Portucale ou Portugale, junto à foz do Douro, é a matriz do corpo político donde nasceu o Estado português - um Estado que precedeu a Nação.
O nome Portugal leva-nos à influência indo-europeia e ao elemento céltico – Porto é etimologicamente uma entrada de mar e o elemento Gal corresponde à referência ao povo céltico que se fixou na foz do rio Douro. Aliás, o mesmo elemento Gal encontramo-lo em diversas designações europeias: uma região da Capadócia (Galácia, origem dos Gálatas), um bairro de Istambul (Galatasaray), uma região do sul da Polónia, Galicia (onde está Cracóvia), a Gália (hoje França), o País de Gales (Wales) e a Galiza (origem do galaico-português)… Como se disse já, a construção de Portugal deve-se a um duplo movimento – de norte para sul, na reconquista cristã; e de sul para norte, na influência dos povos de língua árabe e dos moçárabes (cristãos arabizados). Poucos países de extensão semelhante apresentam aspetos tão variados da natureza como Portugal. Do mesmo modo, poucos ostentam diferenças tão sensíveis nas floras espontâneas locais ou nas práticas e instituições agrícolas. Quem o afirmou foi o Conde de Ficalho, Francisco Manuel de Mello Breyner (1837-1903), cientista, historiador, proprietário agrícola e político, par do Reino da “Vida Nova”, que se destacou nas diversas áreas em que exerceu atividade. Ramalho Ortigão disse dele: “Tanto sabia com autoridade palaciana empunhar o seu bastão de mordomo nas funções régias, como sabia manejar no gabinete a sua pena de escritor, como sabia governar no campo o ferro de um arado na lavra de um alqueive, ou um pampilho de vaqueiro numa apartação de gado”. Recordamos o seu retrato de Portugal, como país de contrastes e de diferenças. “Um viajante subitamente transportado do centro do Minho ao centro do Alentejo, julgar-se-ia a milhares de léguas do ponto de partida”. No Minho, Ficalho encontra “o verde variegado”, em vales estreitos, “com todas as nesgas de terra bem aproveitadas, o verde brilhante do milho, o verde fresco dos prados húmidos, e enquadrado por sebes vivas em que a vinha trepa pelas árvores”. E se fala do verde de Entre-Douro-e-Minho, numa paisagem limitada, mas acolhedora, pinta, nas encostas, o “verde alegre” dos carvalhos de folha caduca (que tantas vezes o lucro fácil sacrificou, teremos de dizer nós) e o “verde-escuro” dos pinheiros… Nesse tempo distante, contemporâneo do neolítico, camponeses e camponesas cultivavam os campos – e Ficalho notava um fundo matriarcal na sociedade (“a mulher trabalha tanto ou mais que o homem”). No norte litoral, encontravam-se os “pequenos rebanhos da pequena cultura”, nas colinas, entre os “tojos de flor dourada e as urzes floridas dum violeta rosado”. Dois ou três bois nos prados, meia dúzia de vacas ou uma dúzia de ovelhas nas encostas. A pequena propriedade, de cultura dividida e pobre, mantida pelo camponês “pouco progressivo” e pela sua prole… E o conde, que conhecia o Alentejo como as suas mãos, falava da transição desde o norte minhoto até à planura do meio-dia – “a paisagem muda, mais árida, mais ampla, os tons são menos vivos, pois o arvoredo dominante (a oliveira e os dois carvalhos de folha persistente), são todos dum verde apagado, azulado na oliveira, acinzentado na azinheira e sobretudo no sobreiro”. Eis a charneca inculta, a perder de vista, com as “grandes estevas glaucas”, as “alfazemas prateadas”. E, no “verão do Verão”, o restolho das searas “amareleja” e os pastos vicejam sob o “azul violento do céu”. As vacas e os bois de “pelagem encarniçada” (da “cor do trigo” na expressão