"É de Cultura como instrumento para a felicidade, como arma para o civismo, como via para o entendimento dos povos que vos quero falar"

Cada Terra com seu Uso

VI. A importância da crise de 1383-85. Fernão Lopes

A vida de Fernão Lopes é um mistério. Por ironia do destino, o homem através de quem conhecemos a Crónica de D. João I e a história da Ínclita Geração, é-nos quase desconhecido como pessoa.

Não sabemos quando nasceu, mas presumimos que tal tenha acontecido nos anos da crise. “Fernão Lopes pertencia à primeira geração de depois dos combatentes de Lisboa em 1383 e dos da batalha de Aljubarrota, isto é, a geração dos filhos de D. João I” – diz-nos António José Saraiva (Cf. O Crepúsculo da Idade Média, Gradiva, 1988). A sua origem era plebeia, e esse facto explica, por certo, a extraordinária atenção que reserva na sua escrita à “arraia miúda”. O seu nome aparece-nos pela primeira vez apenas em 1418, como guarda-mor das escrituras da Torre do Castelo de Lisboa. Um ano depois, é escrivão dos livros de D. João I e em 1422 exerce o cargo de escrivão da puridade do Infante D. Fernando, sendo depois nomeado tabelião geral do reino. E D. Duarte, de quem era muito próximo, atribui-lhe uma tença anual vitalícia em 1434 para escrever as crónicas da história geral do reino, até D. João I. Como cronista-mor vai exercer funções, com zelo e competência, até 1454, altura em que, por estar “mui velho e flaco”, é aposentado. Gomes Eanes de Zurara é já quem escreve a versão final da terceira parte da Crónica de D. João I, relativa à tomada de Ceuta (cuja primeira versão Damião de Góis atribui ao próprio Fernão Lopes). Estando ainda vivo, e com avançada idade, em 1459, julga-se que morreu cerca do ano de 1460.

Estamos diante de uma das primeiras grandes referências da língua portuguesa. Com ele, e com a sua escrita fluida e atraente, presenciamos uma sucessão de acontecimentos que anunciam um novo tempo, muito diferente da Idade Média. É ao “crepúsculo” desse tempo antigo que assistimos, na sequência de um rumo modernizador preparado na passagem do século XIII para o século XIV no período de D. Dinis. Um dos temas novos, de importância maior, que trata é o da legitimidade política, que deixa de ser fundada no património e no senhorio, para passar a ser ditada pelas gentes e pelo “poboo”. Desde que se fixara a fronteira do reino e que a língua comum se tornara língua oficial dos tabeliães foram abertos os caminhos do “direito de naturalidade”, por contraponto ao “direito senhorial”, como salienta António José Saraiva. E se houve divisões drásticas na sociedade portuguesa, com a alta nobreza e o alto clero a sustentarem o conceito antigo, dito “legitimista”, e se a burguesia das cidades a ansiava por outro entendimento, mais ligado aos povos, o certo é que a matriz legitimadora do reino (o Estado que precedeu a nação) atribuía uma forte importância aos municípios, aliados naturais de um poder real que, pelo menos desde Afonso III, se consolidou a partir desse “contrato político”. O “direito de naturalidade” representava o anúncio de uma nova conceção. E Fernão Lopes desenvolve na “Crónica de D. João I” a cada passo, esse entendimento, quer na narração que faz, quer nas reflexões que connosco partilha. Fala, pela primeira vez, de “verdadeiros portugueses”, mas também de “cidadãos honrados”, de “amor da terra”, do grito “Portugal” da gente “miúda” e até de “evangelho português”, ligando a fidelidade ao Papa de Roma à defesa do reino, que compara à causa do conde D. Henrique, em pleno espírito de cruzada, com forte conotação religiosa. Tudo por contraponto aos “portugueses desnaturados”. E esse novo entendimento leva-o a conceber a historiografia como uma procura de factos verídicos, fiéis à realidade, em nome de uma causa. Lembremo-nos dos relatos do Cerco de Lisboa e da batalha de Aljubarrota. Os acontecimentos são minuciosamente descritos, entre angústias e esperanças, numa cadeia de factos de vai culminar no sucesso da causa do Mestre. Há, assim, grande cópia de documentos que o cronista reproduz e estuda. Afinal, o novo conceito de legitimidade obriga ao respeito por parte de quem deposita a sua confiança nos titulares do novo poder. Mas o rigor documental não é confundível com objetividade do historiador… No caso vertente o respeito pelos factos decorre da necessidade de demonstrar com muita clareza a legitimidade da causa do Mestre.

