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Gestos e fragmentos da nossa história

Com data de 1982, 'Gestos & Fragmentos' é um objeto precioso para a discussão do pós-25 de Abril. Graças à plataforma Zero em Comportamento, o filme de Alberto Seixas Santos está de novo disponível, convidando-nos a repensar as narrativas de que se faz a história coletiva.

Robert Kramer em Gestos & Fragmentos: um repórter americano a investigar o 25 de Novembro português.

Revisitar o 25 de Abril através do cinema pode, pelo menos, ajudar-nos a pressentir que a representação do advento da democracia política em Portugal não se esgota nos clichés correntes, quer nos discursos banalmente panfletários, quer em alguma retórica televisiva. Observe-se o exemplo de “50 anos de Abril: Que Farei eu com esta Espada?”, ciclo que a Cinemateca programou para todo o ano de 2024, apostando numa sugestiva memória de muitos ziguezagues temporais, narrativos, geográficos e culturais. E acrescente-se a proposta agora disponível no videoclube da plataforma Zero em Comportamento [zeroemcomportamento.org]: Gestos & Fragmentos, longa-metragem de 1982 realizada por Alberto Seixas Santos (1936-2016).

Sublinhe-se, antes do mais, o saudável sentido de oportunidade da Zero em Comportamento, e não apenas porque estamos em ano de comemorações de meio século dos acontecimentos que puseram fim à ditadura do Estado Novo. Acontece que, mais do que nunca, importa superar as fórmulas que tendem a representar a nossa história como um “telefilme” de personagens esquemáticas, obrigatoriamente “heróicas”, sem densidade política nem espessura humana.

Não se trata, entenda-se, de procurar verdades universais, obrigatoriamente redentoras, em que todos se reconheçam “automaticamente”. Em boa verdade, a interpretação da história do 25 de Abril (ou de qualquer outra conjuntura de complexidade semelhante) raras vezes gera consensos imaculados. O mínimo que se pode dizer de Gestos & Fragmentos é que se trata de um filme que vive, antes de tudo o mais, das diferenças de pensamento e argumentação dos seus protagonistas. São eles: um dos militares que fez o 25 de Abril, Otelo Saraiva de Carvalho (1936-2021); um ensaísta e filósofo da portugalidade, Eduardo Lourenço (1923-2020); e um dos autores mais emblemáticos do cinema independente dos EUA, Robert Kramer (1939-1999). 

Documentário & ficção

A conjugação das três personagens vai gerando uma lógica narrativa que tem o seu “ponto de fuga” na presença de Kramer. De facto, ele é o único que, no ecrã, não “coincide” com a sua própria história: assume os traços de uma personagem fictícia, um jornalista americano que investiga as circunstâncias em que ocorreu o 25 de novembro de 1975, nele reconhecendo a vibração de um momento real e simbólico em que o 25 de Abril se espelha, adensa e discute. 

Autor de Milestones (1975), um clássico absoluto sobre a América dos anos 1960/70, dramaticamente marcada pela guerra do Vietname, Kramer viveu e trabalhou entre nós, tendo realizado em 1977 o filme Cenas da Luta de Classes em Portugal. A sua presença em Gestos & Fragmentos serve para “descentrar” o filme, abrindo-o a uma perspetiva exterior, ou seja, não enraizada diretamente na história do próprio país. Usando uma terminologia que, mais tarde, para o melhor ou para o pior, se tornou vulgar, Kramer é o grão de areia que questiona as fronteiras de “ficção” e “documentário”.



Se há dimensão documental em Gestos & Fragmentos, as suas singularidades emanam, justamente, das presenças do militar e do filósofo: Otelo expondo a sua leitura do 25 de Abril e dos tempos que se seguiram, com particular atenção aos sucessivos abalos, conversões e reconversões a que foi sujeita a hierarquia do próprio exército; Lourenço (lendo textos de sua autoria) analisando as incidências políticas de tais acontecimentos, porventura o nascimento de uma nova cultura política. A certa altura, Seixas Santos reúne-os num frente a frente cujo confronto de ideias - pontuado pela nitidez, e também pelos enigmas, dessa entidade a que chamamos “povo” - tem qualquer coisa de mútua entrevista, inesperada e fascinante. Sem esquecer que o subtítulo de Gestos & Fragmentos é: “Ensaio sobre os militares e o poder”.

No limite, e ao contrário do que proclamam as convenções televisivas dominantes, a fronteira entre documentário e ficção talvez nunca se estabilize. Surge mesmo, implicitamente, como matéria de discussão no interior do filme. Porquê? Porque, em termos cinematográficos, documentar não é o mesmo que “repetir” factos que ocorreram - não há possibilidade de “repetição”, tudo é representação. E mesmo quando alguém recorre a materiais de arquivo filmados, a sua utilização envolve sempre algum tipo de contextualização - aliás, de recontextualização.

O tempo da história

O trabalho de Seixas Santos foi sempre marcado pela preocupação de encenar as convulsões da sociedade portuguesa para lá dos lugares-comuns “sociológicos” que, entretanto, tomaram o poder no universo formatado da telenovela. A sua derradeira longa-metragem, E o Tempo Passa (2011), é mesmo um dos raros momentos da nossa produção cinematográfica capaz de reconhecer e questionar o efeito “normalizador”, profundamente redutor, da telenovela na perceção do nosso quotidiano.

Antes do 25 de Abril, Seixas Santos filmara Brandos Costumes, concluído já depois daquela data (estreou-se em 1975), beneficiando da possibilidade de integrar materiais de arquivo do salazarismo. Nele encontramos outro tipo de duplicidade narrativa: por um lado, o retrato de uma família “típica” do Estado Novo, com a figura do pai a impor-se no dia a dia como projeção do modelo dirigente de Salazar - e para os que nos querem convencer que a grandeza dramática e moral das personagens femininas é uma invenção do #MeToo, sugere-se que recuem 50 anos e descubram as presenças de Isabel de Castro e Sofia de Carvalho em Brandos Costumes; por outro lado, os contrastes de uma montagem, devedora de um método inaugurado, ainda no mudo, por Sergei Eisenstein, envolvendo várias cenas do próprio Salazar, com destaque particular para o seu discurso de defesa dos valores, apresentados como indiscutíveis, de “Deus, Pátria, Família”.

Gestos & Fragmentos reaparece, assim, como objeto revelador de um tempo social ainda contaminado pelas atribulações ideológicas do PREC. Mais do que isso: para lá das memórias que guarda, há nele uma  pedagógica atualidade narrativa, discutindo, ponto por ponto - através das imagens e dos sons -, o modo como organizamos a nossa perceção da história. Aliás, a perceção da nossa história.


por João Lopes in Diário de Notícias | 13 de março de 2024
Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Diário de Notícias
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