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Com hologramas ou no metaverso, como o digital já reinventou o "ao vivo"

Um concerto transmitido na plataforma de jogos Fortnite, com os artistas representados pelos seus avatares, é um verdadeiro espetáculo live? Os fãs que assistiram acham que sim. E o que dizer dos ABBA, que agora, veteranos, em vez de subirem ao palco usam fac-símiles seus de quando eram jovens? A tecnologia já mudou o tradicional conceito de evento em palco assistido no local. 
E praticamente nem demos por isso.

© Vítor Higgs / DN

Não há nada como a experiência de um concerto ao vivo para apreciar o som verdadeiro e o talento dos artistas. Isto era o que se dizia no "muito antigamente". Hoje em dia...

Doze milhões de pessoas (12 000 000) reuniram-se no mesmo espaço do jogo Fortnite, não para se andarem a "matar" uns aos outros, que é o objetivo do jogo daquele mundo virtual, mas para assistirem ao concerto de Travis Scott. Estávamos em abril de 2020 e foi o primeiro evento do género naquela plataforma online. Na realidade, o que os utilizadores viram foi o avatar do rapper - um boneco estilo banda desenhada -, por vezes com o tamanho de um prédio de vários andares, a mover-se - acreditam eles - reproduzindo os gestos do artista. De uma forma "tão realista "que ele se teleportava a bel-prazer entre a multidão. Pelos fones, iam ouvindo os sons (supostamente) do streaming em tempo real do que ia sendo dito ao microfone pelo performer. Os fãs, claro está, adoraram!

Em pleno século XXI, esta experiência é classificada como um espetáculo "ao vivo". Foram 10 minutos, mas valeram a pena, para quem se juntou à festa, por uma vida... virtual.

Dado o êxito da experiência, os produtores de Fortnite convidaram Ariana Grande a participar no seu mundo virtual, usando o seu avatar para vários "concertos ao vivo", que duraram vários dias. Estava a artista de facto a participar, em tempo real, nesses eventos prolongados no tempo enquanto os fãs assistiam? (Provavelmente não...). Estava Scott, que fez um só espetáculo? (Provavelmente sim...). Faz alguma diferença?

Não é de hoje, de todo, não ser absolutamente real aquilo que ouvimos nos grandes espetáculos "ao vivo". Mesmo deixando de parte as questões da amplificação e reprodução pelos altifalantes no local (a não ser que estejamos a assistir a um concerto totalmente acústico, do estilo orquestra na Gulbenkian), certo é que pelo menos na última década muitos artistas pop (e não só) utilizam auto-tune live nas suas performances. Ariana Grande, diga-se, é das que garantem que não o faz...

O software literalmente "afina" a voz do artista em tempo real quando este falha uma nota. Desenvolvido em 1997, depressa chegou a uma rapidez de processamento em que consegue fazer o seu trabalho fora do estúdio, em concertos no palco.

Este é apenas mais um exemplo de como, mesmo nos espetáculos tradicionais, aquilo que ouvimos "ao vivo" é, na realidade, algo já muito processado - pela amplificação e pelos altifalantes, com ou sem auto-tune. Entretanto, e quase sem darmos por isso, a geração seguinte já chegou.

Meta, palco de artistas

Para já quase duas gerações habituadas a ouvir música essencialmente através de fones em streamings com uma qualidade que, objetivamente, é inferior ao velho CD criado há mais de 40 anos, e que, ao assistir a um acontecimento impactante, sacam do telemóvel para o gravar - e veem-no pelo pequeno ecrã do aparelho, em lugar de o experimentarem em pleno pelos seus sentidos -, é quase segunda natureza não fazerem distinção entre a realidade e o digital.

Dito de outra forma: o mundo "real", o mundo dos vídeos virais do TikTok ou das stories do Instagram, ou os mundos "virtuais" do Fortnite ou do Meta (do Facebook), por exemplo, são apenas janelas diferentes da vida da pessoa que, a dada altura, até se podem confundir, se não se tiver cuidado.

