"É de Cultura como instrumento para a felicidade, como arma para o civismo, como via para o entendimento dos povos que vos quero falar"

Notícias

Herman José, 50 anos a criar bonecos inesquecíveis

De Tony Silva a Nelo, sem esquecer José Estebes, Marilú ou o pasteleiro José Severino, é vasta a galeria de personagens hilariantes criadas por Herman José. Quando se assinalam os 40 anos do programa O Tal Canal e também meio século da sua carreira, recordamos a importância que a criatividade do humorista assume para o imaginário de várias gerações.

Herman José com Nicolau Breyner eram o Sr. Feliz e o Sr. Contente. Foto D.R.
Num dos seus livros mais conhecidos, a escritora Marguerite Yourcenar chamou ao tempo o grande escultor. E é bem provável que tivesse razão se considerarmos a espécie de cegueira de que somos acometidos quando analisamos o que nos é quotidiano: Com que critério distinguimos a faísca do incêndio que transforma para sempre aquilo em que toca? Na tarde de 1999, em que, sentada no lobbie do Hotel Polana, em Maputo, conheci o jornalista da RTP Carlos Pinto Coelho esperava a todo o momento que ele iniciasse um discurso opulento, cheio de afeto pela sua "África, mãe África". No meu imaginário estava ainda a personagem de Carlos Filinto Botelho, criada por Herman José, para o programa Tal Canal, exibido mais de 16 anos antes, mas que marcara fortemente a minha geração, apanhada no princípio da adolescência por uma série de "bonecos" irresistíveis, que imitávamos com obsessiva insistência. No meu inconsciente, Filinto Botelho e o seu inspirador, Carlos Pinto Coelho, confundiam-se numa mesma histriónica figura.

Dir-se-ia que o Portugal do princípio dos anos 80, ainda com dois canais de televisão e cassetes pirata compradas em barracas de feira, era terreno propício a deslumbramentos instantâneos. A quem, como eu, tinha 6 anos no 25 de Abril, o mundo ficava longe e falava (e cantava) em inglês. Mas se pensarmos nos "bonecos" de O Tal Canal, que foi para o ar pela primeira vez há 40 anos, compreendemos que, ao contrário de tantas outras coisas que víamos na televisão (e com as quais até delirávamos), estes continuam a fazer-nos rir com a mesma espontaneidade e, mais notável ainda, a fazer sentido na sociedade portuguesa de hoje.

Em abono da justiça, importa dizer que um dos grandes méritos do humorista foi também a escolha das suas equipas. O Tal Canal é Herman mas também Vítor de Sousa, Helena Isabel, Natália de Sousa, Margarida Carpinteiro, Manuel Cavaco e Lídia Franco. Depois, o formato escolhido - uma paródia à própria televisão no tempo em que, no nosso país, só existia a RTP - é de uma ousadia assinalável. Lá estavam o comentário desportivo (com o José Estebes, o comentador à moda do Porto, com um gosto pronunciado por um bem servido copinho "pomada" e pela sua Graciete), mas também o programa de culinária (com Filipa Vacondeus brilhantemente caricaturizada por Herman), o espaço infantil (com o insuportável Nelito a dar que fazer à "educadora" Lídia Franco) ou as variedades "da rádio, tv e disco e da cassete pirata", asseguradas pelo impagável Tony Silva, autointitulado "grande criador de toda a música ró". Não faltava sequer a telenovela (realizada por Nuno Teixeira como, aliás, Vila Faia, a primeira produção portuguesa do género), de título Diário de Marilu, em que a indómita protagonista (Herman, claro) desencadeava paixões funestas por onde quer que passasse.

A identificação com situações e tipos recorrentes da vida portuguesa parece ser um dos segredos da longevidade não só de Herman, como das suas criaturas. No momento em que se assinalam os 40 anos de Tal Canal, passa também meio século sobre o princípio da carreira do ator, iniciada no que era ainda é o palco de todas as "estrelas" nacionais: O Parque Mayer. No pós-25 de Abril, um veterano, com carreira feita como era já Nicolau Breyner, decide dar uma oportunidade ao miúdo e formam, na TV, a dupla Senhor Feliz e Senhor Contente que não perde oportunidade de dar alfinetadas sobre a conturbada situação política do país. O sucesso é imediato mas Herman, então na casa dos 20, ainda terá de correr o país com peças de teatro e cantigas várias para conquistar a reputação de "estrela". Aconteceu com O Tal Canal (após notável prestação de Tony Silva no programa dominical de Júlio Isidro, O Passeio dos Alegres) e, apesar de alguns altos e baixos nas décadas seguintes, não mais deixou de ser assim.


Vieram depois Humor de PerdiçãoHermaniasHerman EnciclopédiaCasino Royale, entre outros programas, até ao atual Cá por Casa. Com eles, veio nova galeria de personagens que fixaram morada no nosso imaginário, como a criada Maximiana, o diácono Remédio, o presidente da junta, o cantor de intervenção Rui Tomé, o cantor Serafim Saudade, o naturalista inspirado em David Attenborough, que tinha o hábito de emergir de arbustos de plástico ou, mais recentemente, Nélio, o desassombrado marido da abnegada Idália (Maria Rueff).

Como seria de esperar, a irreverência sem limites de Herman valer-lhe-ia amargos de boca. Foi na primeira maioria absoluta de Cavaco Silva, quando a sua interpretação de Rainha Santa Isabel, numa "entrevista histórica", foi considerada pouco respeitosa para com as grandes figuras da História. Ato contínuo, sem qualquer explicação, o Conselho de Gerência da RTP, suspendeu as 3 últimas entrevistas históricas, devido às queixas que a estação pública foi recebendo de "alguns espetadores". A 5 de Junho de 1988, o público não viu a entrevista histórica. Em declarações ao Independente (10/6/88), o humorista revelaria a sua estupefação perante este ato inesperado de Censura, 14 anos após o 25 de Abril: "Domingo à noite, dei aqui em casa uma festa com o elenco do programa (tinham terminado as gravações). Tivemos todos uma sensação única -- que muitos de nós não tinham desde 1971 ou 72: a de ver um programa que de repente dá um salto, porque houve alguém que lhe deu uma tesourada. É uma coisa única, fica-se com falta de ar. Chegou a altura da entrevista histórica e depois só há uma cena em que entra a Manuela Maria e diz: "Então, correu bem a entrevista?""

A tesourada ficou para a História das pequenas infâmias possíveis mesmo em Democracia e Herman continuou a conquistar público entre gerações diferentes, filhas dos adolescentes de 1983, acima de modas, que também as há no Humor, e fenómenos passageiros que ignoram a impossibilidade de fazer graça à força. Herman jamais confundiu humor fino com presunção e, também por isso, os seus "bonecos", em Portugal, só têm par nos criados por Vasco Santana ou Raul Solnado. Que o diga José Severino, o pasteleiro mais citado do país, desde que Lídia Franco o entrevistou "por engano" em 1991, mas a quem tantas vezes roubamos a frase: "Quer-se dizer eu é mais bolos."


por Maria João Martins in Diário de Notícias | 23 de outubro de 2023
Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Diário de Notícias
Agenda
Ver mais eventos
Visitas
100,425,668