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A felicidade segundo Hollywood

Um livro de cinema que vai de Cary Grant a Thoreau. Buscas da Felicidade, de Stanley Cavell, analisa sete clássicos de Hollywood pela lente da filosofia e à luz de um género: a comédia de recasamento.

Katharine Hepburn e Cary Grant em As Duas Feras (1938). Uma das brilhantes comédias de recasamento contempladas por Stanley Cavell em Buscas da Felicidade.

Felicidade e Hollywood. Muito se escreveu e continua a escrever em torno da relação de ambas. Entre as mentes que se dedicaram ao tema, Stanley Cavell (1926-2018), filósofo americano que se destacou pela defesa dos estudos de cinema no meio académico, será das vozes mais interessantes e originais naquilo que se pode designar por "conversações sobre filmes" - ele acreditava que os filmes seriam sempre bons tópicos de conversa, porque, mais do que os livros ou as peças de teatro, continuariam a constituir-se como eventos. A prova e a reflexão sobre isso mesmo estão agora disponíveis numa edição portuguesa de 
Pursuits of Happiness - The Hollywood Comedy of Remarriage (Buscas da Felicidade - A Comédia de Recasamento em Hollywood), com chancela da Imprensa da Universidade de Lisboa. Um livro que marca encontro com a lógica das "conversações" fílmicas de Cavell, não enquanto leitura destinada a académicos, mas enquanto objeto aberto a quem simplesmente gosta de cinema.

Ao longo de sete filmes - As Três Noites de Eva (1941), de Preston Sturges, Uma Noite Aconteceu (1934), de Frank Capra, As Duas Feras (1938) e O Grande Escândalo (1940), de Howard Hawks, Casamento Escandaloso (1940) e A Costela de Adão (1949), de George Cukor, e Com a Verdade Me Enganas (1937), de Leo McCarey - o autor propõe um conjunto de interpretações pessoais, ou leituras fílmicas, mais ou menos providas de informalidade, que organizam o pensamento filosófico à volta do género identificado como comédia de recasamento. Não se trata de fazer aqui a história desse género, mas de observar os seus jogos teóricos sob os holofotes da filosofia (Emerson, Thoreau, etc.) e dentro de conceitos como a comédia romântica de Shakespeare ou a agenda interna da cultura/nação americana, que alimenta a fantasia, o romance, a utopia.

Tudo isto pode ainda parecer matéria de densidade académica, tendo em conta um certo preconceito que afasta a filosofia do cinema e vice-versa (Cavell empenhou-se em desfazê-lo). Mas o que, de facto, prevalece na deliciosa leitura de Buscas da Felicidade é a compreensão das comédias em análise como exemplos máximos da projeção do sucesso de uma sociedade (a americana) no grande ecrã. Com especial enfoque na "criação da mulher", uma forma de feminismo ou de guerra dos sexos que surge a par da criação do género cinematográfico em causa: "Os nossos filmes podem ser entendidos como parábolas de uma fase do desenvolvimento da consciência, uma fase na qual a luta se faz pela reciprocidade ou pela igualdade de consciência entre uma mulher e um homem, como um estudo das condições nas quais esta luta pelo reconhecimento (nos termos de Hegel) ou esta exigência de reconhecimento (nos meus termos) é uma luta pela liberdade mútua."

Barbara Stanwyck, Claudette Colbert, Rosalind Russell, Irene Dunne, e sobretudo Katharine Hepburn, são as atrizes que povoam estes universos dentro do género estipulado; com a última a ditar uma muito própria atração da câmara. Já nos atores, Cary Grant (particularmente fotogénico) é o elemento dominante, com uma distinção (comum a Clark Gable ou a James Stewart) que parece ser, segundo Cavell, "um equivalente visual àquilo que Tocqueville e Mill querem dizer quando falam da distinção da aristocracia, da liberdade que para si mesma projeta". Entre umas e outros, o ideal é acompanhar a leitura de Buscas da Felicidade do (re)encontro com estes atores e comédias da Hollywood clássica.




por Inês N. Lourenço in Diário de Notícias, 28 de setembro de 2022
Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Diário de Notícias 
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