eu já tinha 14 anos.
O testemunho é válido, e especialmente no episódio que refere a feitura do carvão com as torgas, pois é uma das cenas bem marcantes do filme.
A Capela de São Domingos com alpendre e sem telhado, em Valezim.
(Colecção Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema
A exibição do filme “Os Lobos”, 1923
Para além das exibições inseridas na ante-estreia, estreia e reposição (versão com 8 partes, todas em 1923), e depois na apresentação da versão de reposição (em 1924), o filme, segundo Manuel Félix Ribeiro, alcançou dimensão internacional pois foi exibido em diversos países (Brasil, Espanha, França, Itália e Roménia). Não conseguimos apurar se o filme “Os Lobos”, apresentado em 1923 e em 1924, foi visto nas localidades de rodagem, ou se alguns habitantes do concelho de Seia estiveram presentes nas exibições de 1923 e 1924. De facto, só investigações mais demoradas poderão esclarecer isso mesmo.
Em Seia, nos finais da década de 20 do século XX, existia uma sala para projecção de filmes, boa para a época, com plateia, geral e camarotes, afecta à Associação de Socorros Mútuos Senense e localizada na Rua 1.º de Dezembro, nas traseiras do actual edifício da Câmara Municipal de Seia.
Por volta de 2001, abordou-se com José Alberto Ferreira Matias, de forma ocasional, a história da exibição cinematográfica em Seia.
Com a publicação presente achei por bem averiguar se o filme teria sido exibido em Seia, pedindo a sua colaboração, a partir da leitura das edições da imprensa local depositadas no Arquivo Municipal de Seia. Em particular, e como ponto de partida, a investigação incidiria sobre o jornal “A Voz da Serra”, fundado pelo seu pai, Luís Ferreira Matias. Oportunamente, aguarda-se o resultado desta diligência através da elaboração de um artigo, da sua autoria, de enquadramento complementar a esta investigação.
O legado do filme “Os Lobos”, 1923 – Algumas sugestões
No Centro de Documentação e Informação da Cinemateca Portuguesa (Arquivo Fotográfico), existe um conjunto de registos fotográficos da rodagem do filme, da autoria do actor José Soveral, em formato analógico. Consultou-se o acervo, constituído por 77 fotografias (algumas repetidas a partir dos originais), e que está preservado e deve ser alvo de investigação para publicação pertinente.
Cabe aos habitantes de Seia, São Romão e, principalmente de Valezim, solicitar diligências que concretizem uma possível obtenção deste património fotográfico, salvaguardados os direitos reservados, para poder ser visto e apreciado sempre que desejado, não deixando de vincar o enorme interesse deste espólio para a comunidade escolar e académica (Escolas e Escola Superior de Turismo e Hotelaria de Seia). Só através da Câmara Municipal de Seia, da Fototeca Municipal e das Juntas de Freguesia, tal será possível.
Também fica um desafio ao CineEco. A vida e obra de Rino Lupo e o filme “Os Lobos” justificam a promoção de um ciclo de cinema mudo temático, onde se incluiria a exibição descentralizada do filme no concelho de Seia.
Pelo interesse de fundamentação, a Câmara Municipal de Seia e as Juntas de Freguesia de Seia, São Romão e Valezim podiam promover uma sessão de apresentação dos livros de Manuel Félix Ribeiro e de Tiago Baptista.
Num entendimento entre a autarquia, a Delegação Regional da Cultura do Centro do Ministério da Cultura e a Região de Turismo da Serra da Estrela podia resultar a criação de uma rota de monitorização turística do cinema mudo (e sonoro) na Serra da Estrela, tendo em conta não só o valor histórico e cultural deste filme mas também de outros registos cinematográficos mudos e sonoros depositados na Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema.
O contributo histórico e cultural protagonizado por Rino Lupo e pelo filme, justificam a inclusão do nome do realizador e do título “Os Lobos” na toponímia das localidades do concelho de Seia, associadas à rodagem do filme.
Por fim, deixamos a sugestão para a edição videográfica da obra. A exemplo de outros filmes (embora sonoros), transcritos para vídeo digital a partir das cópias restauradas pela CP-ANIM e com a salvaguarda dos direitos reservados, a edição videográfica do filme “Os Lobos” (versão de reposição de 1924, dado não existirem exemplares da versão de estreia) seria um êxito, devido ao arreigado bairrismo e identidade dos habitantes e comunidade imigrante das localidades eternizadas pela rodagem do filme.
