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Entre o animal e o humano: os reinos reveladores de Paula Rego
Nova exposição lança luz sobre os anos 80, década em que a artista consolidou o estilo figurativo único ao lidar com desafios pessoais. Paula Rego: Letting Loose vai estar patente na galeria Victoria Miro, em Londres, até 11 de novembro.
Há décadas, a vitória não estava garantida, mas hoje em dia, perante o regresso da atenção crítica e do mercado de arte àquelas obras que se inspiram orgulhosa e claramente no mundo real, e do interesse cada vez maior pelas vozes historicamente marginalizadas, não se pode negar que Paula Rego ganhou nos dois campos de batalha.
No que diz respeito às descobertas que fez ao segurar o pincel na mão no atelier, foram pessoais, políticas e, às vezes, pessoais e políticas. Basta olhar para a serie sobre o aborto, que data de 1998-1999, para uma prova da adesão de Paula Rego à afirmação do seu primo ibérico, Pablo Picasso, de que a arte é "una herramienta de lucha". Quando essas telas foram expostas pela primeira vez na Fundação Calouste Gulbenkian em Lisboa - instituição que Paula Rego caracterizou como "um pai e uma mãe", numa referência à bolsa que lhe tinha oferecido nos anos 1960 - a artista, então com mais de 60 anos, fizera o seu nome.
Entre os acontecimentos que contribuíram para esse êxito, a sua primeira exposição em Londres em 1987 e o tempo que passou, a partir de 1989, enquanto primeiro artista associado da Galeria Nacional em Londres - residência que está a ser marcada até 29 de outubro pela sede de arte do Reino Unido por meio da exposição de Crivelli"s Garden, obra de nove metros que retrata de forma subversiva várias histórias antigas e bíblicas.
A década anterior foi, portanto, decisiva no desenvolvimento de Rego - marcando o seu afastamento da colagem a favor de uma pintura mais figurativa e lúdica. Mas não foi fácil, talvez o maior desafio sendo o agravamento da esclerose múltipla do marido, o também artista Victor Willing, que morreu em junho de 1988. E eis o período prolífico que fornece o foco para Paula Rego: Letting Loose, mostra relativamente pequena mas bem concebida na galeria Victoria Miro - que representa Rego no Reino Unido desde 2020 - patente até 11 de novembro.
Como sugere Letting Loose - poder-se-ia optar em português por "libertando-se" - a ação desempenha um papel fulcral e altamente visível em cada uma das 14 obras reunidas sob esse título. Mesmo antes de considerarmos a cena, o nome da primeira pintura, Marathon (Running II) [Maratona (Corrida II)], que data de 1983, aponta precisamente para isso. Outra pintura na segunda sala, titulada Corrida, realça a ideia de movimento e está rodeada de obras de cores mais suaves que se inspiram nas visitas de Rego à ópera quando era criança.
No centro de Marathon, uma mulher atarracada cavalga um papagaio verde brilhante, como se estivessem em pleno voo. À esquerda e à direita, duas meninas ficam precariamente de pé sobre os ombros de uma avestruz e de um coelho, respetivamente. Em primeiro plano, uma rapariga com um vestido azul deita-se no chão com a mão direita à volta do pescoço de um peru vermelho e aparentemente calmo. Mas perante o seu olhar duro, ela acaricia ou prepara-se para estrangular? Entretanto, insetos caem do céu, ratos verdes-mar marcham com estômagos distendidos (ou, talvez, grandes pénis), e, formando uma moldura ao longo do fundo, uma fila de mulheres foge das garras de um corcunda.
Nesta cena, tal como a dominação dos animais (masculinos) pelas mulheres nos faz pensar em outras imagens dos anos 80, nomeadamente Wife Cuts off Red Monkey"s Tail (Mulher corta a cauda do macaco vermelho) e a série Girl and Dog (Menina e Cão), vale a pena lembrarmo-nos das palavras de Germaine Greer, a feminista australiana de renome, num texto de 1988 para a revista Modern Painters: "Rego breathes the dangerous air of the region where species overlap" ("Rego respira o ar perigoso da região onde as espécies se sobrepõem").
Com efeito, pode-se detetar essa atmosfera ameaçadora ao longo da exposição. Evocação impressionante das possibilidades e dos perigos que vêm das interações entre os dois mundos é Central Park, o que resultou, de acordo com o cineasta Nick Willing, de uma visita a Nova Iorque cujas "contradições" a mãe amou. Ao passo que, no imaginário coletivo, esse grandíssimo parque norte-americano é um espaço de harmonia entre a natureza e as pessoas, a visão de Rego torna-o mais maligno e misterioso. Renderizada discretamente no canto direito da tela, uma jovem num vestido vermelho de bolinhas e com trancinhas enfia cuidadosamente uma faca num urso deitado de costas e de patas para o ar. À sua direita, uma ovelha segura a asa de um pássaro entre os dentes, impedindo-o de voar, enquanto um cão que usa um smoking levanta uma tampa de esgoto, de cuja escuridão emerge uma chita sorridente. No fundo, outra chita espreita, empunhando um machado de picareta. Sem dúvida a criatura mais reveladora aqui é o cão de pelo laranja e de cartola, que está prestes a sair da tela. A passear com uma namorada humana maquilhada, olha de forma conhecedora para a violência - ou, pelo menos, a sua ameaça - atrás dele, como se quisesse dizer: este lugar não tem o ar certo para meninas.
"Muitas vezes não sabemos bem ver nem explicar as coisas," disse Rego, numa entrevista concedida ao poeta Bernardo Pinto de Almeida em 1988. A artista referiu-se talvez aos altos e baixos da década anterior - sucesso comercial, consolidação do seu próprio idioma visual, perda doméstica. Mas certo é que viu com clareza as relações do poder e como a violência, pelo menos em termos artísticos, requer alguma reflexão. (Efetivamente, como ela referiu repetidamente aos entrevistadores, foi mais fácil tornar amigos e familiares em macacos ou ursos porque "you can do things to animals that you can"t do to people because it"s too shocking" ("podem fazer-se coisas aos animais que não se pode fazer às pessoas porque é demasiado chocante"). Se se pode dizer que estas 14 obras marcantes são representativas do universo de Rego, então nele somos todos criaturas, capazes de coisas boas e más, sujeitos a caprichos feios e bonitos. Ou não somos? Já que como ela observou - em relação à tela mas também, penso eu, à vida - "quanto mais certo, mais ambíguo".
por Franklin Nelson em Londres, in Diário de Notícias | 6 de outubro de 2023
Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Diário de Notícias