"É de Cultura como instrumento para a felicidade, como arma para o civismo, como via para o entendimento dos povos que vos quero falar"

Cada Terra com seu Uso

XXXI. História longa – Memória rica…

Recordando António Alçada Baptista, termino o Folhetim de 2024 com uma dedicatória à língua portuguesa ou ao livro da nossa língua que maior projeção mundial tem. De facto, é uma obra pioneira na literatura mundial. Mais do que um livro de viagens, trata-se de um modo inteiramente novo e original de fazer uma narrativa.

Com mil aventuras e mil personagens, estamos diante de uma mudança completa no mundo da literatura. “Peregrinação” de Fernão Mendes Pinto (c. 1510-1583) põe-nos diante uma verdadeira personagem romanesca, como antes não existiu, que assume diferentes acontecimentos e até personalidades, e que descreve de um modo notabilíssimo, o que era a vida de um português no Oriente – criado de fidalgo, soldado, escravo, agente de negócios, pirata dos mares da China, mercador, médico ocasional do rei do Bongo, vagabundo e embaixador -, a verdade é que isso simboliza o português do mundo. Os estudiosos sobre esse tempo são os primeiros a considerar que não é possível compreender o que João de Barros ou Diogo do Couto nos relataram sem ler Fernão Mendes Pinto. Se Alonso Quijano, de Cervantes, se rebela contra a personagem de D. Quixote, Fernão Mendes é a personagem completa, que não precisa de convencer ninguém que deixa de ser quem sempre foi. O próprio título com que a obra foi publicada dá-nos a expressão plena da riqueza e complexidade do relato. "Peregrinaçam de Fernam Mendez Pinto em que da conta de muytas e muyto estranhas cousas que vio & ouvio no reyno da China, no da Tartaria, no de Sornau, que vulgarmente se chama de Sião, no de Calaminhan, no do Pegù, no de Martauão, & em outros muytos reynos & senhorios das partes Orientais, de que nestas nossas do Occidente ha muyto pouca ou nenhua noticia. E também da conta de muytos casos particulares que acontecerão assi a elle como a outras muytas pessoas. E no fim della trata brevemente de alguas cousas, & da morte do Santo Padre Francisco Xavier, unica luz & resplandor daquellas partes do Oriente, & reitor nellas universal da Companhia de Iesus".

Ao ler o sumário e a obra, houve entre os contemporâneos quem duvidasse da verdade dos relatos, respeitantes aos vinte e um anos em que andou pela Ásia, tendo sido, na sua própria expressão, “treze vezes cativo e dezassete vendido nas partes da Índia, Etiópia, Arábia Feliz, China, Tartária, Macáçar, Samatra e muitas outras províncias daquele Ocidental arquipélago dos confins da Ásia”. Mas sentimos, a cada passo, a força da verdade. A escrita começou logo uma vez regressado o autor a Portugal, em 1557, com a memória bem fresca, só sendo publicada trinta e um anos depois da sua morte (1614), por Pedro Craesbeek, com tardia autorização do Santo Ofício. Aos que duvidaram da veracidade dos relatos, o autor respondeu significativamente: “a gente que viu pouco mundo, como viu pouco também costuma dar pouco crédito ao muito que os outros viram”.

