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Ingmar Bergman: O cineasta de todos os exílios

O maior e mais importante acontecimento do verão cinematográfico é uma retrospetiva dedicada ao cineasta sueco Ingmar Bergman: são 31 filmes (incluindo quatro inéditos no circuito comercial) para conhecer um dos mestres absolutos da história da Sétima Arte. 

Kari Sylwan e Harriet Andersson em Lágrimas e Suspiros (1972): um filme no feminino

É escasso o número de realizadores encarados como símbolos universais do próprio cinema. Haverá quem (incluindo o autor deste texto) reconheça em Jean-Luc Godard o fulgor de um Leonardo da Vinci da nossa modernidade, mas tal epíteto nunca suscitou qualquer consenso. Restam nomes como o francês Jean Renoir ou o americano Orson Welles - através do seu trabalho o cinema foi reconhecido como uma linguagem única, capaz de transcender todas as artes que, da pintura à fotografia, contaminam as suas origens. Resta também a herança imensa e fascinante do sueco Ingmar Bergman, de novo presente nas salas portuguesas através de um ciclo proposto pela Leopardo Filmes. 

A retrospetiva de Bergman integra nada mais nada menos que 31 títulos e começou dia 14 de jullho, em Lisboa, no cinema Nimas (primeira sessão, com Lágrimas e Suspiros, às 13h00). A data foi escolhida para assinalar o aniversário do cineasta - nasceu em Upsala, no dia 14 de julho de 1918, tendo falecido durante o sono, na sua casa da ilha de Fårö, a 30 de julho de 2007. Exibindo cópias digitais restauradas, o evento pontuará todo o verão cinéfilo - com calendário repartido por Porto, Coimbra, Braga, Figueira da Foz e Setúbal, entre outras cidades -, prolongando-se até 2 de outubro. 

Não se poderá dizer que Bergman seja um desconhecido no contexto português: antes e depois do 25 de Abril, a sua obra de meia centena de títulos (incluindo diversas produções televisivas) teve uma divulgação regular, por vezes com significativo impacto jornalístico e comercial - recordo o exemplo de Persona/A Máscara (1966), estreado em finais de 1973 na pequena sala-estúdio que integrava o edifício do cinema Império. Uma coisa é certa: há muito tempo (desde a retrospetiva quase integral realizada em 1989 na Cinemateca) que os espectadores portugueses não tinham a possibilidade de percorrer assim o universo bergmaniano, um verdadeiro continente autónomo no interior da história do cinema.  

 Bergman com Christine Buchegger e Robert Atzorn: Da Vida das Marionetas (1980), o filme alemão.

Teatro & cinema

Não haverá muitos autores de cinema que, de imediato, associemos a um grupo muito especial de atores - e sobretudo de atrizes. No caso de Bergman, tal dimensão não será estranha ao facto de, na sua trajetória, o teatro não existir como mero complemento da atividade cinematográfica. Dir-se-ia que aconteceu o contrário. Se consultarmos o magnífico site oficial dedicado a Bergman [ingmarbergman.se], encontramos 77 obras filmadas (incluindo alguns trabalhos documentais e de formato curto), a par de mais do dobro de encenações teatrais: 171, em espetáculos produzidos entre 1938 e 2004.

As obras da década de 60, em particular, são reveladoras do modo como os intérpretes nunca foram para Bergman meros “imitadores” da pluralidade dos comportamentos humanos, existindo face à câmara como mensageiros de um universo de tensões emocionais que resiste a qualquer cliché dramático (seja ele feminino ou masculino). O já citado Persona é um marco fundamental de todo esse processo criativo, colocando em cena duas mulheres, Liv Ullmann e Bibi Andersson, marcadas e, mais do que isso, assombradas pelo irredutível poder das palavras: a primeira interpreta uma atriz que, na sequência de um episódio traumático, se recusa a falar; a segunda é a enfermeira que a acompanha, vivendo um turbilhão de amor e ódio na procura de uma fala que encontre algum eco no comportamento da sua silenciosa companheira.

