"É de Cultura como instrumento para a felicidade, como arma para o civismo, como via para o entendimento dos povos que vos quero falar"

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"Diário Incontínuo"

Faltava na obra de Mário Cláudio, distinguida com os mais importantes prémios literários, o género diarístico. Ele aqui está.

Iniciado em 1958 e intermitentemente escrito até aos anos mais recentes, este é o livro que permite ao leitor ficar a conhecer o percurso pessoal, íntimo até, de um dos nossos principais escritores.

O diário é seguramente o mais íntimo dos géneros literários. Repositório de confidências – e inconfidências – escritas sob a febre das emoções, partilhá-lo com o público é um acto de coragem, mais ainda quando o seu autor é um intelectual conhecido e reputado e quando as páginas que nos oferece estão cheias de revelações da sua «vida real» por oposição à ficção a que nos habituou.

Iniciado em 1958 – tinha Mário Cláudio apenas 16 anos – e interrompido por mais de uma vez até à actualidade, o presente livro, que funciona também como um maravilhoso álbum fotográfico, traz-nos relatos de almoços em família, de idas ao supermercado ou de obras em casa, a par de visitas a exposições, leituras de livros, períodos de escrita intensa, viagens, encontros com figuras que marcaram ou marcam ainda a vida nacional.

Nestas páginas, desfilarão por isso Agustina ou Lobo Antunes, Carlos Avilez ou Graça Lobo, Eugénio de Andrade ou Vasco Graça Moura, José Rodrigues ou Manoel de Oliveira, Rodrigo Guedes de Carvalho ou Gonçalo M. Tavares; mas não faltam igualmente os amigos certos, ou os relacionamentos – também amorosos – que num dado momento podem ter entrado em confronto, mas cujo afecto verdadeiro acabou tantas vezes por não deixar abalar.

Com a beleza dos pequenos instantes com os animais de estimação, com a mágoa que o reconhecimento público, mesmo que desejado, não consegue apagar, esta é uma obra pessoal escrita com toda a frontalidade e, ao mesmo tempo, um documento literário importantíssimo de uma época.

Porto, Sexta-feira, 3 de Janeiro de 1958
Deu-se hoje um incidente assaz desagradável – perdi o guarda-chuva! O exemplar fora comprado há pouco tempo e embora tivesse reunido todos os esforços para o reencontrar, e tivesse ouvido longuíssimo sermão, a verdade é que se tornou invisível. Felizmente para mim que almocei em casa da Avó donde comuniquei pelo telefone ao Pai tudo o que sucedera. Se assim não tivesse sido certamente que o problema ainda se complicaria mais. Após o almoço fui humildemente com o tio Armando pedir desculpa ao Pai, que já se encontrava no escritório.

Lisboa, Sexta-feira, 20 de Novembro de 1981
O Pai, uma vez: «Os escritores são todos malucos»; o Rui Feijó, outra: «Os escritores são todos umas putas»; o Arnaldo Saraiva, há dias: «Os escritores são todos doentes.»

Porto, Segunda-feira, 27 de Maio de 1985
Cada vez me sinto menos escritor de livros, sequer de páginas ou frases; cada vez mais, com efeito, escritor de palavras.

Porto, Sexta-feira, 12 de Fevereiro de 1999
Manifestados os primeiros sintomas da frequência da Internet: a página mediática em que se transforma cada pensamento, aparecendo e desaparecendo em obediência a um clique, arrastando para a ameaça da visita obsessiva ao computador. O tempero que representa entretanto a leitura de O Significado da Alma, de Thomas Moore: a frescura que se sente ao contacto com a brisa que se sabe estar lá.

Porto, Sexta-feira, 19 de Junho de 2009
Vou a uma livraria à procura de alguma coisa que me caiba ainda na estante. Os autores portugueses que me interessam oferecem-me, quase todos, os seus livros, e o resto é o rebotalho da ficção menos do que chunga, nacional e estrangeira, amores coloridos, reis e rainhas, e o saudosismo salazarento e colonialista. Dos de fora que resistem à onda não há original que se veja, nem tradução provavelmente ilegível, e saio portanto de mãos vazias.

Azurara, Casa dos Pais, Sábado, 30 de Agosto de 2014
Na velha Rua da Junqueira, Póvoa de Varzim, um desconhecido vem felicitar-me pelo meu trabalho, tecendo encómios e agradecimentos. E registo aqui a ocorrência, imitando o José Saramago que fez algo de idêntico, ao anotar no seu diário o júbilo por se ver reconhecido por uma hospedeira do ar. Que inseguros que somos todos nós, os da escrita, com ou sem Nobel à vista!


Mário Cláudio nasceu no Porto.
Ficcionista, poeta, dramaturgo e ensaísta, é formado em Direito pela Universidade de Coimbra, diplomado com o Curso de Bibliotecário-Arquivista, da Faculdade de Letras da mesma Universidade, e Master of Arts em Biblioteconomia e Ciências Documentais, pela Universidade de Londres.
É autor de uma vasta e multifacetada obra que abarca a ficção, a crónica, a poesia, a dramaturgia, o ensaio, a literatura infanto-juvenil, e se encontra traduzida em várias línguas.
Foi galardoado com, entre outros, o Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores-DGLAB (atribuído por três vezes), o Prémio PEN Clube, o Prémio Eça de Queiroz, o Prémio Vergílio Ferreira, o Prémio Literário Fernando Namora e o Prémio Pessoa, sendo igualmente titular de várias condecorações nacionais e estrangeiras.
Em 2019 foi-lhe atribuído o título de Doutor Honoris Causa pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto e a Sociedade Portuguesa de Autores apresentou-o recentemente como candidato ao Prémio Nobel da Literatura.
A sua obra ficcional, não raro composta por trilogias, inclui títulos como Amadeo, Guilhermina, Rosa, Gémeos, Camilo Broca, Tiago Veiga: Uma Biografia, Retrato de Rapaz, Astronomia, Tríptico da Salvação e Teoria das Nuvens.
A sua poesia foi recentemente reunida num único volume intitulado Doze Mapas, e a Sociedade Portuguesa de Autores homenageou-o com um livro de entrevistas para comemorar os seus 50 anos de vida literária.
É também autor de letras para fado.

Literatura Lusófona
512 páginas
25,90 Euros
ISBN: 978-972-20-8246-4
1.ª Edição: Julho 2024
Leya | Dom Quixote

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