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A pintora interpelada pela condição humana

"Anjos e Lobos - Diálogos da Humanidade" é a nova exposição da pintora Graça Morais, que pode ser visitada na Galeria São Roque, em Lisboa. Ao todo, são 72 trabalhos em que a atenção ao Outro é uma constante.

© Paulo Alexandrino/Global Imagens

Foi uma menina coroada de urzes, que rabiscava nas fragas e saltava nos lameiros. Na aldeia do Vieiro, não muito longe de Vila Flôr, a pequena Graça Morais brincava em liberdade, apenas com a advertência de que não saísse do perímetro da aldeia, já que da serra desciam os lobos acicatados pela fome. Hoje, tantos anos depois, num mundo tão diferente (ou talvez nem tanto assim), a menina que se tornou um nome grande da pintura portuguesa sabe que a mítica ferocidade destes animais nasce apenas da lei da sobrevivência, enquanto a dos homens, bem mais imprevisível, alimenta-se da ganância e da sede de poder, que são outros nomes para a pura maldade.

É dessa consciência, e também da atenção da artista à condição humana em tempos tão ásperos, que nasceu a exposição "Anjos e Lobos - Diálogos da Humanidade", que inaugurou na passada 3.ª feira, na Galeria São Roque, em Lisboa, reunindo 72 obras, boa parte delas ainda inéditas. Depois de uma década sem expor comercialmente em Lisboa, Graça Morais regressa, assim, à capital, com um conjunto de trabalhos que, embora atravesse várias épocas da sua carreira, são ligadas por um fio condutor, que a própria define como "a aflição pelos que fogem do extermínio, das guerras, da fome e das enormes injustiças sociais." A primeira obra incluída nesta exposição data de 1978, quando a artista era ainda uma jovem bolseira da Fundação Gulbenkian, em Paris: "Incluímo-la porque o Mário Roque [o galerista] fez uma visita ao meu atelier e gostou muito dela. Creio que faz sentido porque, de certo modo, hoje olho para ela e sinto que marca o princípio do meu percurso, senão com reconhecimento público, mas como descoberta de mim mesma e do que poderia fazer." No fio oposto do tempo estão as obras mais recentes, já datadas deste ano, como a série de Mashas pintadas como homenagem às mulheres ucranianas.

Mas fazendo-se de vários tempos, "Anjos e Lobos" é também uma exposição de várias paisagens humanas. Graça Morais é a primeira a admitir esta dualidade: "Até a uma certa altura, a minha pintura só tinha a ver com a minha terra natal. Era deliberado e começou com um período em que, numa espécie de residência artística, explorei uma linguagem muito própria dessa terra, ao mesmo tempo que contava a minha própria história."

Aqui está, por exemplo, a série sobre batatas greladas ou ramos de azeitona secos, que considera as suas naturezas vivas: "Desde criança quando entrava numa loja e via as batatas greladas sentia que estava no meio de bichos. Sentia medo, sim, mas também fascínio. Hoje penso que são de uma beleza enorme, embora, nesse estado, deixem de ser úteis para a alimentação. Olho para aquelas batatas como olho para a cara de uma mulher muito idosa, que tem as suas rugas, mas também é bela apesar da sociedade persistir no culto da juventude e da magreza, ignorando o belíssimo efeito do tempo a que nada nem ninguém está imune." Graça revela também o amor que consagra às oliveiras centenárias que restam em Trás-os-Montes (e que também evoca na exposição): "Quando se planta uma oliveira, ela é ainda muito fininha. Mas quando é centenária tem uma beleza enorme, com uma casca muito grossa, marcada por nódulos e buracos." Por causa deste assumido fascínio, anda a tentar criar uma associação para a defesa das oliveiras centenárias da região: "A verdade é que estão a ser dizimadas para alimentar fogueiras, outras são arrancadas para plantar vinhas ou para darem lugar a oliveiras novas, raquíticas. Uma árvore centenária é maravilhosa e continua a dar azeitonas, em menor quantidade, mas dá."

A relação da artista com Trás-os-Montes é uterina, mas faz-se também de angústia: "As marcas da interioridade são muito fortes, as pessoas nas aldeias nem sempre têm um acesso fácil à internet e às televisões, sentem-se muito isoladas. Nos anos 90, pintei uma série que se chamava As Marias e era dedicada às mulheres da minha aldeia, entre as quais estava a minha mãe, embora ela se chamasse Alda e não Maria. Restam muito poucas. Causa-me uma grande angústia ir à aldeia e não encontrar a minha mãe e as minhas tias, aquelas Marias todas. Ando pela rua e não se encontra vivalma - nem sequer cães ou gatos. De vez em quando, lá se vê uma casa habitada por um jovem casal, mas há muitos problemas, como a falta de escolas."