Também dessa década são, por exemplo, O Silêncio (1963) e A Vergonha (1968), o primeiro com Ingrid Thulin e Gunnel Lindblom, o segundo com Liv Ullmann e Max von Sydow, ambos construídos a partir de situações de guerra vividas em radical angústia pelos protagonistas. Sem esquecer que, pelo meio, surgiu esse filme desconcertante e divertidíssimo que é A Força do Sexo Fraco (1964), retrato sarcástico de um violoncelista virtuoso que, numa paisagem dominada por mulheres, convive com um crítico musical que quer escrever a sua biografia - Bergman revela-se adepto desse desporto universal que consiste em gozar os críticos, num exercício de elegância e crueldade que só pode despertar o nosso sincero entusiasmo. 

Histórias de solidão

Todas essas histórias - a que podemos acrescentar a perturbante teia de solidões de que se faz A Paixão (1969), com Max von Sydow, Liv Ullmann e Bibi Andersson - são outras tantas “negações” da dimensão espiritual que, se não era procurada, era pelo menos objeto de especulação em filmes “religiosos”, como O Sétimo Selo (1957) ou A Fonte da Virgem (1960). Ironicamente ou não, foram também esses filmes que consolidaram de forma decisiva o prestígio internacional do seu realizador, inclusive nos Óscares de Hollywood.

Ainda que de modo esquemático, poderemos considerar que tal evolução desemboca nas singularidades de dois títulos fulcrais: Lágrimas e Suspiros (1972) e Da Vida das Marionetas (1980). O primeiro é, por excelência, o filme feminino (não confundir com feminista) de Bergman, colocando em cena um quarteto de notáveis atrizes - Harriet Andersson, Ingrid Thulin, Liv Ullmann e Kari Sylwan - interpretando, respetivamente, três irmãs e a sua criada em cenários de finais do século XIX. O cancro terminal de uma das irmãs (Andersson) é vivido como um labirinto de personagens exiladas num universo austero em que as paredes se apresentam forradas a cor de sangue.

O exílio tornar-se-ia uma questão premente, porque pessoal, quando, em 1976, Bergman foi acusado pelo Estado sueco de fuga aos impostos. Seguiram-se, precisamente, alguns filmes de exílio, desembocando no prodigioso Da Vida das Marionetas (1980), produção alemã que talvez se possa definir como uma nova variação trágica, a preto e branco, com duas sequências a cores, sobre o tema obsessivo do casal.

A questão do exílio é, para Bergman, muito mais do que um fator geográfico ou mesmo cultural. Viver é viver exilado da sua própria verdade, ou melhor, consciente de uma dimensão inconsciente em que essa verdade se exprime e de que, perversamente, se alimenta. Ainda assim, o tempo pode ser um bom conselheiro, como é referido nestas palavras autobiográficas: “Agora que recordo o que foi a minha vida, posso afirmar que foram necessários mais de 40 anos para que os meus sentimentos se libertassem da câmara fechada em que viveram. Vivi sempre de recordações de sentimentos, e, embora estivesse consciente de como eles deviam manifestar-se, a minha espontaneidade nunca foi espontânea, houve sempre uma fração de segundo entre a emoção intuitiva e a sua manifestação através da afetividade” (in Lanterna Mágica, editora Caravela, 1988).

Meia dúzia de anos antes de escrever estas palavras, aconteceu a reconciliação do cineasta com as autoridades do seu país. Assim, em 1982, de volta à Suécia, Bergman rodou Fanny e Alexandre, viagem multifacetada, comovente e angustiada ao mundo da infância. Costumamos dizer que é o filme mais autobiográfico de Bergman, o que, em boa verdade, nos pode fazer esquecer que ele filmou sempre na primeira pessoa - e quanto mais o fez mais tocou a solidão de cada um dos seus espectadores.

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por João Lopes in Diário de Notícias | 14 de julho de 2024
Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Diário de Notícias
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