Agradecimentos e Dedicatória
A concretização desta investigação só possível graças à colaboração de vários cidadãos e entidades, a saber: Alberto Monteiro, Anabela Ferraz, Antero Dobreira, António Freitas, António Marques, Avelina Silva Campos, Augusto Lopes, Guida Lami, João Ferreira da Fonseca, José Alberto Ferreira Matias, José Manuel Brito, José Seabra Figueiredo, Luís Dias Costa, Miguel Bandeira, Paula Dobreira, Rui Madeira e à Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema (nas pessoas de Luigi Pintarelli, Joana Ascensão, Piedade Braga Santos, Pedro Mexia, Maria de Jesus Ribeiro, Rui Machado, Sara Moreira e Tiago Baptista).
A investigação agora publicada é dedicada a Andrea Ribas Marques, Cláudio Lupo Simon e Mónica Marques Queiroz, descendentes de Cesare Rino Lupo, assim como a Tiago Baptista, notável investigador e conservador da Cinemateca Portuguesa – Arquivo Nacional das Imagens em Movimento.
Carlos Manuel Dobreira
Aditamento
Porta da Estrela errou
O artigo “O Concelho de Seia na História do Cinema Mudo em Portugal” (PARTE III), publicado na edição de 30 de Junho de 2009, continha gralhas. Assim, onde se lê "e comunidade imigrante" deve ler-se "e comunidade emigrante". As notas de rodapé não apareceram numeradas no final do artigo da edição impressa. Na edição online, as notas de rodapé estão numeradas no final do artigo.
Dada o interesse da investigação, entendemos republicar as notas de rodapé com a numeração respectiva. Por falta de espaço, não foi publicado um registo fotográfico que nos apresenta a Capela de Nossa Senhora da Saúde, em Valezim, pelo que publicamos o mesmo na edição impressa e na edição online de 10 de Julho de 2009.
A redacção do jornal "Porta da Estrela" lamenta o sucedido e pede desculpas ao autor do artigo e aos leitores.
A Redacção
(1) A entrevista foi conduzida por Antero Dobreira, com a colaboração de Augusto Lopes. O tratamento das questões previamente estabelecidas como resultado da observação do filme e do reconhecimento pedonal e fotográfico de locais (12 e 19 de Abril de 2009) foi realizado em Braga, por Carlos Dobreira e com a colaboração de Avelina Silva Campos. Nas respostas de António Marques não se alterou a linguagem popular registada.
(2) Trata-se de cenas do filme em que se vêem as personagens, em plena serra, a produzirem carvão de forma artesanal.
(3) Aproveitamos para alertar para o estado de degradação em que se encontra o brasão da Família Castelo Branco. Seria importante proceder a intervenção qualificada para a sua preservação.
(4) A fotografia apresenta Artur Costa de Macedo, director de fotografia do filme e os actores José Soveral (Ruivo) e Joaquim Almada (Tónio).
(5) Manuel Félix Ribeiro, Filmes, Figuras e Factos da História do Cinema Português, 1896 – 1949, Lisboa, Cinemateca Portuguesa, 1983, p.165.
(6) Esta instituição foi fundada em 6 de Fevereiro de 1927.
(7) A reprodução destas fotografias pode ser realizada para investigadores e instituições, mediante exposição dirigida à CP-MC.
(8) Para além do citado na nota 5, registam-se mais dois livros de referência e que também integram acervo fotográfico pertinente, a saber:
- Tiago Baptista, As Cidades e os Filmes – uma biografia de Rino Lupo, Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema, Lisboa, Abril de 2008;
-Tiago Baptista, A Invenção do Cinema Português, Lisboa, Tinta-da-China, Edições, Outubro de 2008. (Parte I, O Espelho da Nação, p. 13. Neste livro encontramos uma referência ao filme Os Lobos, de Rino Lupo, com destaque para cinco fotografias ampliadas de locais de Valezim nas páginas 28 a 31)
(9) A investigação agora publicada foi dada a conhecer à bisneta de Cesare Rino Lupo.