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Da Irlanda aos Óscares, a MONSTRA respira liberdade

Está de volta o grande festival de cinema de animação de Lisboa. O cinquentenário do 25 de Abril, o foco nos clássicos da produção irlandesa, os filmes portugueses, as antestreias e alguns nomeados aos Óscares, preenchem uma programação com cerca de 400 títulos, mais as masterclasses, oficinas e exposições.

Robot Dreams - Amigos Improváveis, a longa-metragem nomeada para o Óscar de Melhor Animação.

A MONSTRA não está só a crescer, está cada vez mais madura. Este festival que ao longo dos anos tem sido a maior vitrina do cinema de animação mundial, no contexto lisboeta, chega à sua 23ª edição com todos os trunfos de um grande certame: o estímulo criativo, o diálogo com os profissionais da área e a valorização da arte enquanto discurso e gesto livre, quiçá com espírito revolucionário. Isto porque na proximidade dos 50 anos do 25 de Abril impõe-se a devida comemoração, espelhada num programa – que começa amanhã e se estende até ao dia 17 – repleto de iniciativas para despertar a mente, a curiosidade, as emoções e, no fundo, todos os sentidos. Tem sido esse o apanágio de um festival que não se cinge ao público infantil e juvenil, procurando, pelo contrário, dar a ver e conhecer as múltiplas possibilidades do cinema de animação. Da habitual sala do São Jorge à Cinemateca, passando pelo Cinema City Alvalade e Cinema Fernando Lopes, eis os vários espaços para desfrutar das propostas.

É então sob o signo de Abril que a MONSTRA arranca. Uma efeméride que irá “refletir-se de várias maneiras”, diz em entrevista ao DN o diretor artístico do festival, Fernando Galrito. Logo na cerimónia de abertura (amanhã, 21h30), há um projeto com o título A Revolução: “Um desafio lançado por nós a várias escolas, essencialmente da Europa. Aquilo que vamos apresentar é uma montagem de filmes feitos por escolas alemãs, búlgaras, turcas, italianas, portuguesas, etc., um trabalho de jovens – todos eles nascidos cerca de 30 anos depois do 25 de Abril, e oriundos de diferentes culturas – que olharam para a nossa revolução de formas muito interessantes, pela particularidade de ser uma revolução com flores e sem disparos.” Um trabalho que virá acompanhado de uma espécie de versão portuguesa, Esta é a Minha História, concebida em residência artística por um grupo de jovens, no espaço de arte contemporânea Casa da Cerca, em Almada.

Ao longo do festival não faltarão sessões e exposições dedicadas ao tema. Mas dentro da MONSTRA Summit, que Fernando Galrito faz questão de sublinhar como um conceito anterior à “summit mais badalada”, este ano salta à vista o encontro de André Carrilho, Cristina Sampaio, Nuno Saraiva e João Miguel Tavares (aqui na qualidade de especialista na história da Banda Desenhada), que vão dissertar um pouco “sobre o modo como veem o 25 de Abril nos dias de hoje, perante as pressões que às vezes existem, dos pontos de vista social e mediático, sobre a liberdade de expressão”, esclarece o diretor, lembrando que no mesmo dia (12) José Xavier dá uma masterclass: “Um jovem realizador de 80 anos que fez praticamente toda a carreira em França, porque, como o próprio diz, “havia um homem velho e mau em Portugal”, que não gostava dele nem das coisas que ele fazia. Foi-se embora no final dos anos 60, depois de alguns trabalhos em publicidade, com o seu mestre Armando Servais Tiago, outro homem genial do mundo do cinema de animação, e não só... Portanto, nesta masterclass o José Xavier vai falar do seu trabalho, da experiência de um país onde não podia fazer o que queria e da mudança para outro país democrático.” 

