"É de Cultura como instrumento para a felicidade, como arma para o civismo, como via para o entendimento dos povos que vos quero falar"

Cada Terra com seu Uso

VII. A atração do mar

A expansão marítima europeia, que teve como precursores os portugueses, é de significativa complexidade, não sendo compatível com simplificações.

A costa marítima atlântica de Portugal, o conhecimento antigo de África e do Mediterrâneo Ocidental, a longa prática dos pescadores algarvios nas relações económicas com Marrocos, as necessidades económicas determinadas pela carência de meios (cereais e ouro) – vão conduzir à conquista de Ceuta e às viagens para sul na costa africana. A obtenção de ouro, primeiro, mercê de trocas com os tuaregues e depois através da descoberta de jazidas conhecidas das tribos do deserto, permitiu a cunhagem de cruzados, de uma grande pureza e geral aceitação, com grande estabilidade no respetivo valor. Depois de 1442, verifica-se o desenvolvimento do comércio de escravos, no início por capturas diretas e depois através da mediação dos povos africanos. Nascem as feitorias, de que um primeiro exemplo é Arguim, onde os portugueses trocavam cavalos, tecidos, objetos de cobre e trigo por pó de ouro, escravos e marfim. E com a chegada destes bens a Portugal as expedições da África ocidental tornam-se lucrativas, nunca os portugueses descobriram, porém, as minas de onde vinha o ouro nem conseguiram estabelecer feitorias no interior. «Mas (segundo Charles Boxer) a luta das caravelas portuguesas contra as caravanas mouras de camelos do Sara teve como resultado a predominância das primeiras no comércio do ouro, por um período de 100 anos, de 1450 a 1550». Só de S. Jorge da Mina (depois de 1452) registar-se-iam importações anuais de 170 mil dobras e às vezes mais. «Se bem que os principais produtos que os portugueses procuravam na Senegâmbia e na Guiné continuassem a ser os escravos e o ouro, outros produtos oeste-africanos, como a malagueta ou grão-do-paraíso, uma especiaria parecida com a pimenta, além de macacos e papagaios, encontravam, também, um mercado lucrativo em Portugal». As mercadorias que permitiam a compra de escravos e ouro vinham do estrangeiro. A malagueta ia para a Flandres e os escravos para Espanha e Itália, antes da descoberta das Américas.

Infantes D. Henrique e D. Pedro: complementaridade ou oposição?

Como compreender, na Ínclita Geração, o Infante D. Henrique, se não o ligarmos à figura moral de D. Duarte, o Leal Conselheiro, e à fulgurante inteligência estratégica de D. Pedro, “o português universal”? Contudo, essa complementaridade, que permitiu a afirmação de Portugal na Europa e no mundo não foi isenta de dramáticos ajustes de contas, como o trágico episódio da Batalha de Alfarrobeira (20.5.1449)?… Alfarrobeira foi resultado de uma intriga palaciana, envolvendo o Duque de Bragança, D. Afonso, filho bastardo de D. João I. D. Afonso V escreveu ao referido Duque, seu tio, requisitando-o à corte, acompanhado de escolta uma vez que teria de atravessar terras de Coimbra. D. Pedro, Duque de Coimbra, sabedor da vinda do seu inimigo, proíbe-lhe a passagem por suas terras e é considerado súbdito desleal ao rei. Publicam-se éditos contra o D, Pedro e seus aliados e o rei investe na tentativa de submetê-los, instalando-se em Santarém. Por sua vez D. Pedro desce de Coimbra em direção a Lisboa e encontra as tropas de D. Afonso V no lugar de Alfarrobeira, em Vialonga. Apesar das tentativas do Infante D. Henrique para evitar a contenda, bem como do Conde de Avranches, D. Álvaro Vaz de Almada, a batalha tem lugar, vencendo o rei e perdendo a vida D. Pedro, e o Conde de Avranches, o qual perante a derrota deu o célebre grito: “É fartar vilanagem”…

A ideia fundamental do Infante D. Pedro das Sete Partidas era a de termos de ser europeus, de estar no núcleo mais dinâmico do continente, de ligar quem ficava e quem partia, para melhor projetarmos a influência económica e política, sendo a lição essencial da nossa cultura a capacidade de prever, de planear e de persistir. Esse projeto transformaria profundamente a sociedade portuguesa e as relações de poder. Contudo, a estratégia continental resistia, por contraponto à vocação marítima.

