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Uma salva portuguesa que correu mundo

Depois de longa "peregrinação" pelo mundo, chegou ao Museu do Tesouro Real uma salva de prata manuelina adquirida pelo rei D. José. 

Desconhece-se o primeiro proprietário da salva, já que o brasão original foi apagado quando entrou na posse da Coroa. Pormenor do trabalhado da salva que agora pode ser vista no Museu do Tesouro Real. O antiquário e galerista Mário Roque © Paulo Spranger /Global Imagens

O antiquário Mário Roque, que a vendeu ao Estado, conta ao DN a sua rocambolesca saga.

É bem conhecida do público a saga da pérola "La Peregrina", desde que, no século XVI, foi retirada do fundo do mar das Caraíbas, até chegar, mais de 400 anos depois, ao decote de Elizabeth Taylor. Mas este percurso, cheio de peripécias, mistérios e lances dramáticos, não é caso único na "vida" de objetos que o valor real e simbólico tornou muito cobiçados por várias personalidades, em diferentes épocas. Entre nós, também a salva de prata manuelina que chegou em maio ao Museu do Tesouro Real, como parte de um conjunto de peças adquiridas pelo Estado português, tem uma história romanesca, que, em vários momentos, acompanha e ilustra várias passagens da própria História de Portugal.

Quem a conta ao DN é o antiquário e galerista Mário Roque, que a vendeu ao Ministério da Cultura: "Esta salva faz parte de um conjunto de 23 peças que o rei D. José adquiriu a seguir ao terramoto de Lisboa, em que se perdeu todo o recheio do Paço da Ribeira, que era de uma riqueza incalculável. Hoje sabemos que até havia cadeiras em prata." Posto em tal necessidade pela tragédia de 1 de novembro de 1755, o monarca adquiriu um conjunto de peças de aparato, que servissem nas cerimónias protocolares da Corte, mesmo que esta estivesse provisoriamente instalada naquilo a que o povo de Lisboa, com a sua habitual verve, designou por "Real Barraca".

Os capítulos seguintes da "vida" desta salva e das outras peças espelham as dificuldades da vida portuguesa ao longo do século XIX: Em 1808, foram levadas para o Rio de Janeiro pela família real, que assim escapava às invasões francesas. No regresso, Dom João VI trouxe 19 e 4 ficaram no Brasil com o príncipe D. Pedro. Esta é uma das que ficou, foi utilizada no batizado da princesa Maria da Glória, futura Dona Maria II. Regressaria à Europa com D. Pedro e foi depositada no Banco de Inglaterra para financiar a causa liberal contra as tropas de Dom Miguel. Dona Maria II resgatá-la-ia, tendo sido registada na manteria real (serviço que providenciava o que era considerado essencial nas deslocações da família real, em Portugal e no estrangeiro), em 1842. Ficou no Palácio das Necessidades durante cerca de 20 anos, altura em que passou para o palácio da Ajuda, onde o casal formado por D. Luís e Dona Maria Pia fixaria residência. Também por essa época, viria a Portugal Charles Thompson, fotógrafo ao serviço do Victoria and Albert Museum, de Londres, para registar peças importantes de ourivesaria da Coroa. Entre as escolhidas conta-se uma vez mais esta salva de rocambolesca sina.

Ainda no reinado de D. Luís a salva há-de ser emprestada para a exposição de Arte Ornamental Portuguesa, que tem lugar aqui em Lisboa, mas esta será também a sua última aparição pública como propriedade da Coroa. Depois há um hiato entre 1882 e 1891, quando aparece na posse de um particular, no caso o Marquês da Foz, conhecido banqueiro da época final da Monarquia. Como aí foi parar, não sabemos, embora Mário Roque avente algumas hipóteses: "Sabemos que os bens da Coroa eram inalienáveis, exceto quando tivessem algum defeito. Isso pode ter servido de argumento ao rei D. Carlos para a vender, numa situação de maior aperto". Como sabemos, estas não faltaram entre o último quartel do século XIX e o regicídio, em 1908.

