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Está aberta a época dos filmes na esplanada da Cinemateca

Sessões debaixo das estrelas e sob o signo do espírito revolucionário, com uma panóplia de propostas.

Cary Grant e Jean Arthur em Paraíso Infernal (1939), de Howard Hawks

Há clássicos estimados, há contemporâneos que passam pela primeira vez, há cinema do Irão e pérolas francesas ou italianas, há dramas e musicais, comédias e documentários, terror e ficção científica, filmes para aquecer o coração e outros para fazer gelar o sangue. De tudo isto, e mais qualquer coisa, se farão as noites de julho na esplanada da Cinemateca, uma tradição estival lisboeta que este ano corresponde mesmo à totalidade da programação mensal - uma vez que estão a decorrer trabalhos técnicos nas salas M. Félix Ribeiro e Luís de Pina, as sessões ao ar livre (sempre às 21h45) tornam-se aqui a grande atração do verão cinéfilo, respondendo, de formas muito diferentes, aos ideais de Abril, ainda no âmbito das comemorações do cinquentenário da nossa data mais cinematográfica.

Assim, e embora o programa esteja dividido em quatro tópicos - Liberdade, Revolução, Comunidade e Futuro -, é interessante olhar para ele pelo ângulo da diversidade de produções que abrange. Desde logo, podemos começar por dois belíssimos títulos contemporâneos que dão conta da riqueza do atual cinema iraniano: Ursos Não Há, de Jafar Panahi (dia 30), retrato da clandestinidade desse realizador, numa povoação rural junto à fronteira com a Turquia, e Estrada Fora, de Panah Panahi (dia 18), road movie centrado numa família, que não sabemos bem para onde vai mas pressentimos estar à beira da catarse. Dois filmes recentes a refletirem um quadro de repressão, duas gerações de cineastas, pai e filho, que representam a postura de resistência proveniente da cinematografia deste país (basta lembrar que ainda há pouco, no Festival de Cannes, o filme The Seed of the Sacred Fig, foi o momento político do palmarés, Prémio Especial do Júri para um realizador, Mohammad Rasoulof, que fugiu do Irão...).

As outras propostas contemporâneas voltam-se para um dos nomes mais acarinhados pela Cinemateca Portuguesa, o finlandês Aki Kaurismäki e o seu O Outro Lado da Esperança (dia 10), que em 2017 vinha contar-nos a história de um refugiado sírio em Helsínquia, e O País das Maravilhas (dia 4), da Alice Rohrwacher, imagem pura de uma infância na Toscana, perturbada pelas movimentações em torno de um reality show. No primeiro caso, estamos a falar do realizador que este ano tocou realmente os espectadores portugueses, com o êxito Folhas Caídas, iniciando muita gente na ternura proletária da “kaurismakilândia”, e no caso de Rohrwacher, de quem se estreou no início do mês o fabuloso A Quimera, é uma ocasião para conhecer melhor, ou reforçar os laços com a licença poética desta italiana.

Isto sem esquecer os portugueses. De João Pedro Rodrigues e Catarina Mourão (de quem serão mostrados, no dia 8, a curta Turdus Merula Linnaeus, 1758, sobre um primeiro voo, e Desassossego, três narrativas sobre mudanças de casa) a João Rosas, com três curtas-metragens (EntrecamposMaria do Mar Catavento, no dia 22), passando pela dupla João Salaviza e Renée Nader Messora, no seu primeiro encontro com a comunidade indígena Krahô, Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos (dia 23), eis uma seleção que explora sensibilidades urbanas, por um lado, e um olhar defensor das culturas ancestrais, por outro. 

Os clássicos a que queremos sempre voltar

Bem mais regulares na Cinemateca são títulos clássicos como Paraíso Infernal (dia 9), obra-prima de Howard Hawks, com Cary Grant e Jean Arthur a protagonizarem um dos mais belos romances enquadrados pelo tema da aviação; Uma Noite Aconteceu (sessão que abre o ciclo amanhã) e Do Céu Caiu Uma Estrela (dia 25), ambos de Frank Capra, e ambos exemplos cristalinos de uma arte tão apaixonada quanto humana, com méritos absolutos na comédia e na fantasia dramática. Note-se que a sessão deste último abre com a curta de animação História Trágica Com Final Feliz, de Regina Pessoa. Um excelente jogo de afinidades.

No conjunto de filmes americanos dos Anos 30/40, há ainda An American Romance (dia 3) e A Ave do Paraíso (dia 19), os dois de King Vidor, um realizador cuja obra merece ser aprofundada para lá do épico Guerra e Paz (1956); e para quem tem desejos de musical, nada como Orgia Dourada (dia 16), no original Gold Diggers of 1933, de Mervyn LeRoy, que é sobretudo uma prodigiosa demonstração das técnicas coreográficas de Busby Berkeley, autêntico “pintor” de caleidoscópios humanos.

Da América da década de 90, será possível revisitar preciosidades como Um Coração Selvagem, de David Lynch (dia 13), Jogos de Prazer (dia 20), de Paul Thomas Anderson, e Jackie Brown (dia 27), de Quentin Tarantino, para além das mestrias em cinema de género representadas por A Semente do Diabo, de Roman Polanski (dia 6), e Nova Iorque 1997, de John Carpenter (dia 29).

Em língua francesa, projetar-se-á no grande ecrã da esplanada Os Quatrocentos Golpes, de François Truffaut (dia 12), reencontro marcado com o jovem Jean-Pierre Léaud, assim como o mais raro A Inglesa e o Duque, de Eric Rohmer (dia 2), um drama histórico com métodos atípicos, ambientado na Revolução Francesa. Já do lado italiano, surgem outras raridades, desde a satírica segunda longa-metragem do hoje veterano Marco Bellocchio, China Vizinha (dia 11), ao militante Seduto alla sua Destra (dia 15), de Valerio Zurlini, passando pela vida de São Francisco de Assis tal como a concebeu Roberto Rossellini em O Santo dos Pobrezinhos (dia 17), o seu filme mais despojado, precisamente nos termos franciscanos.

Quase como uma nota solta, deparamos também neste programa com Para Sempre Mulher (dia 24), o magnum opus de Kinuyo Tanaka, a realizadora japonesa dos anos 1950/60, que descobrimos em sala no último ano, através da retrospetiva integral proporcionada pela distribuidora The Stone and The Plot. Para Sempre Mulher é aqui talvez a nota feminina mais gloriosa: a história de uma poeta submetida a uma mastectomia (onde é que se viu outro filme da época a abordar o cancro da mama?), cuja postura se opõe à vitimização, escolhendo celebrar o prazer do corpo enquanto a alma se prepara para abandoná-lo. Não há lição revolucionária como esta.

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por Inês N. Lourenço in Diário de Notícias | 30 de junho de 2024
Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Diário de Notícias
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