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Viagem pela mente de uma pessoa idosa, a homenagem de Lídia Jorge à mãe

"Misericórdia" é o nome do novo livro. A escritora acedeu a um pedido da mãe, uma das vítimas portuguesas de Covid-19, para escrever uma obra com esse título. O livro retrata a “variedade humana” que habita um lar de idosos.
 


Lídia Jorge diz que um escritor escreve ficção para não se mostrar, mas no livro que está a lançar passa-se o contrário. Há um pouco de si e muito sobre a sua mãe, que nos últimos dias de vida lhe pediu que escrevesse um livro com o título “Misericórdia”. 

Editada pela Dom Quixote, a obra tem por base a vida da mãe da autora e dos seus últimos dias de vida num lar de idosos, antes de ter sido uma das vítimas portuguesas de Covid-19. Em entrevista ao Ensaio Geral da Renascença, Lídia Jorge fala deste livro como um “dever”. 

“Quis reconstituir e testemunhar uma vida plena de alguém que foi uma resistente perante a vida”, diz a escritora. “As pessoas envelhecem, mas mantêm bem alta toda a vitalidade mental, a energia e alegria de viver” lembra Lídia Jorge que quis sentiu uma missão, ao “testemunhar este caso” da sua mãe.

Contudo, a escrita deste livro não é biográfica. Mistura ficção e realidade. Para a autora há poucos livros que abordem a questão das pessoas idosas que vivem em lares.

“É muito difícil viajar pela mente de uma pessoa idosa. É difícil! Nós somos atraídos para escrever sobre a juventude e a plenitude, o resto é difícil. Então, achei que este pedido que a minha mãe me fez era um pretexto para poder reconstituir uma personagem que nunca abdicou de trabalhar, compreender, estudar à sua maneira, de estar aberta ao mundo e querer construir coisas até ao fim da vida”, conta Lídia Jorge.

Mas a escrita deste livro passou por várias etapas. A autora que fala do “gosto” da sua arte, admite que teve “dificuldade” no princípio. A missão que a mãe lhe confiou tinha “uma forma difusa”, explica.

Testemunhar toda a variedade humana dentro de um lar

“Ela estava num lar da Santa Casa da Misericórdia. Eu tive dificuldade em perceber o que ela queria, se queria no sentido crítico, ou no sentido de agradecimento. E era no sentido de agradecimento. Ela dizia que era preciso compreender, quando as pessoas já não podiam movimentar-se como antes, era bom que o convívio”.

A vivência do lar surge em todo o seu esplendor neste livro, com o bom e o mau. Lídia Jorge explica que a mãe “falava muito da luta entre os cuidadores que eram atenciosos, pareciam ter nascido para cuidar das pessoas, e outros que apareciam porque não tinham outro sítio onde trabalhar, portanto não estavam virados para aí. Exerciam uma espécie de vingança, um exercício de crueldade”.

Lídia Jorge que diz não ter escrito “um livro para denunciar nada” ou “um livro para dizer que maltrataram ou que não é assim que se faz”, admite não saber “como se faz”. “Para mim é ao mesmo tempo o espanto, a maravilha e a pena tudo misturado diante de situações que são muitas vezes pujantes, por vezes violentas ou amorosas. É como se ali estivesse contido o mundo inteiro. A variedade humana toda fica dentro de uma casa”, num lar.

A autora que ficou impedida de acompanhar de perto a sua mãe nos últimos dias de vida, devido à pandemia de Covid-19 lembra que a última vez que viu a mãe foi a “8 de março”, antes do lar fechar portas ao exterior.

“A princípio não sabia como proceder, porque era tocar em alguma coisa muito pessoal, onde eu própria teria de estar envolvida de qualquer modo, e senti que iria escrever alguma coisa que rompia com o pudor, que em geral quem escreve ficção tem”, conta Lídia Jorge sobre os dilemas de escrita que enfrentou.

“Escrevemos ficção para não nos mostrarmos. Inventamos. Mas aqui, era impossível não mostrar. Depois acabei por perceber que havia uma saída. Era escrever um livro sobre um "tu" e não sobre um "eu", era dar-lhe a palavra, deixar que fosse o pensamento dela a fluir, ainda que fosse ficcionado”, refere.

