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Umberto Eco no labirinto dos livros

Como fazer o retrato justo de um dos maiores estudiosos da segunda metade do século XX? Antes de mais, celebrando o seu muito peculiar amor aos livros. É isso que faz Umberto Eco - A Biblioteca do Mundo, de Davide Ferrario, um documentário com brio e sentido lúdico, à imagem do filósofo italiano.

São sobretudo as estantes repletas de livros que atraem a câmara de Davide Ferrario. Percorre-as como quem percorre um labirinto, ou então, em movimento vertical, como mãos que acariciam o detalhe e a textura das lombadas mais antigas - isto antes de aceder aos textos e ilustrações no seu interior. Esses primeiros gestos da lente curiosa de Umberto Eco - A Biblioteca do Mundo acercam-nos do seu motivo principal: o fascínio dos livros e o lugar que ocuparam na vida do gigante italiano. Sobre o ato solitário de colecionar livros, Eco disse, numa conversa com Jean-Claude Carrière (publicada em A Obsessão do Fogo, edição Difel): "Raramente se encontra quem partilhe da nossa paixão. Se possuirmos belos quadros, as pessoas virão admirá-los. Mas nunca se encontrará alguém que se interesse verdadeiramente pela nossa coleção de livros velhos. As pessoas não compreendem porque damos tanta importância a um pequeno alfarrábio sem qualquer atrativo e porque nos custou anos de pesquisa." Ora, ao fim e ao cabo, o que o documentário de Ferrario procura é contrariar esta perspetiva pessimista do bibliófilo. Fazer com que nos aproximemos dos livros com a mesma atenção prestada a um quadro.

Nascido de uma estreita colaboração com a família de Umberto Eco, o filme que chega agora às salas, depois da passagem pela Festa do Cinema Italiano, não se organiza como uma biografia formal, daquelas sujeitas à bagagem de relatos pessoais que geralmente escrutinam uma personalidade. O máximo que se retira de memórias íntimas é a evocação de uma avó pouco culta e leitora ávida (que tanto lia Balzac como romances de amor pirosos), para além de uma anedota sobre os tempos de estudante, em que Eco fez um acordo com o gerente de um teatro para assistir de graça às peças, ele e os amigos, na condição de que batessem palmas entusiastas... Só havia um senão: como tinham um horário noturno a cumprir, durante muito tempo Eco não conseguiu saber o destino de personagens como Édipo ou Hamlet, porque era obrigado a sair sempre antes do último ato.

São histórias como esta que contribuem para o elemento sedutor de Umberto Eco - A Biblioteca do Mundo. Um documentário que assimila a postura ensaísta vívida do filósofo e escritor, ao condensar o seu pensamento sobre tudo e mais alguma coisa, desde as bibliotecas como "memória vegetal" (termo do próprio) ao suporte físico do livro, passando pela era da cultura digital, o valor da informação e o tema do falso, tão importante na obra de Eco. "Tenho um fascínio pelo erro, pela má-fé e pela estupidez. Sou extremamente flaubertiano."

Apoiado em materiais de arquivo, essencialmente, várias conferências, intervenções públicas e entrevistas de Umberto Eco (uma de 2015, o ano anterior à sua morte), mas também depoimentos da viúva, dos filhos, do neto e de alguns colegas e amigos do autor, Ferrario explora a evidência de um legado e a paixão de um homem que, no seu enciclopedismo bem-disposto e desempoeirado, deu uma imagem diferente do pensador dentro do universo académico. Alguém que, tal como a sua avó, era capaz de ler obras-primas e literatura popular, retirando o mesmo prazer de ambas. Era acima de tudo um defensor do poder da ficção.

Daí que, seguindo a lógica desse perfil, o documentário integre ainda uma abordagem performativa: de quando em vez, surgem atores e atrizes a dar voz a excertos dos escritos de Eco, em pequenas encenações que estabelecem um tom lúdico, em jeito de partilha de pensamento com piscadela de olho. Estes interlúdios "ficcionais" acabam por ser vagamente televisivos na conceção polida, mas não ferem a alma do exercício criativo. Cumprem o propósito de mostrar como os textos do intelectual italiano são palavra viva, conhecimento que puxa conhecimento. E talvez por isso o complemento de imagens de diversos modelos de bibliotecas, das mais antigas às mais modernas, encaixe tão bem nesta exploração da palavra - elas são "o símbolo e a realidade da uma memória coletiva", como refere Eco, que possuía uma com mais de 30 mil livros, entre os quais 1200 obras raras e antiquíssimas.

Há uma certa vertigem na quantidade de informação visual e sonora que Ferrario concentra em Umberto Eco - A Biblioteca do Mundo (e os próprios planos repetidos de bibliotecas imensas contribuem para essa sensação), mas se, noutro contexto a abundância poderia distrair do essencial, aqui promove uma corrente de ideias que dão o retrato fiel de um homem. Alguém que se referia ao seu romance mais célebre, O Nome da Rosa, com uma certa irritação espirituosa, afirmando que este ofuscou todos os seus outros livros, que considerava muito melhores... De alguma forma, o documentário vem lembrar que o que Umberto Eco nos deixou, enquanto figura marcante da cena cultural na segunda metade do século XX, é muito mais do que uma história de monges na Idade Média. Ele encarna, como poucos, o elogio da curiosidade humana e a bibliofilia como uma promessa de futuro - tão só porque soube transmitir aos outros o bichinho da vontade de apreciar a literatura na sua condição analógica. Aqui prolonga-se esse amor ao objeto livro, com gáudio e sem nostalgia.


por Inês N. Lourenço in Diário de Notícias | 7 de setembro de 2023
Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Diário de Notícias
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