Mas estamos ainda longe do fim da história: em 1892, o Marquês declara falência e a salva é leiloada na Christie"s, em Londres, sendo comprada por um tal Mr.Cooper, cuja identidade Mário Roque não conseguiu apurar. Daí, passou para as mãos de um antiquário francês, que chegou a ter loja e muito bons contactos em Lisboa, e dos herdeiros deste passou para um colecionador espanhol, a quem, finalmente, Mário Roque a comprou em 2019. "Apresentei-a uma única vez na Cordoaria Nacional e o Estado português rapidamente me fez uma proposta, ainda através da anterior ministra da Cultura, Graça Fonseca. Recebi outras mas dei prioridade ao Estado. Trata-se de uma peça renascentista que representa bem a excelência da ourivesaria portuguesa da época manuelina. Não sabemos quem foi o seu primeiro proprietário, já que o brasão original foi apagado quando entrou na posse da Coroa. Mas foi, com certeza, uma família nobre de alguma importância."

Este destino final (ou, pelo menos, assim se espera) não podia agradar mais a Mário Roque. "Acredito que qualquer antiquário deve ter a preocupação de promover a arte portuguesa no mundo e fazer tudo ao seu alcance para enriquecer os museus. Neste momento, o Ministério da Cultura tem uma política que acho adequada: quando não tem possibilidades de comprar, não dificulta a sua venda a um museu estrangeiro, já que assim se está a promover também o conhecimento do nosso património e cultura no exterior." E destaca o exemplo do Museu de Singapura que já tem um importante núcleo de arte portuguesa da época dos Descobrimentos.

Esta motivação preenche muitas das suas viagens de prospeção mundo fora. Muitas vezes dá por si a investir em peças que, à partida, sabe que não serão fáceis de vender. E dá como exemplo o móvel paramentário indo-português que encontrou em Goa e que pertenceu ao antigo Mosteiro da Ordem de São Agostinho, encerrado quando da extinção das ordens religiosas em Portugal na primeira metade do século XIX. "Tem quatro metros de comprimento, já ninguém tem espaço para uma coisa destas", admite. Ou o caso do tocheiro de altar, cujos pedaços de talha foi encontrando dispersos em Bombaim, até que conseguiu reconstituir a base. "Falta-lhe a coluna mas consegue-se perceber que pertence a um tocheiro indo-português", diz.

Recentemente vendeu ao Museu de Xangai peças de faiança portuguesa do século XVII. "Têm um valor histórico único. Trata-se da primeira faiança europeia com motivos chineses. Os franceses e os ingleses têm a mania de que foram eles que inventaram a chinoiserie, mas não é verdade. Fomos nós. Outra novidade que introduzimos nesta época foi a faiança monocromática e a qualidade era de tal maneira que exportávamos para as grandes casas reais. Por fim, a faiança de Delft só apareceu porque ficava muito caro à Europa vir abastecer-se a Portugal, que ficava longe, tornando o transporte demasiado dispendioso."

Esta missão que Mário Roque assumiu nasce da constatação, repetida ao longo dos anos, de que a Europa continental desconhece Portugal: "Os antiquários ingleses conhecem a nossa arte e património, mas isso não acontece em França, Itália ou Alemanha, por exemplo. Já não estamos como em 1975, quando eu cheguei à Bélgica para estudar Medicina, e me perguntavam onde ficava Portugal, mas ainda há muito desconhecimento." O antiquário pôde constatá-lo in loco, não há 30 ou 20 anos, mas há 6, em 2016, quando participou, pela primeira vez, na Bienal de Paris: "Ninguém sabia que tínhamos uma arte antiga com tal importância histórica e artística. É, por isso, que sempre que vejo peças no estrangeiro que possam ser importantes para a nossa cultura, para enriquecer o nosso património, procuro adquiri-las. O meu patriotismo passa por aí." É, por isso, com gosto que, de quando em vez, recebe a visita de visitantes estrangeiros que o procuram na Rua de São Bento, onde tem a loja e a galeria São Roque, depois de terem visitado stands seus em certames internacionais.

Mário Roque considera ainda que museus, historiadores de arte e antiquários devem trabalhar em equipa. "Pelo menos até ao século XX, os verdadeiros experts em História da Arte eram os antiquários. Creio que ainda podemos dar um contributo importante em tarefas como a deteção de falsificações, até pela experiência sensorial que temos."

Na sua loja, Mário Roque promove ainda a componente educativa da sua missão, ao receber anualmente estagiários provenientes dos mestrados em Mercados de Arte e Museologia e da licenciatura em História da Arte. "Creio que podemos aprender muito uns com os outros."


por Maria João Martins in Diário de Notícias | 8 de janeiro de 2023
Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Diário de Notícias

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