É memorável, a título de exemplo, o encontro de Fernão Mendes Pinto com António de Faria, o célebre corsário (quem é ele verdadeiramente?), numa situação, em que havia que saber novidades de Liampó, "porque se soava então pela terra que era lá ida uma armada de quatrocentos juncos em que iam cem mil homens por mandado de El-Rei da China a prender os nossos que lá iam de assento, a queimar-lhes as naus e as povoações, porque os não queria em sua terra, por ser informado novamente que não eram eles gente tão fiel e pacífica como antes lhes tinham dito", mas afinal era engano, pois essa armada tinha ido, afinal, socorrer um Sultão nas ilhas de Goto. É inesquecível a perseguição ao corsário mouro Coja Acém, que se dizia "derramador e bebedor do sangue português" e a quem Faria jurara vingança, por lhe ter roubado as fazendas e morto os companheiros na batalha mais violenta da “Peregrinação”. "E arremetendo com este fervor e zelo da fé ao Coja Acém como quem lhe tinha boa vontade, lhe deu, com uma espada que trazia, de ambas as mãos, uma tão grande cutilada pela cabeça que, cortando-lhe um barrete de malha que trazia, o derrubou logo no chão...”. E lembre-se o episódio da vinda do Embaixador do Rei dos Batas. Pero de Faria fê-lo «agasalhar o mais honradamente que então foi possível». E assim «o despediu bem despachado, e satisfeito do que viera buscar, porque lhe deu ainda algumas cousas além das que lhas pedira, como foram cem panelas de pólvora, e rocas, e bombas de fogo, com que se partiu tão contente desta fortaleza, que chorando de prazer, um dia perante todos os que estavam no tabuleiro da igreja, virando-se para a porta principal dela, com as mãos levantadas, como quem falava com Deus, disse publicamente. Prometo em nome de meu Rei a ti Senhor poderoso, que com descanso e grande alegria vives assentado no tesouro das tuas riquezas que são os espíritos formados da tua vontade, que se te praz dar-nos vitória contra este tirano de Achem (…). E assim te prometo e juro com toda a firmeza de bom e leal, que meu Rei não tenha nunca outro Rei se não este grande português, que agora é senhor de Malaca».

Fernão Mendes construiu, deste modo, no dizer de António José Saraiva, «um Oriente espantosamente humano, que tem o seu estilo próprio. Um Oriente que não é feito só de cidades, templos e esculturas, mas também do estilo falado, de etiquetas humanas, de sentimentos típicos». Hoje sabemos da verosimilhança de tudo quanto nos relatou. Pode até ter acontecido que não fora ele o real protagonista de tudo, mas percebemos que tudo ocorreu de facto. E assim a nossa cultura é inesgotavelmente peregrina!
 


Agostinho de Morais

 

 


Durante o mês de agosto, publicaremos este ano um conjunto de reflexões sobre Portugal,
que complementam o que publicámos em anos anteriores.



1 de agosto
I. Identidade e Cultura
2 de agosto
II. As divisões do território

3 de agosto
III. As raízes antigas
4 de agosto
IV. A Reconquista e a formação do Estado

5 de agosto
V. As origens da nacionalidade: a fundação de Portugal


6 de agosto
VI. A importância da crise de 1383-85. Fernão Lopes
7 de agosto
VII. A atração do mar
8 de agosto
VIII. De Vasco da Gama a Afonso de Albuquerque
9 de agosto
IX. Os portugueses e o Renascimento
10 de agosto
X. A decadência do Império


11 de agosto
XI. O domínio filipino e a Restauração
12 de agosto
XII. O Ouro do Brasil e as sequelas de Methuen
13 de agosto
XIII. Sebastião José de Carvalho e Melo
14 de agosto
XIV. Revisitando a ação dos Bandeirantes no Brasil
15 de agosto
XV. Da "Viradeira" à Revolução liberal
16 de agosto
XVI. Invasões francesas e presença da Corte no Brasil
17 de agosto
XVII. Garrett e Herculano – Um Novo Portugal
18 de agosto
XVIII. Geração de Setenta – os últimos românticos
19 de agosto
XIX. Os Vencidos da Vida – Que herança?
20 de agosto
XX. O fim do século XIX e a crise – o Portugal
saudosista e decadentista


21 de agosto
XXI. O Ultimatum inglês e o 31 de janeiro

22 de agosto
XXII. O século das guerras e o fim lento da autarcia
23 de agosto
XXIII. Almada Negreiros: A Força da criação

24 de agosto
XXIV. Democracia e opção europeia

25 de agosto
XXV. Sophia de Mello Breyner
- Símbolo do Portugal do século XXI


26 de agosto
XXVI. Portugal hoje - que relacionamento
com a Europa e o Mundo?

27 de agosto
XXVII. O universalismo da cultura portuguesa:
língua como fator de diversidade e de encontro

28 de agosto
XXVIII. A busca de uma identidade:
que cultura portuguesa? (1)

29 de agosto
XXIX. A busca de uma identidade:
que cultura portuguesa? (2)

30 de agosto
XXX. Recordar Camões no Quinto Centenário
do seu Nascimento

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