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Caravaggio: o artista e a carne
Revisitação do mito de um dos mestres da grande arte italiana, o drama biográfico "A Sombra de Caravaggio", de Michele Placido, põe a vida agitada do pintor a falar da natureza dos seus quadros. Estreia esta quinta-feira.
Enfim, não trouxe à lembrança o filme de Jarman para comparar ou “fazer sombra” à L’Ombra di Caravaggio, antes para refletir o diálogo entre a modernidade do cinema e o pintor barroco que talvez mais influência teve, e continua a ter, no trabalho dos diretores de fotografia. Não é por acaso que se fala da luz de Caravaggio a propósito de tudo e mais alguma coisa, seja o chamado grande cinema (Apocalypse Now e a cena da cabeça nua de Marlon Brando desenhada pela sombra, alguns filmes de Albert Serra, etc.), seja qualquer filme que evidencie a técnica do chiaroscuro como forma de produzir uma impressão pictórica, isto é, uma evocação deliberada da pintura.
E não é por não estar ao nível do grande cinema que esta obra de Michele Placido deixa de ensaiar essa aproximação visual - fá-lo, aliás, sem exagerar no efeito tentador dos quadros vivos, remetendo-se ao lugar da honestidade ficcional. A Placido interessou, claramente, o homem carnal, que dá pelo nome de Michelangelo Merisi (Caravaggio era o nome artístico), cujas manifestações de desejo, a vida junto dos marginalizados e, sobretudo, a procura pela violência inerente aos corpos, ofereceram à arte a consciência de que qualquer representação do sagrado só pode vir do humano, na sua condição menos privilegiada.
Neste contexto, Riccardo Scamarcio é uma escolha mais do que justa para assumir a pele de Caravaggio, um ator que responde à chamada do vigor físico, da intensidade da presença, do tumulto interior e do caos da carne, reproduzindo o “quadro” de uma existência vagamente documentada que suscita um imaginário buliçoso.
O filme de Placido joga com isso, centrando-se precisamente nos moldes de uma vida que não se coaduna com os termos da Igreja (fosse qual fosse a época; mas estamos na Itália de 1610), surgindo aqui a figura de um investigador dos serviços secretos do Vaticano, Ombra/ “Sombra” (Louis Garrel), que vai sondando o percurso licencioso do pintor acusado de homicídio, a fim de sustentar a decisão a favor ou contra uma sentença de morte.
Caravaggio sou eu
É curioso notar que, tanto no Caravaggio de Derek Jarman como neste A Sombra de Caravaggio, os respetivos realizadores dão um ar da sua graça em personagens de cardeais (no caso de Jarman é apenas um cameo, enquanto Placido interpreta o Cardeal Del Monte), e talvez isso possa ser entendido como um modo de se inscreverem no universo moral do pintor.
De resto, foi o próprio Scamarcio quem disse, há umas semanas, na antestreia de A Sombra de Caravaggio na Festa do Cinema Italiano, que Michele Placido seria alguém um pouco à imagem deste artista de gestos desordenados e expressivos (o público português conhece melhor a versão de Placido como Comissário Corrado Cattani, na série O Polvo, da década de 80...).
Na sua interessante ausência de brio, que nunca se confunde com insipidez, A Sombra de Caravaggio funciona como uma mistura de telefilme e retrato de artista/biopic de arte. Uma mistura que acaba por vingar ligeiramente, dada a recusa de artifícios de grandeza: é um filme tão imperfeito como desenrascado, quase a imitar a brusquidão do pintor à procura de uma luz humana na escuridão dos becos.