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A beleza suja da intimidade segundo Ferrante

A nova série baseada num romance da autora napolitana é a prova de que a sua escrita convive bem com o ecrã. 


A Vida Mentirosa dos Adultos
 já está disponível na Netflix.

Agora que o 
streaming e o cinema descobriram a "febre Ferrante", já quase não há distância entre as adaptações. Recorde-se que a primeira de todas, o filme L"Amore Molesto, assinado por Mario Martone, remonta a 1995. Timidamente, uma década depois surgiu outro, Os Dias do Abandono, de Roberto Faenza. Mas é desde 2018, com a série L"Amica Geniale, que a escrita da famosa autora italiana tem vindo a aderir ao ecrã como material fiável de sentimentos tão universais quanto específicos e despudorados. Foi isso que nos deu a excelente longa-metragem de estreia de Maggie Gyllenhaal, A Filha Perdida, e é também isso que persiste na nova série A Vida Mentirosa dos Adultos, de Edoardo de Angelis, com o contributo da própria Ferrante no argumento adaptado do seu romance homónimo.

De Angelis usa alguns floreios estilísticos, sobretudo musicais, para imprimir um certo rasgo e fluidez juvenis nos seis episódios desta série Netflix, ambientada na Nápoles dos anos 1990. Mas o que lhe confere substância e uma qualidade reconhecível é mesmo o drama segundo Ferrante, aquela corrente subterrânea de desassossego feminino que, através de uma personagem, entra na consciência do leitor/espectador. Neste caso é a adolescente Giovanna (Giordana Marengo, notável debutante) que domina o ecrã, um rosto anguloso, embrulhado em pensamentos e tédio, prestes a pintar-se de outras cores. A sua inquietação desponta quando ouve o pai dizer à mãe, baixinho, que a acha parecida com uma misteriosa tia chamada Vittoria. Ou seja, que ela, filha de um glamoroso casal de esquerda, está a ficar feia como uma mulher bairrista sem tento na língua... A fealdade é, de resto, o mecanismo de Ferrante. Giovana, com uma sensibilidade cada vez mais moldada pela leitura de romances e menos pela escola, quer conhecer essa tia banida das suas vidas, e ao fazê-lo não poderá voltar atrás.

Vittoria entra então em cena como uma das mais berrantes criações da escritora, maravilhosamente assegurada pela interpretação de Valeria Golino. Alguém de modos grosseiros e ternos, com o cigarro numa mão e a faca na outra, que traz o espírito da aventura à existência inerte de Giovanna, com lições de especial valor sobre a beleza suja da intimidade. Já as mentiras dos adultos que o título assinala são menos revelações bombásticas do que uma enraizada falta de honestidade. Como escreve Ferrante numa das suas colunas no The Guardian, em 2018 (publicadas por cá pela Relógio D"Água, com o título A Invenção Ocasional): "Aprendi que os maus sentimentos são inevitáveis e que, se quisermos ser pessoas honestas para connosco e para com os outros, é necessário impormo-nos confessá-los."

É precisamente esse processo de confissão, e as mudanças concretas e íntimas por ele despoletadas, que faz mover esta história de amadurecimento, dentro e fora da cabeça de uma rapariga que ganhou novas lentes sobre os adultos. Uma jovem que, ao superar as dores da metamorfose interior, assume o tipo de atitude secamente trágica dos livros. "Quero ser indigna, quero acabar mal", ouve-se no último episódio. A passagem à idade adulta é uma coisa linda e bruta.


por Inês N. Lourenço in Diário de Notícias | 9 de janeiro de 2023
Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Diário de Notícias
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