A visão ecuménica de D. João II: o Plano da Índia e Tratado de Tordesilhas

Depois da derrota de D. Afonso V nas suas pretensões ao trono de Castela, ?i?nicia-se um novo período histórico, no qual irá pontuar D. João II, neto por via materna do Infante D. Pedro. O comércio africano era partilhado entre a coroa e os mercadores, com o controlo apertado da Casa da Mina, situada no edifício do Paço da Ribeira – cabendo à Coroa o monopólio do ouro. As receitas do comércio do ouro e dos escravos permitiram a D. João II avançar para o Golfo Arábico e Índia – para as especiarias asiáticas. Bartolomeu Dias dobra o Cabo da Boa Esperança (1488) e Pero da Covilhã e Afonso de Paiva são enviados por terra em busca do Reino do Preste João e para conhecerem a Índia. Pero da Covilhã sobrevive e, ao regressar ao reino, é solicitado por um mensageiro de D. João II, na cidade do Cairo, para «continuar até ao reino do Preste João, que tinha sido então localizado nas montanhas da Abissínia». O relatório que teria enviado para Lisboa não se sabe se chegou ao destino. Vasco da Gama saberia que tinha de aportar no sudoeste da Índia, mas tinha informação insuficiente e foi incapaz de distinguir os templos hindus das igrejas cristãs… O certo é que a política de D. João II levaria ao fim do monopólio veneziano-mameluco das especiarias no oriente do Mediterrâneo. Em 1485, o discurso de obediência proferido por Vasco Fernandes de Lucena perante o Papa aponta claramente para a concretização da chegada dos portugueses ao Oceano Índico. Quando D. Manuel herdou a coroa de seu cunhado, seguiu claramente a estratégia do Príncipe Perfeito. E Vasco da Gama «levava credenciais dirigidas ao Preste João e ao rajá de Calecute, juntamente com amostras de especiarias, ouro e aljôfar… A partida para a Índia ocorreu nove anos depois de Bartolomeu Dias ter regressado do Cabo. Entretanto Colombo tinha regressado da sua «histórica viagem», pensando ter chegado à Ásia Oriental. Por que razão tanto tempo depois da chegada ao Cabo da Boa Esperança? As explicações são contraditórias – os novos acontecimentos em Marrocos, a morte de D. Afonso, o herdeiro de D. João II; ou a doença do Rei. Mas há quem pense que houve, entretanto, viagens no Atlântico Sul para encontrar a melhor rota para o Índico e que teriam permitido não só favorecer as navegações com segurança, mas também encontrar o importante território brasileiro.

A figura de D. João II, o Príncipe Perfeito (1455-1495) continua envolta em dúvida e mistério. Filho de D. Afonso V, e irmão de Santa Joana Princesa, a verdade é que a sua personalidade e a sua política demarcaram-se das de seu pai, apesar da nítida complementaridade. Se é certo que foi desde muito cedo associado à governação do reino, a ponto de ter a direção das “navegações” desde 1475, seis antes de subir ao trono, não podemos esquecer que a sua ação se inseriu na continuidade do plano concebido pelos filhos de D. João I, o seu avô paterno D. Duarte, o seu avô materno D. Pedro e, naturalmente, o tio-avô D. Henrique. E se encontramos formulada uma “estratégia nacional”, tal fica claro se nos recordarmos: da política de segredo, como modo de defesa de uma ampla zona de influência perante a ameaça do concorrente mais próximo; da definição de um “modus vivendi” na Península Ibérica que garantisse à entrada do Mediterrâneo uma base económica e política sólida no continente europeu para o “plano da Índia”; e a afirmação de um poder político forte, centrado na Coroa, sem a “perturbação” das influências da alta nobreza e do alto clero.