Nesta linha de pensamento, Fernão Lopes torna-se um cicerone precioso porque, abraçando a causa do Mestre, reúne os elementos fundamentais para justificar uma “justa aclamação”. O relato das Cortes de Coimbra é magistral. O cronista dá-nos, com minúcia, as provas da argumentação jurídica de João das Regras. Aí estão a incerteza sobre a paternidade de D. Beatriz, a situação matrimonial irregular de D. Leonor Teles, o apoio cismático de D. João de Castela ao Papa de Avinhão, a demonstração clara da ilegitimidade (e da indignidade) de D. João (de Castro), filho de D. Inês de Castro… A argumentação jurídica alia-se aos sinais da Providência, protagonizados pelo jovem Condestável D. Nuno Álvares Pereira, chefe militar da linhagem de Galaaz, o cavaleiro de Camelot, companheiro do Rei Artur, do ciclo bretão. Álvaro Pais, o rico cidadão de Lisboa, lança o movimento. Mas Fernão Lopes, a partir deste impulso, fixa-se na “arraia-miúda” como verdadeiro artífice do golpe de Estado. As hesitações e até a descrição da personalidade contraditória de D. João, Mestre de Avis, demonstram com meridiana clareza que houve um impulso inexorável, vindo do movimento popular, que foi mobilizador de mesteirais, mercadores e lavradores.

Se o Mestre começa por ser quem está em posição mais frágil na linha sucessória, sem mesmo desejar ser rei, como várias vezes diz, preferindo a legitimidade de seu meio irmão D. João de Castro, o certo é que os acontecimentos (com especial influência de Álvaro Pais) irão colocá-lo no centro da pugna e à frente dos destinos do reino. Em Coimbra, o legista João das Regras, depois de declarar o trono vago, demonstra que a nova legitimidade é a dos povos, cabendo ao Mestre de Avis ser o novo Rei. O movimento popular opunha-se à aristocracia fidalga, na linha da consolidação da monarquia fundada por Henrique de Borgonha e por seu filho Afonso Henriques. E como é facilmente compreensível a conceção do “direito de naturalidade” reforçou o peso e a importância dos povos dos concelhos, segundo o que Jaime Cortesão designaria como “os fatores democráticos na formação de Portugal”. Estamos, assim, perante uma revolução das “cidades” e de “vilãos”, logo desde os acontecimentos de Lisboa, em dezembro de 1383, com a morte do conde de Andeiro, mas também em Beja, em Évora, no Porto. As vilas combatem os castelos, a legitimidade nova destrona a legitimidade senhorial.

Se o cronista apresenta uma nova conceção social e política, fá-lo com o recurso originalíssimo à narrativa, demonstrando “o estofo de um dramaturgo poderoso” (A. J. Saraiva) e afirmando-se como um exímio “contador da História” (Teresa Amado). Na “Crónica de D. João I” sente-se a “epopeia”, a partir da “gente pequena dos lugares” e, sobretudo, de um novo poder que se instala, com um projeto coletivo, que dá continuidade ao que vinha sendo preparado, mas que lança novas bases para a ação, que não se limita a refrescar a legitimidade do reino, agora assente nos “verdadeiros portugueses” e nos “cidadãos honrados”, que o tempo seguinte irá confirmar. “Oh geração que depois veio, povo bem-aventurado, que não soube parte de tantos males nem foi quinhoeiro de tais sofrimentos”.

Identidade Nacional: Estado, Nação, Pátria

É importante que o tema da “identidade nacional” não se torne um tabu indesejado, já que nenhuma engenharia institucional, por mais perfeita que seja, poderá substituir os elos ancestrais que ligam os cidadãos às comunidades com raízes multisseculares. Daí que tenhamos de diferenciar, como fizeram Alexandre Herculano e Oliveira Martins, as noções de pátria, Estado e nação. São conceitos distintos. E num país em que o Estado precedeu a nação, e em que aquele formou esta, mesmo que devamos considerar as condições complexas que animaram esse processo, é fundamental que se não pense que tudo se pode confundir quando se fala das raízes ancestrais. A história dos povos ensina-nos que a desvalorização ou a incompreensão da diversidade cultural e da fecundidade da dimensão nacional gera uma sobrevalorização doentia do fenómeno, num processo semelhante ao que assistimos nas religiões, em que os relativismos alimentam os fundamentalismos. Depois do providencialismo, prevaleceu a “tese voluntarista” de Alexandre Herculano, segundo a qual Portugal se constituiu como nação moderna “sem ter em conta o mapa político anterior, em rutura com o passado”.

