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Jorge Silva Melo, o eterno rapaz e o seu cinema

'Viver Amanhã Como Hoje', o mais recente catálogo da Cinemateca, dedicado a Jorge Silva Melo, foi um projeto que começou com a colaboração do próprio e terminou já depois da sua morte em 2022. Um trabalho de paixão e resistência, a versar sobre o cineasta, sem esquecer todas as facetas do homem da cultura.

Jorge Silva Melo em Ainda Não Acabámos - Como se Fosse uma Carta (2016).

A primeira coisa que nos atrai é a capa. Um azul-claro com nuances, que sugere o movimento cromático ou a mistura imperfeita, inacabada, de uma pintura. É um azul que está nos filmes de Jorge Silva Melo (Agosto, Coitado do Jorge), um azul que nos faz imaginar um céu encenado ou um sofá macio; algo que se põe diante dos olhos ou que se sente pelo tato. Não é despropositado pensar tudo isto quando se contempla a capa de Viver Amanhã Como Hoje, porque Jorge Silva Melo via e sentia como poucos, ignorando critérios ou barreiras de apreciação. “Gosto de tantos filmes tão diferentes uns dos outros, quase diria que, ao iluminar-se o ecrã, sou realmente feliz com as luzes que se apagam, as cortinas que se abrem, aquelas primeiras luzes, a promessa”, lê-se no texto intitulado Carta-branca Sem Receita  que abre este catálogo editado pela Cinemateca, qual mergulho da imensidão do azul de Silva Melo.

O trabalho agora lançado, como qualquer dos catálogos da Cinemateca Portuguesa, surgiu na sequência de uma retrospetiva do realizador, cujo foco fundamental não deixa de dar testemunho da sua cinefilia ardente, da postura do encenador, crítico e ensaísta, enfim, do homem da cultura e da arte.

“O Jorge Silva Melo é um autor pleno, original, absolutamente reconhecível. Essa dimensão perpassa todo o catálogo, nas referências e citações abundantes”, refere Maria João Madeira, programadora da Cinemateca, responsável pela organização desta obra, chamando a atenção para os apontamentos que surgem nas últimas páginas do catálogo: “No final, as notas avulsas retiradas de publicações numa rede social foram uma forma de prolongar o diálogo, mostrando como, mesmo em pequenas publicações, ele continuava a falar de cinema. Como o cinema, a cinefilia, continuavam a ser parte da sua vida e do quotidiano.”

Integrar estas notas soltas condiz plenamente com a informalidade de Silva Melo, a sua atitude de “transmissão”, “circulação”, palavras essenciais de um universo que recusa o ponto final, a conclusão. À imagem do próprio, o livro “assume a centralidade da profusão de fotos e uma dimensão de rascunho, de caderno de trabalho”, realça Maria João, depois de lembrar a morosidade e violência do processo de edição, mais a retrospetiva que esteve na sua origem: primeiro, os confinamentos causados pela pandemia, que adiaram a retrospetiva e a carta-branca de Silva Melo, e, por fim, a morte do cineasta, em 2022, que fez repensar vários aspetos do livro.

“O catálogo teve, desde o início, uma ideia-mestra clara: dar aos filmes do Jorge Silva Melo a atenção que nunca tiveram, por circunstâncias várias. Dar visibilidade à sua obra no cinema, que ou não foi vista, ou foi pouco vista, e teve poucos ecos; ou foi, pelas mesmas razões, considerada acessória em relação ao teatro, sobretudo. Quis pensar um catálogo que refletisse uma análise da filmografia, da influência que foi tendo nas obras de outros realizadores, da sua geração e de gerações mais novas. No fundo, trazer à superfície toda a parte do seu trabalho que esteve submersa durante décadas, no caso da ficção de longa-metragem, ou que não foi encarada em termos de conjunto e na sua especificidade criativa”, esclarece Maria João Madeira, acrescentando que o facto de Silva Melo ter depositado na Cinemateca os documentos relativos à sua vida no cinema foi “precioso” para a conceção do livro.

Assim, o que se encontra nas mais de 400 páginas de Viver Amanhã Como Hoje (título tirado de um verso de Shakespeare) é um conjunto generoso de textos, cuja autoria vai de João Bénard da Costa a Miguel Lobo Antunes, passando por Regina Guimarães, Luís Miguel Cintra, Paulo Rocha, Sofia Areal, etc., mais as entrevistas raras (uma particularmente completa, conduzida por Francisco Ferreira, a propósito da retrospetiva no LEFFEST de 2014), escritos de Silva Melo, pois claro, e a dar conta do que ficou por fazer, um capítulo à volta dos projetos não-realizados.

Como nos conta a programadora, esta última proposta de mostrar os materiais de projetos não-concretizados - em especial, um que se chama A Linha da Vida - foi comentada com o próprio em 2020, que “não só concordou de imediato, como ficou divertido com a ideia”. De resto, “publicar, ou referir, projetos não-realizados é contar uma parte da história que ficou por acontecer; revelar pontos desconhecidos do percurso. O cinema português está cheio de filmes que ficaram por fazer. No caso do Jorge Silva Melo, o percurso no cinema foi constantemente interrompido ou dinamitado pelas circunstâncias.”

Este contacto inédito com o modo como o realizador de António, Um Rapaz de Lisboa planeava um filme é apenas uma das belas formas que o livro tem de nos pôr em contacto com a lógica do “ainda não acabámos”, outro título seu. Um estado de imperfeição graciosa, como o azul da capa.

Outras recentes edições Cinemateca

Com a aproximação da Feira do Livro de Lisboa, que começa amanhã, impõe-se olhar outras edições recentes da Cinemateca. Destaca-se aqui outro catálogo, Fernando Matos Silva - O Cinema a Fazer a Realidade; os chamados Cadernos da Cinemateca (publicações que acompanham ciclos de autor), neste caso, dedicados ao realizador senegalês Djibril Diop Mambéty, ao luso-francês Carlos Vilardebó, ao belga Boris Lehman, ao projeto FILMar e ao documentário americano no período do New Deal, através dos documentaristas Leo Hurwitz e Pare Lorentz; e o mais ambicioso projeto da casa, Escritos Sobre Cinema, de João Bénard da Costa.

Com efeito, a publicação dos dois volumes finais deste projeto editorial que somou oito livros, divididos em dois Tomos, ficará para a história da Cinemateca pela sua envergadura e longo processo (o primeiro livro saiu em 2018). Trata-se de uma integral dos textos do antigo diretor da Cinemateca e figura de proa da cinefilia portuguesa - textos sobre filmes, organizados por realizadores, e outros isentos dessa categoria -, que contagiam o leitor pela prosa acesa, por vezes arrebatada, com que “dá a ver” os filmes. Muito simplesmente, estas são as bíblias dos cinéfilos.


por Inês N. Lourenço in Diário de Notícias | 28 de maio de 2024
Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Diário de Notícias
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