Atentos ao êxito das experiências na plataforma Fortnite, o universo virtual do Facebook, o Meta Horizon, começou a agendar concertos com artistas famosos. Bruno Mars, The Black Keys, Cardi B, Blake Shelton, Ed Sheeran, Michael Bublé, Clean Bandit e Lizzo são nomes que a Warner Music prometeu apresentar no espaço de concertos virtuais do metaverso propriedade de Mark Zuckerberg.

E se David Guetta este ano já atuou na plataforma Roblox, Post Malone foi mesmo pioneiro no Meta Horizon, ao dar um concerto virtual, em fevereiro de 2021 nesta plataforma.

Outras das características (vantagens para os artistas) deste tipo de espetáculos é que, ao contrário do que acontece com os "verdadeiros" concertos ao vivo, a fonte de rendimento não se extingue com o cair do pano.

De cada vez que o(s) utilizador(es) da plataforma virtual o reveem, o valor faturado aumenta. E não apenas no canal original: o concerto de dez minutos de Travis Scott foi já visto por mais de 120 milhões de pessoas no YouTube e no Twitch. Só para se ter uma ideia da rentabilidade: estimativas da consultora Nielsen dão conta de que, só no patrocínio da Nike ao rapper, tendo em conta a visibilidade que a performance deu à marca, ele terá recebido 2,5 milhões de euros devido ao aumento de vendas de produtos.

Sendo esta uma nova fonte de rentabilidade, em especial junto das audiências jovens, é assim praticamente inevitável que este tipo de eventos se torne comum nos próximos meses e que cada vez mais artistas venham a agendar tempo nos vários mundos virtuais disponíveis no ciberespaço. Se há uma coisa que os artistas sabem que têm de fazer é estar onde o seu público gosta de estar. Foi assim na rádio, depois na MTV, agora sê-lo-á nas várias realidades virtuais.

Ressuscitar ou rejuvenescer

Se ver uns bonecos digitais a reproduzirem (acreditemos que) em tempo real o que os artistas estão a fazer a centenas ou milhares de quilómetros já poderá ser, para muitos, uma definição um pouco lata do que é um concerto "ao vivo", o que dizer então dos espetáculos com artistas representados em palco por hologramas, alguns até já mortos?

A tecnologia não é nova, pelo contrário, tem décadas e, pelo menos desde 2006, que esporadicamente tem sido utilizada para trazer artistas já falecidos de volta aos palcos. Entre eles, contam-se pelo menos: Tupac, Michael Jackson, Roy Orbison, Frank Zappa, Elvis Presley, Amy Winehouse, Glenn Gould, Maria Callas, Buddy Holly e Whitney Houston.

O problema desta tecnologia, apesar de ter evoluído nos últimos anos, é que há qualquer coisa no resultado final que ainda não é verdadeiramente convincente. O palco tem de ficar muito escuro para o efeito funcionar e a zona de projeção da imagem tridimensional é sempre muito reduzida.

Daí que a maior experiência do género que mistura tecnologia digital 3D e música ao vivo não utilize hologramas, mas ecrãs de milhões de píxeis distribuídos estrategicamente de forma a criar a ilusão de que as imagens têm profundidade. Na série de concertos ABBA Voyage, que começou em maio e, para já, tem espetáculos garantidos até novembro do próximo ano, o grupo pop sueco organizou o seu regresso ao palco de forma virtual, só que no mundo real.

Apesar de todos os elementos estarem vivos, Agnetha Fältskog, Björn Ulvaeus, Benny Andersson e Anni-Frid Lyngstad não quiseram voltar aos palcos com a idade que têm hoje (estão todos com mais de 70 anos). Pelo que criaram fac-símiles digitais de quando eram jovens - os seus "ABBAtars", como lhes chamaram - para cantarem em seu lugar.

E não se ficaram por aqui. Foi ainda construído todo um recinto especial, no Queen Elizabeth Olympic Park, em Londres, só para os concertos, a ABBA Arena.

