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"Só páro quando morrer", diz o ator Ruy de Carvalho
Em véspera de comemorar 96 anos, o que acontecerá na quarta-feira, dia em que subirá ao palco do Coliseu do Porto, para mais uma récita há muito esgotada de "A ratoeira", de Agatha Christie, Ruy de Carvalho é perentório: "Somos muito descartáveis, na Cultura, somos".
O ator Ruy de Carvalho, com quase 81 anos de carreira, a um dia de comemorar 96 anos de idade, e um percurso que congrega teatro, cinema, rádio, televisão, afirma que vai continuar a trabalhar e só pára "quando morrer".
"Só quando morrer é que páro, e isso leva um segundo", diz Ruy de Carvalho. E assegura que só então "a menina vigia" se "irá embora" de si.
E como acredita que "há Além", garante que é um "homem feliz", porque "lá em cima" encontrará os que amou, como o pai, a mãe, que era pianista, os dois irmãos já falecidos e também atores, João de Almeida e Maria Cristina, e a mulher Ruth, com quem foi casado de 1955 até à morte desta, em 2008. "Os meus pais, a minha mulher, tudo isso, tudo aquilo que já perdi como homem".
"Lá" também irá encontrar "todos os amigos". Entre estes estarão, decerto, o ator Henrique Canto e Castro (1930-2005), que conheceu quando tinha 17 anos, e a quem chamava irmão. Foi aliás com Canto e Castro, amigo e parceiro de muitas peças e de muitas companhias de teatro, que Ruy de Carvalho viu, pela primeira vez, a mulher com quem viria a casar-se e com quem teria os seus dois filhos.
Foi na década de 1950, próximo de um restaurante junto ao Conservatório Nacional, em Lisboa, que viu pela primeira vez "uma rapariga muito bonita" que o deixou "encantado" de imediato, conta o ator na peça "Ruy, a história devida".
Mal a viu, disse para o amigo: "Estás a ver aquela rapariga muito bonita? É com ela que quero casar e quero que seja ela a mãe dos meus filhos", conta a propósito da mulher por quem se apaixonara e sobre quem, depois, viria a saber tratar-se de uma estudante de dança.
"Uma grande mulher e companheira para a vida" que acabou por abdicar da carreira optando por ficar em casa, sem que o ator alguma vez lho tenha pedido, como recordou à agência Lusa.
A melhor homenagem é "ouvir os aplausos do público"
Em 1998, na encenação de "Rei Lear", de Shakeapeare, no Teatro Nacional D. Maria II, partilharia de novo o palco com o amigo Canto e Castro.
Varela Silva, Paulo Renato, Armando Cortez - o "Manduca", como lhe chama -, e Laura Alves, com quem também contracenou ao tempo da Empresa Vasco Morgado, são outros dos amigos que Ruy de Carvalho menciona e a quem carinhosamente presta homenagem durante o espetáculo "Ruy, a história devida", que mantém em cena no Taguspark, certo de que os encontrará "lá em cima".
Sem esquecer Eunice Munõz, a "grande senhora" a quem presta também homenagem na peça, considerando que "foi um génio no teatro e até na vida".
"Lutou sempre para que o teatro não parasse de sobreviver", sublinha Ruy de Carvalho a propósito da protagonista de "Mãe coragem", de quem foi amigo até à morte desta, no ano passado, na "sexta-feira santa" de 15 de abril.
Assumindo ter "muita honra em ser um cidadão normal", Ruy de Carvalho faz questão de sublinhar não ser "mais do que ninguém".
"Apenas uma pessoa que se distinguiu na profissão que escolheu" e que "serve os seus semelhantes" o melhor que pode e sabe.
A melhor homenagem é "ouvir os aplausos do público". Confessa mesmo que "adora" ouvir uma grande salva de palmas - assim como receber o carinho com que ao longo de quase 81 anos de carreira o público o tem tratado.
Confessando-se um homem de desafios - como o é fazer teatro no Taguspark, agora - Ruy de Carvalho assegura que todos os atores assim como todos os encenadores com quem trabalhou tiveram "a mesma importância" para si.
Amante confesso da arte de representar que abraçou ao longo da vida, com um amor sempre crescente pela representação, Ruy de Carvalho espera que as gerações futuras continuem a frequentar o teatro e que sejam "bem servidos pelo espetáculo".
"Que vejam espetáculos com muita qualidade. Sempre", é o desejo que gostava de ver cumprido no futuro.
Imensamente grato por tudo o que a vida e o público lhe deu ao longo de quase 81 anos de carreira, Ruy de Carvalho não se mostra, porém, deslumbrado, com o palmarés profissional, nem com os prémios com que tem sido agraciado.
Questionado sobre algo que o tenha deslumbrado na vida, não hesita e responde: "Ouvir [a pianista] Maria João Pires em Atenas".
