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Reimaginando Emily Brontë
Emily Brontë, autora do lendário romance O Monte dos Vendavais, reaparece como figura central do primeiro filme realizado por Frances O"Connor: Emily é um retrato subtil, tanto em termos psicológicos como no plano histórico, dominado pela notável interpretação de Emma Mackey, este ano consagrada nos BAFTA.
E que filmes são esses? São filmes desamparados: cumprem uma semana de exibição, sem promoção que se veja, desaparecendo logo a seguir no caldeirão dos canais que desaguam no nosso ecrã caseiro... Lançado hoje, Emily será, talvez, um desses filmes, a meu ver uma das mais belas descobertas deste ano cinematográfico.
A atriz principal, a brilhante Emma Mackey, além de participar numa série com algum impacto na Netflix (Sex Education), foi distinguida com o BAFTA de revelação do ano, aliás, de "estrela em ascensão" (rising star). Dito de outro modo: pelo menos entre nós, os BAFTA não têm os favores do marketing. Isto sem esquecer que Emily marca a estreia na realização de Frances O"Connor, atriz tão discreta quanto talentosa que vimos, por exemplo, no papel da mãe em AI: Inteligência Artificial (2001), de Steven Spielberg.
Repare-se: não se trata de sugerir que Emily teria condições para ser um fenómeno de bilheteira - salvo erro, fazer crítica de cinema não é classificar filmes como potenciais sucessos ou insucessos. O que está em causa é bem diferente: mesmo reconhecendo que a diversidade da oferta tem melhorado na última década, continua a haver filmes cujas qualidades artísticas e comerciais são automaticamente ignoradas.
Memória dos vendavais
A Emily do título é uma figura universal, lendária na história da literatura: Emily Brontë (1818-1848), autora de O Monte dos Vendavais, romance sobre o amor trágico de Catherine e Heathcliff de que existem dezenas de adaptações para cinema e televisão, incluindo a versão de 1939 protagonizada por Merle Oberon e Laurence Olivier, sob a direção de William Wyler.
Emily Brontë faz mesmo parte de uma mitologia popular tecida de muitos cruzamentos dramáticos: pertenceu a uma "comunidade literária" completada pelas irmãs Charlotte (1816-1865) e Anne Brontë (1820-1849), proeza excecional no contexto da Inglaterra da primeira metade do século XIX; a sua escrita desafiou estilos literários e padrões morais e religiosos da sociedade vitoriana; enfim, teve um fim trágico, falecendo aos 30 anos de idade, vítima de tuberculose.
Tudo isso está no filme: a cena inicial, com Emily às portas da morte - enquanto a irmã Charlotte, num misto de comoção e ciúme, descobre os três volumes da primeira edição de O Monte dos Vendavais -, possui mesmo qualquer coisa de "condensação" mitológica da personagem de Emily Brontë. Seja como for, o argumento de Emily, escrito pela própria realizadora, reimagina a escritora muito para lá da banalidade "biográfica" que continua a marcar muitas evocações do século XIX, quer em cinema, quer em televisão (incluindo as plataformas de streaming).
Emily evolui como uma narrativa de rara sensualidade. Há nela uma dinâmica em que se cruzam a autoridade familiar e religiosa dos homens (com a paixão funesta de Emily por William Weightman, o novo pároco), a paradoxal fragilidade do irmão Branwell (personagem comovente, nunca anulada por lugares-comuns feministas), o acesso das mulheres à escrita literária e, por fim, envolvendo tudo isso, a presença de uma natureza tão sedutora quanto enigmática que vai pontuando as muitas convulsões da existência de Emily.
As três irmãs
Num elenco de invulgar consistência, a interpretação de Emma Mackey bastaria para transformar este Emily num acontecimento invulgar. Por certo através da direção de Frances O"Connor, ela evita as facilidades correntes das "reconstituições" históricas que levam a reduzir as personagens do século XIX, sobretudo as mulheres, a figuras pitorescas, banalmente simbólicas, psicologicamente anedóticas.
A sua Emily Brontë é um ser maior que a vida (talvez pudéssemos dizer: maior que a morte...) que descobrimos num labirinto passional que, metodicamente, devora todos os outros. Observe-se o caso de Branwell, interpretado pelo excelente Fionn Whitehead (vimo-lo em 2017 como um dos soldados de Dunkirk, de Christopher Nolan), figura que combina a vulnerabilidade emocional com o desejo de conhecer cientificamente a natureza - escusado será sublinhar que nessa tensão entre as paixões da alma e a revelação de uma natureza que pode ser inventariada e classificada ecoa uma linha de força do imaginário e da filosofia do século XIX.
Enfim, a secundarização de Emily no mercado cinematográfico é bem reveladora de uma situação que dá que pensar: nem mesmo uma "biografia" da autora de um livro tão universal como O Monte dos Vendavais consegue alterar as rotinas dominantes do marketing. Termino, por isso, com uma sugestão ingénua: que se mostre esse filme belíssimo que é As Irmãs Brontë (1979), de André Téchiné, comercialmente inédito em Portugal, com Isabelle Adjani, Marie-France Pisier e Isabelle Huppert, respetivamente como Emily, Charlotte e Anne.