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Queres ser José Cardoso Pires?
Neste engarrafamento de estreias e crise de espectadores, chega desamparado Sombras Brancas, novo filme de Fernando Vendrell, cujo ponto de partida é o romance de José Cardoso Pires, De Profundis, Valsa Lenta.
Sombras Brancas tem essa meta: entrar na cabeça de um escritor que tinha Lisboa e a noite dentro dele. O resultado, por muito desigual que seja, conta a favor com o fator do risco: um protagonista que perde a memória e que depois relata esse abandono. Nesse sentido é um filme de prazer: a vertigem sensorial do pensamento criativo extático. Fica a dúvida: não será essa a faísca do milagre literário? Esta não é então "a história da vida de Cardoso Pires". A ação pede dois Cardoso Pires: o que está a recuperar do AVC e o jovem sedutor. Vemos a maneira como esse flashback gigante pinta o seu grande amor por Edite, a sua mulher. Mas na cabeça de quem está a recuperar há sombras e uma insólita passagem para encontros e obras suas: até Alexandra Alpha (espantosa Maria João Bastos) aparece, mas também amigos como Pomar, Lobo Antunes e Redol... O estado "de profundis" tem uma dimensão poética que é consubstanciada por um rigor fantasioso que agita. Independentemente de tudo, ficamos a admirar mais o homem, o escritor. Nesse aspeto, Rui Cardoso Martins e Vendrell escreveram um argumento que não faz a homenagem óbvia. Há fascínio, claro, mas também se sentem as complexidades de um artista que não convém ser esquecido nestes dias de euforia digital.
A força que controla este jogo de assombrações é Rui Morisson no papel de uma vida. Não está a querer ser Cardoso Pires, apenas está a respirar a sua silhueta. Uma transformação sequíssima, em estado sublime. Quase não dá para acreditar... Por sinal, em papéis secundários também brilham Soraia Chaves, Natália Luíza, Raquel Rocha Vieira, Rafael Gomes e Iris Cayatte.
Sombras Brancas é o filme mais "filme" de Vendrell. Pode não ser o melhor: Aparição, o anterior anda lá perto e haverá sempre uma recordação feliz de Fintar o Destino, o seu primeiro filme. Desta feita parece ter chegado a um estado ideal ao convocar os afetos certos. Atrai, empurra para um lugar invisível que acaba por trazer um sopro de esperança ou não fosse uma visão sobre alguém que volta à vida. Ou a literatura como fonte da recriação cinematográfica mais livre. Poderia ou deveria figurar no Plano Nacional de Cinema, mesmo não sendo perfeito, mas sobretudo por nos fazer dialogar com as palavras do escritor. E o "formato" de limbo não atrapalha nada...
Foi filmado na pandemia, em pleno confinamento, e demorou mais de dois anos a chegar aos ecrãs. O seu lado de "contracorrente" terá afastado o picar do ponto nos festivais nacionais.