"Fiquei deslumbrado, caí de joelhos", recorda. Quando há uns anos entrou uma discoteca na capital grega, ouviu um concerto de Mozart ao piano e quando questionou a empregada sobre quem estava a tocar esta respondeu-lhe num sotaque arrastado: Maria João Pires.
"Deslumbrei-me completamente", "caí no chão", confidencia, sublinhando ter "um grande orgulho" por haver em Portugal "uma grande pianista como aquela senhora", lembrando também ser filho de uma pianista.
E quando confrontado sobre que outros grandes orgulhos tem, não hesita em responder, referindo-se aos que ama: "Tive muitos na minha vida toda".
"São muitos, estão à minha espera lá em cima", embora alguns permaneçam presentes e outros escondidos em "Ruy, uma história devida", conclui.
A peça com texto de Paulo Coelho e encenação de Paulo Sousa Costa revê o percurso do ator, as suas memórias, "todos os amigos", e regressará a cena ao Taguspark a 09 de março, onde permanecerá até dia 21 de maio.
Na quarta-feira, 1 de março, dia em que completa 96 anos, subirá ao palco do Coliseu do Porto Ageas, para mais uma récita há muito esgotada de "A ratoeira", de Agatha Christie, uma das peças que mais tempo se mantém em cena e que, em Portugal, tem encenação de Paulo Sousa Costa.
Política cultural é feita por gente sem gosto para artes ou que só se serve delas
O ator Ruy de Carvalho considera que a atual política cultural é marcada "por pessoas que não têm muito gosto para as artes, ou então só se servem delas".
"Quando precisam de nós [artistas] usam-nos, quando não precisam de nós mandam-nos embora [...], não nos ligam nenhuma", sublinhou Ruy de Carvalho, em entrevista à agência Lusa, abordando a política cultural em Portugal, nos dias de hoje.
Em véspera de comemorar 96 anos, Ruy de Carvalho é perentório: "Somos muito descartáveis, na Cultura, somos".
"Qual é o orçamento da Cultura em Portugal? [...] Tem alguma importância, enche alguma arca de tesouro de um país?", questiona-se o ator, ao mesmo tempo que sustenta: "A arca do tesouro de um país é a sua cultura, não é verdade?", numa crítica à política cultural dos governos portugueses, ao longo dos anos.
Por isso, Ruy Carvalho, o decano dos atores portugueses "e da Europa, senão mesmo do mundo", afirma: "Tenho a impressão de que eles [os políticos] não têm muito interesse nessa arca da Cultura". E vai mais longe, não hesitando mesmo em afirmar que após o 25 de Abril de 1974 "acabou tanta coisa".
"Quando havia censura havia tanta coisa", sublinha, numa alusão ao teatro radiofónico e televisivo que era transmitido na rádio e na televisão estatais, para de imediato acrescentar "agora, quando há liberdade, não há nada".
"Não há rádio, não há televisão, não sei... Que mau gosto", concluiu.
Ruy de Carvalho lembrou ainda o tempo em que os jornais publicavam rubricas ou folhetins de teatro ou contavam histórias, exemplificando com O Século e o Diário de Notícias. "Agora quase que não há jornais, os jornais foram todos acabando", observou.
As "pessoas estão a ler não sei onde. Talvez no campo de futebol. É onde talvez leiam os anúncios", ironizou.
O percurso
Nascido em Lisboa, em 01 de março de 1927, Ruy de Carvalho, o ator com mais prémios em Portugal, fez a estreia profissional em 1947, na Companhia Rey Colaço-Robles Monteiro, na peça "Rapazes de hoje", de Roger Ferdinand.
A estreia como amador acontecera antes, em 1942, no Grupo da Mocidade Portuguesa, com a peça "O Jogo para o Natal de Cristo", encenada por Francisco Ribeiro, conhecido como Ribeirinho.
Frequentou em seguida o Conservatório Nacional, passou ainda pelo Teatro-Estúdio do Salitre, para interpretar peças de Luiz Francisco Rebello, Rodrigo de Mello e de João Pedro de Andrade, antes da profissionalização.
O reconhecimento do trabalho no Nacional D. Maria, com a companhia residente, Rey Colaço-Robles Monteiro, levou-o de imediato a palcos como os do Teatro Avenida, Monumental, onde contracenou com Laura Alves, Teatro do Povo e ao Teatro Moderno de Lisboa.
Em 1963, assumiu a direção artística do Teatro Experimental do Porto, onde fez a única experiência como encenador, em "Terra Firme", de Miguel Torga.
Fez ainda parte de companhias como a do Teatro Maria Matos, onde se encontrava a companhia residente da RTP. Trabalhou com a Empresa de Vasco Morgado, com o Teatro do Arco da Velha, com a Companhia Rafael D"Oliveira - Artistas Associados, a Companhia de Comédia Assis Pacheco, a Companhia de Comédia Ligeira.