Da Irlanda, com amor e tradição
Por sua vez, nesta 23ª edição do festival lisboeta, a Irlanda surge como o país convidado, trazendo para a linha da frente a magia do estúdio Cartoon Saloon, que está a celebrar um quarto de século, e cuja verve criativa importa revisitar através do seu virtuoso conjunto de filmes, autênticas provas coloridas de uma alma irlandesa assente no folclore das histórias e na emoção do traço. “É um estúdio com uma identidade muito forte”, concorda Galrito. “Costumo dizer até que tem uma relação com o cinema de animação português, na medida em que aquilo que nos distingue lá fora é, em grande medida, o tratamento da nossa cultura nos filmes. Aquela ideia de que a melhor forma de dizermos algo ao mundo é falarmos de nós próprios, da nossa aldeia. E essa é uma característica do Cartoon Saloon: eles não tentaram copiar ninguém, criaram a sua própria identidade a partir de dentro. E mesmo o cartaz da MONSTRA deste ano, que é criado e desenhado pelo Tomm Moore [cofundador do estúdio], dá conta disso. Neste caso, a ligar-se à cultura portuguesa através do mar.”

Realizador das maravilhosas animações Brendan e o Mundo Secreto de Kells (2009), A Canção do Mar (2014) e Wolfwalkers (2020), todas imbuídas de lendas e motivos tradicionais, Tomm Moore marca presença no festival para uma masterclass, no dia 8. Isto ao mesmo tempo que decorre uma retrospetiva da sua obra e das produções do seu país, incluindo curtas-metragens – alguns desses filmes com portugueses na ficha técnica.

Ainda no bloco criativo de terras irlandesas, outro nome incontornável é o de Jimmy T. Murakami (1933-2014). “Um americano que se estabelece em Dublin e que chama a atenção especialmente através do filme When the Wind Blows [Quando o Vento Sopra, 1986], sobre um casal de idosos a deparar-se com um ataque nuclear. Uma obra que, infelizmente, volta a ser muito atual”, nota o diretor da MONSTRA. Sem dúvida, um dos retratos mais devastadores e tocantes da história da animação, Quando o Vento Sopra confronta-nos com a morte lenta por envenenamento radioativo. Um clássico tão famoso como o seu The Snowman (1982), que também será exibido numa sessão de curtas. 

A época dos Óscares
Acontecendo nesta altura do ano, a MONSTRA não pode deixar de ter um tête-à-tête com os nomeados para os Óscares. E apesar de o calendário de estreias não ter permitido lançar em primeira mão o filme do veterano Hayao Miyazaki, O Rapaz e a Garça, há um inédito absolutamente delicioso que nos chega com essa mesma aura da nomeação: Robot Dreams – Amigos Improváveis, de Pablo Berger. Um título que Fernando Galrito confessa ter causado uma indecisão momentânea quanto à competição que deveria integrar, de modo a não criar situações de desvantagem – ficou na secção “Perspetivas” (dia 12), cujo vencedor é escolhido pelo público. “É um filme que reúne aquilo que são as qualidades intrínsecas de uma boa obra de animação, desde a narrativa e realização à estética e banda sonora, que neste caso em particular suporta muito bem os vários momentos da história. Vamos ver se tem hipóteses de ganhar o Óscar.”

Trata-se de um conto nova-iorquino assinado por um espanhol, que narra a aventura da amizade terna entre um cão e um robot numa Manhattan cheia de vida (Anos 80), até ao dia em que a solidão ameaça abater-se de novo sobre o quotidiano do animal da metrópole, separado do seu amigo por força de certas circunstâncias... que importa não revelar. Resta-lhes os sonhos, na contagem decrescente para o reencontro. 

Já nas curtas-metragens, o nomeado ao Óscar que a MONSTRA exibe é o iraniano Our Uniform/O Nosso Uniforme (dia 14), de Yegane Moghaddam, objeto de “uma enorme delicadeza”, que trouxe uma alegria acrescida, como sublinha o diretor: “Quando vimos a nomeação, achámos especialmente interessante, tendo em conta que é um filme do Irão e a maior parte dos votantes são norte-americanos. Ou seja, é a arte a conseguir ultrapassar as divisões que a política, ou os políticos, têm mais dificuldade em ultrapassar. Se fizéssemos todos mais arte, haveria com certeza menos guerra.” Palavras de quem se orgulha da presença regular que o cinema iraniano tem na competição do festival, com “obras de uma grande sensibilidade, que começa nas pessoas que as realizam”.