do povo) viviam em grandes manadas, ao lado dos rebanhos “intermináveis” de ovinos pretos, conduzidos por “pastores seminómadas”. Escasseiam as pessoas (“pastores” e “maiorais pitorescos”) e de longe em longe há grupos de trabalhadores que amanham a terra, e o que ela dá, “por conta dos grandes proprietários”, em demanda de trigo, azeite, lã e cortiça… Em indo de sul para norte, as árvores mediterrâneas vão rareando até desaparecer (com a exceção de Trás-os-Montes), o tamanho dos campos vai diminuindo, o trigo vai dando lugar ao milho, o cinzento e o amarelo ao verde, e a gente vai-se tornando mais numerosa nos caminhos e nas fazendas. Da influência do Mediterrâneo vai-se passando para o Atlântico, sobretudo depois de passada a Cordilheira Central. como Orlando Ribeiro ensinou. E aí a serra da Estrela é a grande referência beirã (Beira-Serra), que, no dizer de Miguel Torga, não divide, mas une e concentra: “alta, imensa, enigmática, a sua presença física é logo uma obsessão”. Antero de Figueiredo diria: “cá em cima, os galaicos misturaram-se como os astúro-leoneses; lá em baixo, os lusos cruzaram-se com os mouros”. De facto, na linha de Herculano, salientamos que os lusitanos apenas surgem em parte do território hoje português, prolongando-se para Castela, dos Montes Hermínios para sul e leste. E Maria Angelina e Raul Brandão, no seu “Portugal Pequenino”, falavam da quadrícula da pequena propriedade a norte do Tejo e das extensas planícies ao sul – “com os pinheiros bravos cobrindo o terreno nas costas marítimas e vegetando no interior até às montanhas, onde só medram até certa altitude, na encosta voltada para o mar”. E qualificavam, muito justamente, o castanheiro como “a mais linda árvore de Portugal”, do mesmo modo que Aquilino (em “Quando os Lobos Uivam”) dizia que nada era “mais sumptuoso que um souto em vésperas de maturação”.
Esta “sucessão de transições” tem os seus misteriosos santuários. São eles: Entre-Douro-e-Minho; a cidade-estado do Porto; o território para lá do Marão, onde mandam os que lá estão (Marânus de Pascoaes); a Régua terra mágica do “vinho fino; a Beira como um todo que circunda a Estrela; “um ázimo pão sobrenatural” que mora nos “sacrários que a Charola de Tomar sintetiza” (Miguel Torga); Sintra como prefiguração do Éden; a Arrábida (de Agostinho da Cruz a Sebastião da Gama – de que Oliveira Martins, criado nesse monte sacro, disse: “acaso não há no reino panorama nem mais belo, nem maior, nem mais nobre, nem mais variado”) e a sul, o Alentejo (com a água a mudar o panorama) e o inebriante Algarve, de Teixeira Gomes e de Sophia de Mello Breyner. Tudo sem falar das ilhas encantadas… E neste sul do sul, Raul Brandão falava da “reverberação do sol”, do “azul mais azul” e do “branco mais branco” de uma terra levantina, a que só faltam os minaretes – “duas cores e cheiro: branco, branco, branco, branco doirado pelo sol, que atingiu a maturidade como um fruto, pinceladas de roxo uniformes para as sombras, e um cheirinho a cemitério” – “da soteia chego às estrelas com a mão”. E se virmos bem tanta variedade da terra portuguesa formou um povo bastante homogéneo, cujas idiossincrasias não induzem divisões insanáveis. Pesa talvez o individualismo atávico, que leva ao funcionalismo burocrático e à adoração do Estado messiânico, o melhor protetor e o melhor bode expiatório para todos os males. Daí funcionar o centralismo (que permitiu a unidade Brasil), que teve como melhor aliado, ao longo dos séculos, um municipalismo de forais e privilégios, contra as veleidades da nobreza e do alto clero.