Em 1978, fez parte do relançamento do Teatro D. Maria II, onde permaneceu no elenco residente e do qual se despediu nos anos de 1999-2000, com encenações de "Rei Lear", de Shakespeare, "Frei Luís de Sousa", de Almeida Garrett, e "O poder da Górgone" e "Real Caçada ao Sol", ambas de Peter Shaffer.
Com o encenador Filipe La Feria, protagonizou os musicais "Passa por mim no Rossio" (1992) e "Maldita Cocaína"(1994), em que contracenou com Simone de Oliveira, e ainda "A Casa do Lago", de Ernest Thompson (2002), que liderou com Eunice Muñoz, ao lado de Pedro Lima, Maria de Lima e Luiz Zagalo.
Estreou-se na televisão em 1957, com o aparecimento da RTP, onde fez o "Monólogo do Vaqueiro", de Gil Vicente, cujo texto ainda hoje diz, com a mesma garra, na segunda peça que continua a representar em palcos portugueses, "Ruy, a história devida", um texto de Paulo Coelho com encenação de Paulo Sousa Costa, que apresenta no Auditório 1 do Tagupark e que leva em digressão pelo país.
Se protagonizara a primeira peça apresentada na televisão, em Portugal, participou também na primeira telenovela portuguesa, "Vila Faia" (1982), dirigida por Nuno Teixeira, igualmente para a RTP, dando vida à figura de Gonçalo Lorena Marques Vila.
Em Espanha, participou num concerto de encerramento da temporada do Teatro Monumental de Madrid, onde levou "Orfeu", com textos de Fernando Pessoa e música de Pablo Rivière, a convite do encenador Simon Suarez. Também foi "Fígaro", de José Ramon Encinar, no Teatro Lírico La Zarzuela, na capital espanhola.
O filme "Eram 200 irmãos" (1951), de Armando Vieira Pinto, marcou a sua estreia no cinema. Entrou também nos elencos de "Pássaros de Asas Cortadas" (1963), de Artur Ramos, "Domingo à Tarde" (1965), de António Macedo, "A Bicha de Sete Cabeças" (1978), igualmente de Macedo, "O Cerco" (1969), de António da Cunha Telles, "Cântico Final" (1974), de Manuel Guimarães, filmes que marcaram a emergência e afirmação do Cinema Novo português.
No ano de 1990, entrou em "O Processo do Rei", de João Mário Grilo, e "Non ou a Vã Glória de Mandar", de Manoel de Oliveira, com quem trabalhou ainda em "A Caixa" (1994) e em "O Quinto Império -- Ontem Como Hoje" (2004).
Ruy de Carvalho recebeu os prémios Imprensa de Teatro, em 1962, 1981, 1982 e 1986. Em 1962, recebeu o Prémio de Popularidade, bem como o Prémio da Crítica da antiga Revista Rádio e Televisão. Foi ainda distinguido com os Prémios da Crítica de Cinema em 1965, 1966 e 1971 e o Prémio da Revista Plateia, pelo desempenho em "Domingo à Tarde".
Teve ainda os prémios Mais, da Rádio Comercial, em 1991, os Setes de Ouro do jornal Sete, em 1981, 1986 e 1990, o Prémio Nova Gente em 1991 e o Prémio da Rádio Comercial para Melhor Ator em Declamação.
Prémio Bordado de Imprensa de Carreira, em 1995, Globo de Ouro de Carreira e de Personalidade, em 1998, além do Globo de Ouro para Melhor Ator do Ano, pelo desempenho de "Rei Lear", no Teatro Nacional D. Maria II, numa encenação do britânico Richard Cottrell, constam ainda do palmarés do ator.
Melhor Ator de ficção (2001), Medalha de Prata da Cidade da Covilhã, onde chegou a viver, Prémio Carreira do Festival de Almada 2009 são outros dos prémios do ator que, desde a estreia como amador, soma 81 anos de percurso artístico.
No ano passado, quando completou 95 anos, recebeu a Grã-Cruz da Ordem Militar de Sant"Iago da Espada, entregue pelo Presidente Marcelo Rebelo de Sousa. Em 2012, nos 70 anos de carreira, recebeu foi a vez da Grã-Cruz da Ordem do Infante D. Henrique, entregue por Cavaco Silva, que se juntou à Comenda e ao Grande Colar da Ordem Militar de Sant"Iago da Espada que recebeu, respetivamente, em fevereiro de 1998, do Presidente Jorge Sampaio, e em março de 2010, também de Cavaco Silva.
Em 1993, Mário Soares entregou-lhe o grau de comendador da Ordem do Infante, que juntou à Medalha de Mérito Cultural, atribuída pela Secretaria de Estado da Cultura, em 1990.
Pai de dois filhos, Paula de Carvalho e João de Carvalho, também ator, Ruy de Carvalho é ainda avó do também ator de Henrique de Carvalho, contracenando com ambos em "A ratoeira", uma das peças que se mantém em cena há mais tempo e que, em Portugal, tem encenação de Paulo Sousa Costa.
Fonte: Lusa | 28 de fevereiro de 2023