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XXIII. Almada Negreiros: A Força da criação

A expressão “português sem mestre” caracteriza o artista completo que procurou abrir caminhos novos – “chegar a cada instante pela primeira vez” – com originalidade e um sentido próprio de praticar diferentes artes com subtil mestria.

É fundamental sermos capazes de nos vermos projetados no espelho da crítica e a poesia encarrega-se de perscrutar diversos caminhos. Mais do que encontrar soluções, que não cabem à arte, trata-se de iluminar e de ajudar a ver. Impõe-se, porém, cuidar do entendimento dos símbolos, o que obriga à consideração, segundo Pessoa, da simpatia, da intuição, da inteligência, da compreensão e do conhecimento transcendente. Tem o intérprete de sentir simpatia pelo símbolo. Tem de ser capaz de ver o que está para além dele. E Almada Negreiros? Eduardo Lourenço fala dele como o “único autêntico modernista em sentido estrito de sintonizado com o vanguardismo (ou sucessivos vanguardismos) da época”, enquanto em Fernando Pessoa, salienta, em vez do delírio, a “consciência das insolúveis contradições do mundo moderno e da mesma modernidade, porventura até, rejeição do seu próprio espírito”. Se virmos o percurso de Almada Negreiros compreendemos que o gosto absoluto da novidade o leva a crer, menos na lógica dos sistemas, e mais na força da criação. “Os sistemas e os programas servem para conduzir e jamais para criar”. “A Arte não pode viver antes de criar a sua própria autoridade de autonomia dentro da coletividade”. Dêem-se dois exemplos: o dos painéis da Gare da Rocha do Conde de Óbidos (1945-48) e o da obra “Começar” na Fundação Calouste Gulbenkian (1968-69). São duas abordagens diferentes, que representam facetas complementares da mesma atitude. José-Augusto França fez a síntese adequada: “Almada situa-se na história da arte portuguesa contemporânea como uma figura única, no seu valor estético tanto quanto no valor referencial da sua mensagem poética”. A expressão “português sem mestre” caracteriza o artista completo que procurou abrir caminhos novos – “chegar a cada instante pela primeira vez” – com originalidade e um sentido próprio de praticar diferentes artes com subtil mestria.

A ditadura militar de 1926 impôs um nacionalismo autocrático, que viria a ser marcado pela influência decisiva do Ministro das Finanças Oliveira Salazar, que se tornaria Presidente do Conselho em 1932, como figura marcante do novo regime, fazendo aprovar a Constituição de 1933, por plebiscito em que as abstenções foram consideradas como votos a favor, base do chamado “Estado Novo”. Aí um quadro de direitos formais, no célebre artigo 8º, previa exceções na sua aplicação que lhes retirava qualquer sentido real. Apesar da Primeira República ter conseguido iniciar o saneamento das Finanças Públicas, foi Salazar quem fez aprovar um novo quadro disciplinador em 1929, apresentando equilíbrio orçamental, como fizera Afonso Costa no início da Primeira República. O protecionismo, o apoio ao nacionalismo de Franco em Espanha (1936-39), a neutralidade colaborante durante a Segunda Grande Guerra, o regime policial, o acolhimento de muitos refugiados – coexistiram com a chamada “Política do Espírito”, coordenada pelo Secretário da Propaganda Nacional António Ferro, antigo secretário da redação de “Orpheu”, jornalista e escritor, com ligações aos meios intelectuais modernistas. A “Exposição do Mundo Português” (1940) procurou reunir os principais artistas do momento, mas foi prejudicada nas suas repercussões, pelo início da Grande Guerra. Pode dizer-se que até ao final da Guerra (1945) houve uma convergência entre a política de António Ferro e do Ministro das Obras Públicas Duarte Pacheco, um antigo republicano, falecido prematuramente em 1943, que permitiu a estabilidade essencial do salazarismo. A vitória dos Aliados e as expectativas do país relativamente a uma europeização e abertura do regime, com eleições livres, fez evoluir o estado de coisas. Os jovens artistas e intelectuais afirmaram-se crescentemente críticos e partidários da democratização. Mesmo no seio do regime surge uma corrente modernizadora que defende mudanças estruturais, pela eletrificação, com o apoio técnico do Plano Marshall, e por uma tímida industrialização (“Linha de Rumo” do Engº Ferreira Dias) e pela alfabetização. Em 1958 a candidatura presidencial do General Humberto Delgado, antigo alto dirigente do Estado Novo, contra Salazar, bem como a afirmação crítica da Igreja Católica, através do Bispo do Porto, abrem o início do ocaso do regime. Entretanto, a Fundação Gulbenkian, como instituição totalmente privada, torna-se influente, no apoio às artes, à educação, à ciência e a beneficência (1956). Abre-se gradualmente a economia e começa o fim do protecionismo nacionalista, do condicionamento industrial e da lógica autárcica, com a adesão de Portugal com o Reino Unido à Associação Europeia do Comércio Livre (EFTA), antecâmara do projeto europeu (1959). Em 1961, o começo da Guerra Colonial acelera o enfraquecimento de Salazar. Este será substituído em 1968 por Marcelo Caetano, cuja abertura tímida não tem eficácia e apenas acelera a preparação do Movimento das Forças Armadas de 25 de abril de 1974. A chamada Ala Liberal de Francisco Sá Carneiro e de João Pedro Miller Guerra, mas também de José Pedro Pinto Leite, prematuramente desaparecido numa missão parlamentar na Guiné-Bissau, prepara a mudança do regime, esbarrando com o imobilismo essencial do Presidente do Conselho, incapaz de encontrar solução para a guerra colonial e uma resposta política para a mesma. O contexto internacional pressiona o regime e as Forças Armadas manifestam necessidade de uma evolução no sentido da democratização e da descolonização. Novos horizontes da cultura contribuem decisivamente para essa mudança, que Samuel Huntington considerará como o início da Terceira Vaga das Democracias.

Agostinho de Morais

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