"É de Cultura como instrumento para a felicidade, como arma para o civismo, como via para o entendimento dos povos que vos quero falar"

Notícias

Ryuichi Sakamoto. O músico japonês que o cinema tornou global

Sakamoto ganhou o Óscar de melhor banda sonora por O Último Imperador, de Bernardo Bertolucci.© Tiziana FABI / AFP

Começou pela música eletrónica, mas nunca deixou de procurar novos caminhos e geografias, do cinema à Bossa Nova. Ryuichi Sakamoto morreu aos 71 anos.

Para a maior parte dos ocidentais, Ryuichi Sakamoto ganhou um rosto quando, em 1983, não só compôs a banda sonora do filme Feliz Natal, Mr.Lawrence, como interpretou o papel de comandante de um campo de prisioneiros japonês durante a Segunda Guerra Mundial. Do lado de lá da barricada, neste filme de Nashiga Oshima, estava David Bowie, com quem o militar nipónico estabelecia uma relação de crueldade e interdependência. Quatro anos depois seria ainda o cinema a consagrar o músico japonês, ao conquistar o Óscar de melhor banda sonora por O Último Imperador, de Bernardo Bertolucci, que ganharia um total de nove. A partir daí, o rapaz tímido, nascido em Tóquio, a 17 de janeiro de 1952, converter-se-ia numa verdadeira estrela pop.

Depois de ter anunciado ao mundo a gravidade do cancro de que sofria há vários anos, Ryuichi Sakamoto morreu na passada 3.ª feira, 28, aos 71 anos, embora o seu agente só tenha comunicado o falecimento este domingo, num texto em que também se podia ler: "Sakamoto continuou a trabalhar sempre que a saúde o permitia. Viveu com a música até ao final." De acordo com os desejos do artista, o serviço fúnebre ter-se-á celebrado apenas na presença dos familiares mais próximos.

Adolescente na era dos Beatles e da primeira fase dos Rolling Stones, o jovem estudante de Música nunca escondeu o seu fascínio pela cena underground nova-iorquina, personificada em Joseph Beuys, Fluxus e Andy Warhol, e a música experimental que os acompanhava. Era frequente que, em entrevistas, Sakamoto gostasse de lembrar que nascera no ano em que John Cage compôs 4:33. Na Universidade, estudou o trabalho de compositores modernos como Boulez, Stockhausen, Ligeti e Iannis Xenakis. O primeiro álbum em que figura o nome de Sakamoto data de 1975: Disappointment/Hateruma (assim se intitulava) marca a colaboração com o percussionista Toshiyuki Tsuchitori e é todo um trabalho de improviso.

Em 1978, forma (com Haruomi Hosono e Yukihiro Takahashi) o trio de música eletrónica, Yellow Magic Orchestra (YMO), que conquista um assinalável êxito de vendas no Japão. Em 1980, dois dos seus álbuns permaneceram várias semanas consecutivas em primeiro e segundo lugar nos tops. Mas o mundo tentava-o. Em breve tê-lo-íamos a colaborar com Iggy Pop, Robert Wyatt, Laurie Anderson ou David Sylvian. A música experimental italiana também o seduzia e, em 1989, gravaria o disco Beauty, em que voltava às sonoridades do seu país, para combinar o património musical da região de Okinawa com a música eletrónica.

A popularidade no Ocidente chegaria, no entanto, com algumas das mais bem sucedidas bandas sonoras das décadas de 1980 e 1990. Depois de Feliz Natal, Mr Lawrence e O Último Imperador, Sakamoto trabalharia ainda com Brian De Palma (Snake Eyes e Femme Fatale), Oliver Stone (Wild Palms), Pedro Almodóvar (Saltos Altos), e, já neste século, para o filme de Alejandro González Iñárritu The Revenant. Com Bertolucci, participaria ainda em Little Buddha e Sheltering Sky.

Noutra dimensão de espetáculo, fez uma peça para a cerimónia dos jogos olímpicos de Barcelona, em 1992, e, em 1999, colaborou com o artista Shiro Takatani, numa ópera multimédia intitulada Life, em que também participavam Bernardo Bertolucci e Pina Bausch. Posteriormente, Takatani e Sakamoto estenderiam esta colaboração à instalação. Em 2013, integrou o júri do Festival de Cinema de Veneza, presidido, nesse ano, pelo seu amigo Bertolucci.

Já muito debilitado pela doença, o músico apresentou o seu último concerto a 11 de dezembro no ano passado, em formato online para que os seus fãs de diferentes fusos horários pudessem escutá-lo. Já no princípio deste ano, lançou o disco 12, que o próprio considerava o seu testamento artístico. "De agora em diante, até que o meu corpo se renda, provavelmente continuarei a fazer este tipo de diário", esclareceria Sakamoto. E acrescentava: "São esboços instrumentais". O registo destas peças terá sido feito ao longo de 2021 e 2022.

Sakamoto atuou várias vezes em Portugal. Em 2002, num espetáculo com os brasileiros Jaques Morelenbaum e Paula Morelenbaum, esgotou duas sessões na Aula Magna de Lisboa. Também por cá, o trio vendeu mais de quinze mil cópias do álbum Casa, que revisitava a obra do mestre da bossa nova António Carlos Jobim. Este disco fora gravado na casa de Jobim no Rio de Janeiro e todas as faixas tocadas no seu piano. Em 2004, Sakamoto colaboraria ainda no quarto álbum de Rodrigo Leão, com o tema António, gravado nos estúdios Right Track, em Nova Iorque.

Interventivo como cidadão, Sakamoto integrou o movimento anti-nuclear japonês, Desde os anos de 1990, que vinha a empenhar-se em causas ambientais e pacifistas e, em 2006, iniciou a campanha Stop Rokkasho, para travar a construção de instalações de processamento nuclear no norte do Japão. Uma intervenção que redobraria de intensidade após o acidente na central nuclear de Fukushima, em 2011.


por Maria João Martins in Diário de Notícias | 3 de abril de 2023
Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Diário de Notícias
Agenda
Ver mais eventos
Visitas
100,491,799