Graça Morais jamais foi uma artista encerrada sobre o seu mundo. A atualidade sempre a interpelou. Recorda a propósito a residência artística que fez em Cabo Verde, no final da década de 1980, a convite do embaixador português José Fernandes Fafe, onde, ao visitar certas aldeias mais isoladas, as pessoas pediam para que a Embaixada de Portugal lhes mandasse jornais em português, mesmo com atraso de semanas ou meses: "Esta memória ficou-me para sempre. Eu sou, e sempre fui, uma grande leitora de jornais, até porque preciso desse contacto táctil com o papel. O que se lê no computador, para mim ainda é uma abstração." Por causa dessa relação tão presente na sua vida, Graça fez uma exposição no Centro de Arte Contemporânea de que tem o seu nome, em Bragança ("Inquietações", pode ser visitada até de dezembro), onde os jornais têm especial protagonismo - os jornais e o modo como eles fazem parte das suas memórias de infância. "Quando eu era criança, as mulheres da minha aldeia faziam as grandes limpezas da Páscoa, a mais importante das quais era na cozinha, que durante o Inverno ficara toda escura por causa do fumeiro. A minha maior alegria era forrar a cozinha com os jornais que chegavam lá a casa que eram sobretudo os católicos ou os boletins da Casa do Douro, de que o meu avô era associado."  Graça recorda também o lado amargo desta memória infantil: "Lembro-me de perceber que muitas mulheres colavam os jornais de "cabeça" para baixo porque a maior parte delas não sabia ler. E esse é um Portugal que felizmente já não existe."

Ao tacto soma-se também o gosto pela leitura e pelo acompanhar dos movimentos do mundo, mesmo que estes sejam inquietantes, por vezes, terríveis. "Há 11 anos comecei a olhar para o mundo com outros olhos e pintei uma série dedicada às primaveras árabes. É a série As Sombras do Medo, que também está aqui exposta na Galeria de São Roque." Mais tarde, pinta e desenha sobre a tragédia dos migrantes que chegam sem nada (às vezes sem a própria vida) às praias do Mediterrâneo: "Felizmente, em Portugal, não vivemos os dramas desta gente tão desesperada, mas o que eu sinto é que há uma ligação entre todos os seres humanos no sofrimento e nas vivências do dia-a-dia. Na tragédia, os seres humanos parecem-se todos, estejam eles no Irão, em Trás-os-Montes ou em Lisboa, sobretudo as mulheres e as crianças, que são sempre o elo mais fraco da sociedade."


No catálogo, José Manuel dos Santos sublinha este aspeto comprometido do trabalho da pintora: "É assim que a obra de Graça Morais é uma obra dramática, que dá às figuras humanas, que nas suas pinturas e desenhos são dramatis personae, a companhia das grandes figuras do Medo, da Fuga, da Guerra, da desgraça, da humilhação, da injustiça, do sofrimento e da salvação." Graça diz acreditar que a arte pode salvar - a quem a perceciona e ao artista, já que, assim, encontra "uma forma de agir sobre a angústia que fatalmente nos toma quando lemos, ou vemos, as notícias." Com uma educação católica, afirma não ser praticante, mas mantém a fé. "Com o Papa Francisco, de quem gosto muito, posso dizer que me reconciliei com a Igreja. Conseguiu transmitir uma imagem humana e simples, de quem, por vezes, se zanga como toda a gente. Não é um beato nem se comporta como tal." A pintora admite que, por vezes, lhe acontece entrar sozinha numa Igreja, mas também pode rezar no segredo do seu atelier. Por um mundo mais justo e iluminado, antes de qualquer outro pedido. Mas o que de melhor lhe terão dito ao longo de uma carreira cheia de sucesso de público e crítica (está representada em algumas das melhores coleções públicas e privadas, como Gulbenkian ou Serralves, e já recebeu várias condecorações nacionais e estrangeiras) veio da boca de uma visitante do Centro de Arte Graça Morais que lhe disse contemplar os seus quadros como quem está em oração. "Fiquei muito emocionada porque acredito que um dos requisitos da arte é essa capacidade de convocar nas pessoas o sentido do mistério e do intangível."


por Maria João Martins in Diário de Notícias, 3 de outubro de 2022
Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Diário de Notícias
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