"É de Cultura como instrumento para a felicidade, como arma para o civismo, como via para o entendimento dos povos que vos quero falar"

Destaques

Conto de Natal

Da autoria de Guilherme d’Oliveira Martins, é o Conto de Natal que a equipa do CNC partilha com todos, com os votos de um FELIZ NATAL e ótimo ANO NOVO.

UM PRESÉPIO DE FELTRO E ESPÍRITO 

Recordo na minha infância como a leitura era o melhor dos presentes, o que envolvia a magia do livro, da capa, das ilustrações e depois do suculento néctar das palavras, do enredo, dos heróis e da narrativa. Nos tempos mais distantes, tudo se passava na penumbra do nascer do dia. Era na manhã que se revelavam os presentes, junto do presépio e da árvore de Natal. O Menino era o anfitrião. As luzes davam um tom de mistério a esse momento, em que desembrulhávamos o que nos chegava dentro de papéis coloridos e com fitas irrepreensivelmente colocadas. À hora de almoço era a vez de visitar a casa dos avós de Lisboa, sempre com a mesma aura de surpresa e a luminosidade de luzes intermitentes, com um grande presépio de figuras de feltro que constituíam uma verdadeira encenação teatral numa grande mesa, artificiosamente montada – anjos, pastores, lavadeiras, mercadores, Reis Magos, com ouro, incenso e mirra, e os seus camelos, e a cabana a preceito com a Mãe de Deus e S. José, o Menino e os inevitáveis burro e a vaca. Com o tempo essa representação foi sofrendo alterações de marcação, cada vez mais espetacular, para tornar viva essa noite surpreendente que poderia muito bem ser a do Auto Pastoril do Mestre Gil. “Uma pobre casa / toda relozia, /os anjos cantavam, /o mundo dizia: Quem é a desposada? A Virgem sagrada, / quem é a que parira? / A Virgem Maria”. Com o tempo os ecos antigos tornavam-se vivos. Depois, anos passados, a noite passou a ser o momento de encontro, com a Missa do Galo, os cânticos, as orações e a troca de presentes, regressados a casa, à sombra do presépio e antes do chocolate quente, dos sonhos, das azevias e das fatias douradas. E eis que com o tempo os livros se tornaram o ponto forte desse encontro único, saudoso e inesquecível. Álvaro de Campos disse, melhor que ninguém: “No tempo em que festejavam o dia dos meus anos”, e o Natal era a celebração partilhada dos nossos anos, em honra de um Menino único. “Eu era feliz e ninguém estava morto. / Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos, / E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer”. Ah! A lembrança do prazer inominável da leitura e a compreensão desse tempo que foi fazendo o seu trabalho. E assim a renovação da vida foi-se fazendo, com filhos e netos, mesmo sabendo que “Há de vir um Natal e será o primeiro / em que o Nada retome a cor do Infinito”, como continua a dizer-nos David Mourão-Ferreira. E o tal presépio de feltro, com os pastores e os magos, lado a lado, lembra a ligação entre gerações e o domínio absoluto da memória. Conforme os tempos, que agora se somam uns aos outros, a lembrança torna-se uma referência onde as várias personagens se confundem, apesar da nitidez das suas diferenças. Não havia nem há Natal sem livros e sem a leitura da poesia. O que são hoje o livro e a leitura e o que têm a ver com o presépio? Estamos no encontro entre três dimensões da vida e do mundo – o passado, o presente e o futuro. Quem nos antecedeu, avós e pais, todos os amigos continuam a ter voz e a memória viva está sempre naquilo que verdadeiramente continuamos a ser. E vem à lembrança um poema inolvidável de Antero, que se junta, naturalmente, aos cantos daquelas figuras do presépio de feltro que subitamente se animava. “Num sonho todo feito de incerteza / De noturna e indizível ansiedade, / É que eu vi teu olhar de piedade / E (mais que de piedade) de tristeza… / Não era o vulgar brilho da beleza, / Nem o ardor banal da mocidade… / Era outra luz, era outra suavidade / Que até nem sei se as há na natureza…”. Entre mil poemas, outras histórias eram contadas pelos nossos pais, como se a natureza reproduzisse, para as pessoas que somos, os ensinamentos das aves que orientam os filhos para se libertarem do aconchego dos ninhos para poderem voar livremente.

