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Romance escrito há 90 anos satiriza preconceito racial e imagina mudança de cor da pele

“O que aconteceria se todos os negros passassem a ser brancos” é a premissa da obra de ficção especulativa de 1931 “Negro nunca mais”, de George S. Schuyler, que satiriza o preconceito racial e que chega hoje a Portugal.

A história imagina um processo médico capaz de transformar a pele negra em pele branca, através da eliminação da melanina, na América da década de 1930, conduzindo a uma revolução social.

Esta obra, definida como “pioneira” e “cáustica”, foi escrita há mais de 90 anos por um dos grandes autores do movimento Renascença de Harlem, e que só agora ganha uma edição portuguesa, com prefácio do escritor moçambicano Mia Couto, na coleção que o autor e bibliógrafo Alberto Manguel organiza para a Tinta-da-China.

O livro tem como subtítulo “Narrativa das singulares e maravilhosas descobertas da ciência no país da liberdade, entre 1933 e 1940 d.C.”, sendo os Estados Unidos da América o referido “país da liberdade”, onde a história se desenrola.

Numa época fortemente marcada pela segregação racial, Max Disher, um afro-americano que quer escapar às agruras do racismo, decide submeter-se a um processo que elimina a melanina e, assim, mudar de cor, convertendo-se num homem branco.

Torna-se a primeira pessoa a experimentar a máquina que transforma negros em brancos, passando então a ter acesso a territórios que antes lhe estavam vedados.

Para atingir todo o seu potencial, integra-se num grupo de homens brancos que defendem a supremacia do que consideram ser a "sua raça", e aos poucos as pessoas de pele escura vão desaparecendo.

Mas a vida destes 'neobrancos' não corre assim tão bem e, num contexto em que já não se distinguem os que têm origens africanas dos que têm origens caucasianas, dá-se uma revolução social que quer que tudo volte a ser como antes, investigando, para tal, a árvore genealógica de cada um.

No início da obra, o autor dedica-a a “todos os caucasianos na grande república capazes de identificar os seus antepassados desde há dez gerações e afirmar, com toda a confiança, que a sua árvore genealógica não tem uma única folha, um único galho, um único graveto ou um único ramo negro”.

O escritor moçambicano Mia Couto, que assina o prefácio do livro destaca que esta obra de George Schuyler “não foi recebida sem polémica nos Estados Unidos”.

“A sua imaginativa sátira era um ataque feroz aos mitos da supremacia branca. Mas o autor questionava também os equívocos da pureza racial e das identidades vistas como essências biológicas”.

Mesmo antes da publicação do romance, em 1931, Schuyler criticava a hipocrisia moral e o enriquecimento ilícito de alguns dos dirigentes do movimento conhecido como Harlem Renaissance ou do movimento chamado Nação do Islão, mais tarde defendido por Malcolm X.

A este propósito, Mia Couto relembra um episódio passado em 1964, em que, durante um debate radiofónico, George Schuyler e Malcolm X divergiram sobre vários assuntos, o maior dos quais, este romance.

Malcolm X era um declarado seguidor do político e empresário jamaicano Marcus Garvey, defensor do “retorno” dos negros americanos para o continente africano, que Schuyler desde sempre encarara como um demagogo que nunca tinha posto os pés em África e que usava a noção de negritude com o objetivo de acumular riqueza pessoal.

É já nesse contexto, que o escritor converteu Marcus Garvey numa personagem de “Negro nunca mais”, que dá pelo nome de Santop Licorice.

Mia Couto destaca que noventa anos depois da sua estreia, “Negro nunca mais” mantém uma “pungente atualidade”.

“Permanece intacta a relevância e suscetibilidade do preconceito racial como um assunto que não admite nem ambiguidade nem ligeireza. Uma coisa me parece certa: em muitas redes sociais de hoje George Schuyler seria ‘cancelado’ e a obra definitivamente censurada”, afirma Mia Couto.

Segundo o escritor moçambicano, a questão da cor continua ainda hoje a ser nos Estados Unidos da América, e em todo o mundo, “um assunto de mágoas e sangue, uma matéria que não consente isenção”, e, em certos círculos, é pensada e vivida como um destino “entre a maldição e a bendição”, um território onde “está interdita a ironia”.

Mia Couto afirma que o grande propósito deste texto não é tanto a cor, mas questionar a busca obsessiva de uma única identidade, e ressalta que um século depois da proposta de Marcus Garvey para que os negros americanos atravessassem um oceano para se encontrarem a si mesmos, “falta ainda realizar uma viagem bem mais urgente: vencer a distância que separa identidade racial e identidade nacional”.

“Noventa anos depois de ter sido lançado, este é um livro atualíssimo sobre os fantasmas que perseguem uma nação que não foi capaz de resolver o seu próprio passado colonial, racista e esclavagista”, acrescenta.

A Tinta-da-China publica hoje também, na coleção de poesia dirigida por Pedro Mexia, um livro de poesia que marca a estreia literária do português Duarte Scott.

“Quem nos disse que as emoções importantes não são as que sente o corpo sem que se intrometa o pensamento?”, é a questão colocada pelo autor de “Exposição”, um livro que “muito expõe e muito esconde, o pensamento intromete-se no corpo, e o inverso também”, escreve Pedro Mexia.

Scott cultiva o sentido da forma, afirma a centralidade dos sentidos e medita sobre o sentido das coisas, do engate ao luto, nestes poemas da “inteligência e da sensibilidade”, com versos limados, quase-rimas e alguma prosa.


Fonte: Lusa | 19 de janeiro de 2023

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