Como reparação relativamente à derrota do Infante D. Pedro em Alfarrobeira, D. João II define a exigência de um “poder europeu” ligado à ideia de um “império universal”. De facto, como aconteceu, Portugal sozinho teria dificuldade em ser cabeça de um império global. Daí a necessidade de uma aliança ibérica, com salvaguarda da prevalência marítima. Naturalmente, que a análise deste tema complexo conduz invariavelmente ao risco de transposições abusivas. Impõe-se, por isso, ter presente a reflexão da historiografia dos últimos dois séculos a este propósito, designadamente quanto às “causas da decadência dos povos peninsulares” (de Antero e de Oliveira Martins) ou quanto à alternância entre “fixação” e “transporte” (que António Sérgio foi beber na Geração de 1870 e aos sequazes desta). E essa explicação considera ser D. João II o paradigma da “fixação” e herdeiro do “europeísmo universalista” de D. Pedro. Deve haver, porém, cautelas nas transposições, apesar de ser insofismável que a “política” de D. Manuel, se trouxe a pompa e circunstância do nosso “século de ouro”, veio a prenunciar a incapacidade do “Estado” para administrar um império de dimensão mundial, bem como a falta de uma base financeira e económica (agravada pela expulsão dos judeus e da sua “partida” sobretudo para o Mar do Norte) e a influência crescente dos “fumos da Índia”, com todas as suas consequências morais e sociais.

O caminho da centralização, aprendido por D. João II na escola italiana de Direito Público e na prática francesa de Luís XI, baseou-se na ideia da proveniência divina do poder, aliada ao necessário “consentimento do povo” – como o Infante D. Pedro defendera na “Virtuosa Benfeitoria”. Daí a necessidade de limitar o poder da nobreza e do alto clero e de assegurar uma ligação efetiva aos povos, representados nos municípios. O rei seria, assim, um defensor dos povos, devendo, para o efeito, reforçar a sua própria autoridade. Daí o lema “Pola Ley e Pola Grey”, sob a imagem de um pelicano que, ferindo o peito, assegurava o sustento das crias no ninho. Eis por que razão não se deve falar de conceção “absolutista” com D. João II, mas de um entendimento mais próximo da ideia de “proteção”, com raízes na tradição que vinha dos acontecimentos de 1383. Esse o contraponto em relação aos inimigos que tinham conduzido o pai à derrota em “Alfarrobeira” – apostando na fragmentação do poder, no enfraquecimento da Coroa e no enriquecimento de uns poucos à custa do Erário Régio.

D. João II não esqueceu, contudo, a trágica morte de seu avô e a consequência que esta teve na aceleração do prematuro desaparecimento de sua mãe. Só um poder eficaz e forte seria respeitado, nacional e internacionalmente. Para o Príncipe Perfeito importaria, assim, delinear e prosseguir o plano das navegações da Índia, a partir de uma posição consolidada. Daí as mil cautelas, a diplomacia secreta e o combate a todas as subtis formas de erosão do Estado e do poder. Como numa partida simultânea de xadrez, vemos o monarca lançar diversas vias de ação: retomar sistematicamente as viagens na costa africana, que desde a morte do Infante (1460) tinham perdido ímpeto, mandar missões por terra em busca do Preste João e a preparar a chegada à Índia (Afonso de Paiva e Pêro da Covilhã), desenvolver uma complexa ação diplomática quer com a Santa Sé quer com os Reis Católicos. Paralelamente, haveria que reorganizar a Administração do Reino, profundamente desorganizada. Assim, o final da década de oitenta do século XV representa o culminar da “afirmação” de D. João II, no dizer da Prof. Manuela Mendonça (autora da obra fundamental D. João II, um percurso humano e político nas origens da modernidade em Portugal, Estampa, 1991). Estamos diante do corolário lógico de uma ação de grande clarividência – desde a reorganização do reino até ao casamento do príncipe herdeiro D. Afonso com a filha dos Reis Católicos, D. Isabel, passando pela afirmação internacional, pelas navegações no Atlântico Sul (em que Diogo Cão, Duarte Pacheco Pereira e Bartolomeu Dias desempenharam papel essencial).

