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Elogio do realismo

O novo filme de Marco Martins, Great Yarmouth - Provisional Figures, é o retrato íntimo de um grupo de trabalhadores imigrantes portugueses no Reino Unido, centrado numa brilhantíssima composição de Beatriz Batarda.

Beatriz Batarda é o centro visual e dramático do filme.© D.R.
Numa altura em que muitos espectadores apenas respondem ao ruído dos eventos mediáticos (ou ruidosamente mediatizados), eis que chega às salas Great Yarmouth - Provisional Figures, um filme magnífico que, ponto por ponto, se demarca de qualquer modelo consagrado pelo marketing. Na sua origem está um projeto teatral que começou por ser concretizado em Inglaterra, em 2018, pelo próprio realizador, Marco Martins, autor de títulos como Alice (2005), São Jorge (2016) ou a série televisiva Sara (2018).

No palco, tratava-se de construir um espetáculo que refletisse as condições de vida dos imigrantes ilegais portugueses na cidade costeira de Great Yarmouth, na região de Norfolk. Escusado será dizer que o filme vive da sua própria identidade, não sendo necessário conhecer a sua "antecipação" teatral. Importante, isso sim, é a expressão que lhe serve de subtítulo: como se esclarece logo na abertura, "provisional figures" é uma classificação das estatísticas oficiais do Reino Unido para designar os trabalhadores imigrantes "com uma situação indefinida ou provisória".

Em termos esquemáticos, este é o retrato de um grupo desses trabalhadores, polarizado por uma personagem "maior que a vida": Tânia, uma mulher que serve de intermediária entre os portugueses (que a tratam como "Mãe") e a empresa proprietária de um matadouro de aves, ao mesmo tempo que alimenta a ilusão de recuperar o hotel degradado em que aloja os trabalhadores.

A caracterização do filme como um panfleto capaz de dar conta de uma conjuntura de cruel exploração dos seres humanos tenderá a ignorar aquilo que faz de Great Yarmouth - Provisional Figures um objeto de cinema tão invulgar quanto fascinante. De facto, a "denúncia" como lugar-comum narrativo está disseminada nas nossas sociedades como uma espécie de obrigação moral de qualquer gesto artístico. Resultado prático: monumentais mediocridades são tratadas como se fossem bíblias do "politicamente correto" - e são mesmo, há que reconhecê-lo...

De modo bem diferente, o que aqui mais conta é a obstinação de uma "mise e scène" que, ao distanciar-se de clichés ideológicos, não desiste de expor o caráter irredutível, visceralmente trágico, de cada uma das suas personagens. No papel de Tânia, Beatriz Batarda é o centro do filme, tanto em termos visuais (dir-se-ia que a câmara é sua espectadora e companheira), como no plano dramático - e convenhamos que não é todos os dias que, na produção portuguesa ou de qualquer outra origem, encontramos uma atriz capaz de se expor neste desnudamento emocional, sem nunca ceder à tentação de convocar um qualquer estereótipo feminino ou feminista.

Nuno Lopes, Kris Hitchen, Romeu Runa e Rita Cabaço são alguns outros nomes do elenco, garantindo a Great Yarmouth - Provisional Figures a vibração perturbante de um realismo alheio a qualquer naturalismo televisivo. Daí que sejamos levados a evocar a mui nobre herança do realismo britânico, aqui celebrado, refeito e repensado para as agruras do nosso presente.


por João Lopes in Diário de Notícias | 16 de março de 2023
Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Diário de Notícias
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