Um aspeto curioso é este ano estar também nomeado ao Óscar de melhor curta-metragem de animação Letter to a Pig, título que venceu o Prémio Especial do Júri na última MONSTRA. Galrito diz que a sua realizadora, a israelita Tal Kantor, “teve a hombridade de olhar para a sua cultura numa perspetiva crítica, não deixando de evocar a memória do Holocausto, mas percebendo o outro trauma coletivo que pode estar a ser criado.” 

Uma antestreia de peso
A abrir a competição de longas-metragens, no dia 11, Mataram o Pianista, de Javier Mariscal e o Fernando Trueba, vai de Nova Iorque ao Rio de Janeiro, para investigar o sumiço de Tenório Júnior (1941-1976), um músico envolto pelo mistério da noite em que foi “engolido” pela ditadura da Argentina. O papel principal pertence a um jornalista americano, com a voz de Jeff Goldblum, e a história desenrola-se em torno da sua pesquisa e entrevistas, que incluem ilustres cabeças falantes, como Chico Buarque, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Milton Nascimento e até, através de registos de arquivo, Ferreira Gullar e Vinicius de Moraes – todos sujeitos ao filtro da animação.

Segundo Fernando Galrito, esta coprodução com o cunho português da Animanostra, teve “uma parte animada cá, sob a direção do Pedro Brito”, e um traduz-se num filme “um pouco à imagem do que Mariscal e Trueba nos tinham mostrado na animação Chico e Rita [2010], que também andava à volta da música latino-americana. Agora no centro da história temos um homem que desapareceu. É quase um documentário sobre este pianista do título, que teria sido um dos protagonistas dos primórdios da Bossa Nova.” Em suma, “tem esta coisa fantástica de nos remeter para capítulos menos conhecidos da música brasileira, e depois é uma lufada de ar fresco na relação entre o cinema de animação, o documentário e a boa sonoridade.” 

O produto nacional
Este ano, a representação portuguesa traduz-se em duas dezenas de curtas, com 12 na competição nacional (das quais, sete se encontram também na lista internacional) e as restantes nas competições de estudantes e curtíssimas. Galrito destaca algumas das estreias mundiais desses títulos portugueses: “Por exemplo, o filme do José Xavier, Saudades... Talvez [a passar amanhã], que diria ser muito parecido com o último Miyazaki, na medida em que é um olhar para trás. Temos, na mesma sessão de abertura, o último filme do André Carrilho, um realizador que toda a gente conhece mais pelas ilustrações [inclusive neste jornal], mas que também se faz notar na animação, apresentando aqui um objeto muito bonito e poético, apesar da temática – chama-se A Menina com os Olhos Ocupados. E chamaria ainda a atenção para O Estado de Alma [dia 15], de uma jovem realizadora, Sara Naves, e Eduardo, Walter e Leonidov [dia 9], do nosso colega de programação Miguel Pires de Matos, que é uma bela homenagem a três grandes nomes da história da Arquitetura mundial. Surge numa nova secção chamada Archanim.”

Nesta fase da conversa, o diretor anuncia também a estreia no festival de uma série, Diário de Alice (dia 9), reforçando que a animação portuguesa precisa de ir além do formato curto e ter oportunidades de crescer nos outros campos, da longa-metragem às séries, precisamente. “Temos capacidade de, com alguma frequência, produzir algo num formato mais “industrial”, embora eu não goste muito da palavra... Ou seja, algo mais de grande público. Neste caso, temos uma produção da Sardinha em Lata, com a RTP e a televisão espanhola, que logo a seguir ao festival vai para o circuito televisivo. E é uma série infantil que se distingue e deveria fazer escola, desde logo, por não ser daqueles blockbusters feitos à pressa, com animações mal-acabadas, mas sim um trabalho cuidadoso que mistura o desenho digital com recortes e marionetas analógicas. Há um encontro de técnicas.”

A propósito de encontro, vale a pena pôr na agenda as masterclasses sobre Inteligência Artificial (dia 11) e a arte da montagem na Pixar, esta por Bill Kinder (dia 15), sem esquecer a exposição Três Famílias, no Museu da Marioneta, que reúne os bastidores de três filmes de animação, da Croácia, de Itália e de Portugal. É a Europa a sentir-se em casa. 


por Inês N. Lourenço in Diário de Notícias | 6 de março de 2024
Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Diário de Notícias
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