O célebre discurso de Vasco Fernandes de Lucena em Roma por ocasião da entronização do novo Papa Inocêncio VIII e o cerimonial de investidura do Marquês de Vila Real, D. Pedro de Menezes, em Beja, em março de 1489, bem como os esponsais do malogrado príncipe D. Afonso constituíram simbolicamente os momentos cruciais de afirmação da grandeza de D. João II como grande monarca europeu (leia-se por todos Martim de Albuquerque, O Poder Político no Renascimento Português, s.d.). Mas para chegar onde chegou, D. João teve de afirmar o seu génio económico e político. Foi graças às receitas obtidas no comércio da Guiné que pôde estabelecer definitivamente em bases científicas a solução do problema da descoberta do caminho por mar até à Índia. No dizer de Jaime Cortesão: “sob a direção real, uma nova ciência náutica é criada, que dominará os séculos XVI e XVII, sendo ensinada secretamente aos pilotos portugueses. Com este fim, o rei enviou às terras descobertas, em expedições sucessivas, os melhores astrónomos e técnicos encarregados de ensaiar os novos métodos como os novos instrumentos e de calcular as posições geográficas destas regiões e a grandeza do grande círculo terrestre, que conseguiram determinar com uma notável exatidão” (L’Expansion des Portugais dans l’histoire de la civilisation, Anvers, 1930).

A morte trágica do Príncipe D. Afonso (1475-1491) em Almeirim, por queda de cavalo, deitou por terra todos os sonhos e projetos. Os reinos ibéricos não chegariam à glória abraçados, como D. João teria pensado… A decadência seria compartilhada, dramaticamente. Haveria a demonstração de que Colombo não tinha a chave da chegada à Índia (mas de um Novo Mundo), e de que era D. João II quem estava na vanguarda da organização e da ciência. E haveria Tordesilhas e o misterioso volte face final, com Portugal a reivindicar uma zona que só o próprio Príncipe Perfeito conhecia…

Falando do Tratado de Tordesilhas, de 7 de junho de 1494, este estabeleceu a divisão das áreas de influência dos países ibéricos, cabendo a Portugal as terras “descobertas e por descobrir” situadas antes da linha imaginária que demarcava 370 léguas (1770 km) a oeste das ilhas de Cabo Verde (Santo Antão) e a Castela as terras que ficassem além dessa linha. O diplomata Duarte Pacheco Pereira, que conheceria as terras do Brasil, fez com que essa linha avançasse de modo a abranger um espaço maior no território americano do que previsto inicialmente. Bartolomeu de Las Casas dirá: os portugueses tiveram “mais perícia e mais experiência” do que os castelhanos.

Dir-se-á que D, João II foi um monarca duro e implacável. As mortes dos Duques de Bragança e de Viseu (seu cunhado) ilustram esse carácter. No entanto, sabemos que houve uma conspiração contra o Rei, para ir às últimas consequências (“por ferro ou por peçonha”). Mas se falarmos do prestígio do Príncipe Perfeito, basta lembrarmos como Isabel, a Católica o designou quando soube de sua morte: – o Homem! Haveria sempre tempo de coruja e tempo de falcão. D. João soube-o bem, ao morrer como coruja no Alvor, envolto em enigma, depois de ter sido falcão…

Agostinho de Morais

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