Com apenas a quarta classe, a mãe retratada no livro “Misericórdia”, era uma leitora e, tal como a mãe de Lídia Jorge, tinha uma filha escritora a quem dava conselhos sobre a escrita. Lídia recorda as palavras da mãe: “Uma das coisas que ela achava é que eu escrevia muitas páginas sem diálogos. Perguntava sempre, "Mas tem muitos travessões? Tem dois pontos, parágrafos? Estás a escrever sem parágrafos?" Ela era uma leitora. Gostava do diálogo, do teatro dentro dos livros”, recorda.

Além de dedicar o livro à sua mãe, Lídia Jorge dedica-o também a outro amigo que foi vítima de Covid-19, o escritor Luís Sepulveda.

Ataque de formigas em lar ou como a escrita coincidiu com a realidade

Em “Misericórdia” o protagonismo é dado a Dona Alberti, uma idosa que vive agarrada à sua memória. Ela habita o mesmo lar, de Boliqueime, onde surgiram as notícias que chocaram o país, com idosos a serem atacados por formigas.

As imagens surpreenderam Lídia Jorge, já que a autora fala desses ataques de forma quase premonitória no livro. Em entrevista ao Ensaio Geral da Renascença, a escritora confessa ter ficado “incomodada com a coincidência”.

No entanto, o ataque de formigas foi a forma metafórica que Lídia Jorge usou como ferramenta literária para falar da pandemia e de um ataque de um micro-organismo, como um vírus e de como ele pode alterar a vida das pessoas.

“Para não estar a descrever a pandemia, porque queria fugir dessa realidade e queria que fosse descrita de uma forma fantasmagórica, achei que podia antecipar uma invasão de formigas em que os comportamentos humanos pudessem ser descritos”, conta a autora.

“Criei essas páginas. São cinco capítulos. Mas nunca imaginando que depois, fosse acontecer alguma coisa que na minha perspetiva foi absolutamente injusta, dramática, e triste, o que aconteceu aquela senhora”, lamenta Lídia Jorge.

A autora faz, contudo, questão de lembrar que as formigas são um animal muito presente na sua escrita, já em outros livros. “A invasão de formigas é algo que vem desde "O dia dos Prodígios". A formiga é uma espécie de elemento intermediário entre nós, as bactérias, os vírus e a outra bicharada que é invisível”.

Segundo as palavras da escritora, “com as formigas podemos fazer um exercício de como é impossível os seres humanos defenderem-se de seres de muito menor dimensão. Isso preocupa-me desde sempre. Como é algo muito comum no Algarve, por causa do calor, acontece que sempre me tem aparecido a história das formigas nos meus livros. Inclusive no “Vento Assobiando nas Gruas”, a avó morre coberta de formigas. É algo que está no meu imaginário. O que eu fiz nesse livro, foi alguma coisa que não é real”, justifica.

“Ela queria acreditar em Deus”

“Misericórdia” é também um livro que relata a história de alguém que faz um caminho de fé. Segundo Lídia Jorge nisso procurou “ser fiel à figura real da mãe”. A autora conta que a sua mãe “queria acreditar em Deus”.

“No final, ela acredita numa força, numa totalidade. Há uma passagem, um encontro com as viúvas em que ela se mostra primeiro muito renitente, nem sequer quer ouvir rezar o terço, e depois há outra - e é para mim a página que mais gosto desse livro - quando ela pede para ouvir rezar o terço. Faz a associação com os sons belos da natureza”, explica Lídia Jorge.

Segundo a autora, a mãe que está no livro diz a certa altura “eu acredito em Deus!”. A personagem, tal como a sua mãe, fez um percurso de fé. “Tem dúvidas, mas ajuda os outros a acreditarem. A forma de acreditar noutra coisa, na transcendência, é acreditar absolutamente, o mais possível na imanência”, explica.


por Maria João Costa, Renascença | 28 de outubro de 2022
Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Rádio Renascença 

 

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