Os ABBAtars movem-se de forma realista em palco, apesar de, como referido, não serem hologramas, utilizando tecnologia dos génios do cinema Industrial Light & Magic, os mesmos por trás de filmes como Star Wars, por exemplo. As expressões faciais foram captadas dos rostos dos membros originais do grupo, enquanto os movimentos do corpo foram baseados nos que eles faziam há 50 anos, mas reproduzidos por bailarinos profissionais bem mais novos...

O resultado é um espetáculo de hora e meia, com música tocada ao vivo por uma dezena de instrumentistas, que acompanham as vozes gravadas dos ABBA.

Com esta experiência se demonstra que, pelo menos para bandas de enorme sucesso, é possível esbater a fronteira entre o real e o digital para dar um novo fôlego a sons que, por uma ou outra razão, ganharam estatuto de eternidade na cultura popular. Vamos abrir apostas de qual será o artista que se segue? (Olá Pink Floyd!)

Para ver só nas salas... de estar

Quando a televisão a cores se tornou comum nos Estados Unidos, os estúdios de cinema, em pânico com a possibilidade de que as pessoas deixassem de pagar bilhete para ir às salas do grande ecrã ver os seus filmes, passaram a adotar o formato Cinemascope - aquele muito estreitinho, que até nos televisores atuais tem de levar barras pretas largas -, de forma a que se perdesse grande parte da experiência nos pequenos aparelhos de televisão da época.

Isto era num tempo em que as receitas de bilheteira ainda valiam a grande maioria dos rendimentos de quem fazia os filmes. Hoje, o mercado é muito diferente.

O streaming está a fazer ao cinema o que fez há uma década à música: tudo acontece online. Praticamente todos os grandes blockbusters ou estreiam quase em simultâneo em sala e num serviço digital ou a distância temporal só faz mesmo diferença para aqueles fãs que têm de estar sempre em cima do acontecimento.

Do ponto de vista de rentabilidade, para quem produz e/ou distribui os filmes, o cinema em sala é muitas vezes mais uma questão de prestígio ou de bónus financeiro, uma vez que eles próprios são proprietários dos seus serviços de distribuição digital.

E com a tecnologia dos televisores de grande formato e altas resoluções a tornar-se mais presente na casa das famílias, o argumento para ir ver em "ecrã grande" vai perdendo relevância, a cada ano que passa. Não fora a crise trazida pela inflação, aliás, estaríamos a ver o mercado a "empurrar-nos" para comprar aparelhos de 8K, apesar de (ainda) praticamente não haver conteúdos com essa definição.

Não quer dizer que todos os cinemas fechem. Retomando a comparação com a música, tal como nem o vinil ou o CD acabaram, o mesmo ocorrerá com as salas, no caso dos filmes. Possivelmente veremos até algumas a apostar em reposições de obras clássicas (leia-se, baratas) que vale a pena rever em projeção num ambiente escuro. Mas serão em menor número.

Isto, até ao dia em que as tecnologias de que falámos antes - os grandes ecrãs digitais ou os hologramas, a realidade virtual, etc. - se tornem tão comuns que a distinção entre uma ida ao cinema ou assistir a um concerto ao vivo deixe de fazer sentido.

Afinal, se o metaverso de Zuckerberg pegar, todas as salas de cinema passarão a ser lá, e praticamente todos os concertos "ao vivo" também. E com a evolução dos jogos de vídeo, um dia chegaremos ao ponto em que o próprio cinema será interativo, esbatendo ainda a diferença entre a performance teatral (sendo, neste caso, nós também atores) e o espetáculo cinematográfico. Tudo serão espaços em mundos virtuais, nos quais se poderá experimentar as criações de artistas antigos e contemporâneos.

Quem viveu meio século viu já os dígitos substituírem a película fotográfica e a fita que gravava magneticamente a onda sonora. Hoje, este mesmo digital abriu o caminho para reescrever o dogma de que nada substitui a experiência de "estar lá" para experimentar a verdadeira realidade. E, desta forma, dar mais um passo para conquistar o sonho de fazer com que ela, a realidade, seja simplesmente aquilo que cada um de nós queira.

 


por Ricardo Simões Ferreira, in Diário de Notícias | 29 de dezembro de 2022
Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Diário de Notícias

 

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