Comecei a ler pela voz do pai ou da mãe, depois dos meus mestres, e hoje ainda muitos textos antigos a que regresso têm esse tom irrepreensível das palavras bem silabadas e das orações bem claras e distintas como nas “Histórias Maravilhosas” de Selma Lagerlöf. “Aconteceu isto na época em que era Augusto imperador de Roma e Herodes rei da Judeia. Foi nesse tempo que a grande noite, a noite santa desceu sobre a Terra”. A partir daí tudo era possível, do mesmo modo que no “Coração” de Edmundo de Amicis: “É hoje o primeiro dia de escola. Passaram como um sonho aqueles três meses de férias de campo! Minha mãe foi comigo essa manhã à Secretaria, para me inscrever na terceira classe”. E tudo era verosímil. E havia ainda os contos mensais que intercalavam os relatos diários do quotidiano de há quase dois séculos… E lembramos “O Pequeno escrevente florentino”, a ajudar o pai às escondidas, roubando sono ao estudo, ou “O Tamborzinho”, que ultrapassou todos os perigos até ao sacrifício, recebendo o reconhecimento dos heróis. Esses atos exemplares tocavam-nos sentidamente, por uma leitura que nos levava até às nuvens. Inesgotáveis temas. E o presente não é senão uma encruzilhada de vários momentos, e o futuro é a grande espera, que a adoração dos pastores representava. Afinal, o livro é sempre o grande protagonista de qualquer conto porque é o ponto de encontro de todos os tempos. Conhecemos melhor os mensageiros que continuam a dar-nos as suas reflexões, mesmo que tenham vivido há milhares de anos, do que alguém que encontramos fugazmente num passeio acidental. Tudo o que fica dito faz parte de um estranho episódio passado nesses tempos já distantes. O Natal favorece as relações misteriosas de uma estrela ou de um cometa que orienta para Belém um conjunto de eleitos que puderam presenciar o nascimento de um Menino que veio para indicar um caminho de Verdade e Vida. Diz a tradição que seus pais encontraram as maiores dificuldades para terem um acolhimento condigno quando a Mãe estava prestes a dar um novo ser ao mundo. José vinha a Belém por ser da descendência de David, para se recensear com os seus. Poderemos imaginar esse difícil contexto, mas o espírito criador construiu uma história coerente e maravilhosa – porque é pela imaginação que poderemos chegar à compreensão de um humanismo genuíno.

E, entre todas estas lembranças, posso dizer que um dia, entre sonhos, foi possível ver, para além dos tempos, os protagonistas daquele presépio de feltro tornarem-se pessoas de carne e osso, representando um verdadeiro Auto Pastoril Português, dando expressão à ideia de S. Francisco de Assis em Greccio no ano de 1223. Por um momento, todas aquelas figuras ganharam expressão humana. E o que significava esse encontro? A compreensão de que a sabedoria antiga e que a sua leitura, ao longo dos séculos, representa a descoberta da humanidade em demanda da dignidade de todos. E vem a explicação do porquê de não haver Natal sem livros e sem a leitura da poesia. A essência das coisas está nesse encontro do presépio porque o livro e a leitura representam o encontro entre três dimensões da vida e do mundo – o passado, o presente e o futuro, de todos os que nos antecederam e continuam a iluminar os nossos dias. De todos os que partilham connosco a vida do dia a dia. De todos os que não desistem de cuidar da criação e do espírito. E quando os protagonistas do presépio de feltro se tornaram pessoas, realizou-se a metáfora fundamental que nos permite dizer que sempre precisamos da memória e que a primeira das bem-aventuranças é a do espírito aberto aos outros, generosamente disponível para compreender como somos diferentes, mas essencialmente livres e iguais.

Guilherme d’Oliveira Martins

Agenda
Ver mais eventos
Visitas
100,425,003