De acordo com a mentalidade individualista e liberal, o que emergiu no século XII foi o querer político da nobreza portucalense. Adolfo Coelho suscitou objeções a esse entendimento (centrado no puro ato de vontade) invocando as teses linguística e etnológica (designadamente a partir da relevância da toponímia pré-romana), bem como os testemunhos da Antiguidade sobre a especificidade do ocidente peninsular. Oliveira Martins, apesar de seguir o mestre Alexandre Herculano, demarcou-se de algum modo dele, sugerindo que a individualidade do ocidente peninsular provinha “de uma maior componente de sangue céltico, misturado com o sangue ibérico”, havendo, pois, uma multiplicidade de fatores influentes no “impulso nacional”, desde o separatismo dos barões de Entre-Douro-e-Minho às condições favoráveis para a definição do “destino marítimo nacional”. No entanto, o fundamental é a explicação através da nação-consciência, que se afirma por um ideal próprio e pelo querer ser independente. Teófilo Braga invocaria a diferenciação étnica – mas oscilaria entre as circunstâncias casuais e o determinismo étnico… Portugal é resultado da vontade e do mar, com referências à especificidade da população – construindo-se de Norte para Sul e de Sul para Norte, notando-se a prevalência galaico-portuguesa no primeiro vetor e a influência luso-árabe no segundo.

José Leite de Vasconcelos, com muitas cautelas, procurou descobrir um nexo de causalidade entre os povos pré-romanos (maxime os lusitanos) e a criação de Portugal, invocando a seu favor os estudos de Carlos Ribeiro, Martins Sarmento, Alberto Sampaio e Estácio da Veiga, que dariam os indícios e os sinais que desmentiriam a ideia de Portugal apenas como nação moderna. Houve ainda quem se centrasse sobretudo na ideia de “homogeneidade étnica” (António Sardinha, Ricardo Severo e Mendes Correia). Mas Jaime Cortesão falou de um processo de longo prazo – a partir dos “fatores democráticos”, que teriam na crise de 1383-85 um momento de “maioridade política” e de “plena expressão nacional”. A diferenciação social e linguística do ocidente peninsular seria anterior ao século XII, invocando Cortesão o “carácter cosmopolita, ecuménico e universalista” da história nacional, do mesmo modo que as grandes transformações sociais europeias dos séculos XI a XIV teriam exercido especial influência. Já António Sérgio demarcou-se das explicações do nacionalismo tradicionalista, preferindo a ideia de uma obra condicionada de fora pelo “estrangeirismo” (cruzadas, ordens religiosas, judeus e árabes) e “produto das aspirações do viver europeu” em resultado do desenvolvimento das economias urbanas no norte da Europa. E os portugueses teriam maior dose de cosmopolitismo do que os outros povos peninsulares. Só seria “profundamente português o que fosse como tal um cidadão do mundo”.

Orlando Ribeiro refere a diversidade regional portuguesa, demarcando-se do determinismo étnico e buscando as raízes do Estado e da Nação, num tempo anterior ao do nascimento do novo reino. José Mattoso fala de uma “identidade construída” a partir do Estado, só tardiamente generalizada ao “homem comum”, enquanto Joaquim de Carvalho fala da Pátria e o “patriotismo” como “nexo que liga a consciência do indivíduo à totalidade dos seus compatriotas”, com “elementos afetivos” como “componentes primaciais”, de “escasso e ténue conteúdo intelectual”. Se virmos bem a oscilação entre um naturalismo étnico equívoco, aproveitado por conservadores e jacobinos, e um voluntarismo, usado por otimistas e pessimistas, deve-se à coexistência de fatores de “homogeneidade” humana (mercê da história, da mobilidade interna e do centralismo) e de “diversidade” geográfica (entre o Atlântico e o Mediterrâneo). No fundo, há fatores diversos e complexos, evidentes no século XIX, quando “o sistema liberal se implantou numa sociedade maioritariamente tradicional e rural, dominada por uma mentalidade aristocrática” (no dizer de Sérgio Campos Matos).

A identidade construiu-se, de facto – do Estado para a sociedade, e depois, lentamente, da sociedade para o Estado. Mais tarde, a resistência à política do Conde Duque de Olivares, na Restauração de 1640, ilustra essa tendência. Há localismo? Sim, mas protegido pelo poder central (a aliança do poder real com os municípios, contra o alto clero e a nobreza…) – por isso se tem baseado mais em privilégios do que em responsabilidades. Há a língua e a sua projeção extraeuropeia? Sem dúvida. Mas a escolarização tardia e os efeitos da expulsão das ordens religiosas (1834) tem efeitos contraditórios – incluindo a fragilidade do escol dirigente e a dependência do voluntarismo de Estado. Os lugares de unidade e os fatores de coesão são vários e a “explicação” de Portugal não se encontra numa razão só… A vontade (mais do que um destino) foi o fator que moldou, compôs e criou a nossa identidade, como realidade que empobrece quando se fecha e renasce quando se torna cosmopolita e aberta…

Agostinho de Morais

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