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A ARTE DO CANTO por Frederico Lourenço

A cantora Joana Silva, admirável pedagoga que foi minha professora de canto na Escola Superior de Música de Lisboa, cruzou-se uma vez com Elisabeth Schwarzkopf num famoso café de Salzburgo.


A arte do canto

A cantora Joana Silva, admirável pedagoga que foi minha professora de canto na Escola Superior de Música de Lisboa, cruzou-se uma vez com Elisabeth Schwarzkopf num famoso café de Salzburgo. Quando a Schwarzkopf saiu, o empregado (dos tais que se tratam por Herr Ober e ainda se lembrava de atender um cliente chamado Richard Strauss) disse à Joana, como se ela não soubesse, “die ist eine grosse Sängerin... gewesen”. Vincando bem o gewesen. Ela foi uma grande cantora: já não é.

A morte de Elisabeth Schwarzkopf a 3 de Agosto leva-me a reflectir sobre se ela foi de facto uma grande cantora. Porque, embora os jornais portugueses que noticiaram a sua morte a tivessem posto ao lado de Maria Callas, está longe de ser consensual que Schwarzkopf foi a “segunda maior cantora do século XX”. Não me refiro agora a juízos subjectivos como os do crítico francês André Tubeuf, nem à irracionalidade que pessoalmente me caracteriza desde os doze anos, que consiste em ver nela a maior artista interpretativa da história da humanidade. A reflexão que me proponho fazer pretende colocar-se em terreno crítico tão frio quanto objectivo. E começo por constatar o seguinte: Schwarzkopf, que é idolatrada por melómanos e críticos que não sabem se ré bemol é uma nota mais aguda ou mais grave que ré sustenido, é muito menos apreciada entre músicos profissionais. Mais: há uma classe de músicos no seio da qual ela é desprezada e muitas vezes vilipendiada, classe essa constituída por cantores e professores de canto.

Sintomaticamente, as páginas de maior elogio que Dietrich Fischer-Dieskau dedica a um cantor na sua autobiografia Nachklang são dirigidas a uma das grandes rivais de Schwarzkopf nos anos 50: Elisabeth Grümmer, que ele designa como legítima herdeira de Lotte Lehmann e cuja voz, bem timbrada de ressonâncias prateadas, ele põe nos píncaros do canto germânico. Em todos os livros que li dele há palavras simpáticas sobre Schwarzkopf: que recebia muito bem os convidados em sua casa, que se esforçou muito por divulgar a obra de Hugo Wolf, que era senhora de considerável gentileza, que era uma mulher bonita, que se dedicou aos bons alunos (aos maus, onde se inclui a sobrevalorizada “leite creme de pacote” Renée Fleming, já se sabe). Nunca há um elogio à voz. No livro sobre Hugo Wolf (que é dedicado a Schwarzkopf!), lá encontramos uma referência solitária à arte da cantora: que lhe ficava bem a canção de Wolf “A mulher do carvoeiro está bêbeda” porque ela conseguia à perfeição o som rude e áspero que era necessário para dar vida à velhota alcoolizada...

Quando eu era aluno de canto, irritava-me o desprezo das minhas colegas pela arte da Schwarzkopf. Diziam que naquelas gravações não havia “canto honesto” (como se encontra nas de Leontyne Price ou Gundula Janowitz), que havia um abuso de “efeitos” e de maneirismos, que a Marechala dela soava a falso (muito melhor seria a de Felicity Lott), que no Lied alemão mais valia ouvir Jessye Norman ou até mesmo Barbara Bonney. Depois os truques: uma cantora que não cantava “Heidenröslein” de Schubert na tonalidade original de sol maior, mas numa transposição mais grave, tinha o desplante de se chamar “soprano”?

A zona crítica da voz de Schwarzkopf foi, na verdade, a zona aguda. Não obstante ter iniciado a sua carreira como soprano ligeiro, com papéis ultra agudos como Zerbinetta e Konstanze, é facto iniludível que a alteração de repertório que se dá a partir de inícios dos anos 50 teve um efeito deletério no registo agudo da cantora. Já Furtwängler a avisou disso em 1954 (como ela relata na sua decepcionante autobiografia, Les autres soirs); em 1958, Karajan disse-lhe em Viena que a sua voz estava a mirrar e que já se instalara a decadência vocal. Em 1959, a cantora tem uma inflamação hemorrágica das cordas vocais que a obriga a cancelar récitas e gravações: os médicos recomendam-lhe o silêncio absoluto e proíbem-na de falar durante pelo menos um mês. Quem conhece bem as gravações da Schwarzkopf sabe perfeitamente que, com respeito a esta crise de saúde, há uma voz antes, e uma voz depois; há uma maneira de cantar nova que surge a partir de 1960, com mais distorção das vogais, com mais “efeitos” e mais artificialismos; os agudos que lhe restam têm um som duro e muitas vezes retintamente feio. Onde é que já iam os dós fabulosos das primeiras gravações, da cantata Jauchzet Gott de Bach ou de Exultate jubilate de Mozart!

Mas é falso afirmar-se que não há “canto honesto” na carreira de Schwarzkopf. Oiça-se a gravação ao vivo dos Mestre Cantores de Nuremberga, em Bayreuth (1951). A beleza da voz, o recorte poético na enunciação de cada palavra, cada cambiante psicológico da personagem, a voz a rir, a voz a chorar, a voz a insinuar, no sublime Quinteto, a presença absoluta de Deus. Nada há que se lhe compare. Ou as duas árias de Tannhäuser e de Der Freischütz, onde Schwarzkopf bate Grümmer no seu próprio terreno. Quanto às transposições dos Lieder: Maria Callas nunca cantou a sua ária emblemática “Casta Diva” na tonalidade original de sol maior, mas sempre transposta para um tom abaixo. E nem mesmo assim conseguiu cantar os agudos afinados! Joan Sutherland, por outro lado, cantou sempre esta ária na tonalidade autêntica e com afinação impecável. Mas quem é que foi a maior Norma de sempre? A resposta nem precisa de ser explicitada. Entre Schwarzkopf a cantar “Das Veilchen” de Mozart numa tonalidade aldrabada e Lucia Popp a cantá-la na tonalidade certa, por mim não tenho a menor dúvida quanto à escolha. Sim: Elisabeth Schwarzkopf foi uma grande, grande cantora.  

Frederico Lourenço
in Revista 6ª | Diário de Notícias
25 de Agosto de 2006

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