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Para Godard a guerra acabou

Dos tempos heróicos da Nova Vaga francesa até à sábia integração de técnicas e linguagens da televisão, Jean-Luc Godard é um dos nomes maiores da história moderna do cinema - faleceu em Rolle, na Suíça, aos 91 anos de idade.

Godard filmado por Godard em Atenção à Direita (1987).


O cineasta que em 2014 deu ao seu filme em 3D o título Adeus à Linguagem disse adeus à vida aos 91 anos: Jean-Luc Godard faleceu no dia 13 de setembro em sua casa, na vila suíça de Rolle, nas margens do Lago Léman.

Nascido em Paris, a 30 de dezembro de 1930, o autor de títulos lendários da Nova Vaga francesa como O Acossado (1959), O Desprezo (1963) ou Pedro, o Louco (1965) optou por um processo de morte assistida, prática cuja possibilidade está enquadrada pelo sistema de leis da Suíça. Segundo o jornal Libération, a notícia foi divulgada pela cineasta Anne-Marie Miéville, sua mulher, e outros familiares de Godard, acrescentando que "faleceu pacificamente em sua casa, rodeado pelos seus próximos." Um amigo da família declarou que esta "era a sua decisão e era importante para ele que se soubesse."

Em 2014, numa emissão da RTS (Rádio Televisão Suíça), a propósito da passagem de Adeus à Linguagem na competição do Festival de Cannes, Godard fora questionado sobre o legado que seria o seu "para além da morte", considerando que a questão não se poderia colocar apenas em função da vontade de "morrer o mais tarde possível". O moderador da conversa contrapôs que, por certo, ele "não tinha pressa de morrer", tendo obtido esta resposta: "Não me sinto ansioso por continuar a qualquer preço. Se estiver demasiado doente, não tenho qualquer desejo de andar empurrado num carrinho... De maneira nenhuma."

Nova Vaga & etc.
Talvez se possa dizer que, não apenas Godard, mas os autores da geração que com ele definiram os caminhos e valores da Nova Vaga - François Truffaut, Eric Rohmer, Jacques Rivette, etc. - nasceram para o cinema num labirinto paradoxal, pontuado pelas sombras históricas da morte e pelo desejo radical de novos modos de viver o cinema, com o cinema e para o cinema.

A morte significava, neste caso, antes de tudo o mais, a trágica herança da Segunda Guerra Mundial e dos crimes do Holocausto. Não por acaso, a questão da representação desses crimes vai pontuando, de forma direta ou implícita, a obra de Godard, acabando por adquirir uma importância decisiva na última parte desse monumental filme/video que é História(s) do Cinema (1989-1999). Numa emissão radiofónica da France Culture, em 2016, em diálogo com o escritor e cineasta Noël Simsolo, Godard sublinhava mesmo aquilo que considerava como uma escassez de filmes capazes de lidar com tal herança, citando as exceções de Roma, Cidade Aberta (1945), de Roberto Rossellini, e Noite e Nevoeiro (1956), de Alain Resnais.

Para os protagonistas da Nova Vaga, a energia vital provinha da tenacidade com que defendiam, nomeadamente na revista Cahiers du Cinéma, os grandes criadores do cinema clássico, por vezes os mais menosprezados (Howard Hawks, Alfred Hitchcock, etc.), apostando na possibilidade de uma genuína revolução de linguagens. No caso de Godard, esse foi um processo vivido de modo cada vez mais dramático - porque mais severo em relação aos valores da "sociedade de consumo" -, desembocando num violento ceticismo social. Veja-se e reveja-se o apocalipse conjugal e familiar de Fim de Semana, ou o retrato, entre didatismo e burlesco, dos estudantes maoístas em La Chinoise.

O desencanto visceral destes títulos, ambos de 1967, valeram-lhes o rótulo de objetos "premonitórios" de Maio de 68. Será um exagero simbólico - Godard sempre escolheu o presente contra qualquer pretensão "profética" -, mas é um facto que se seguiu uma "fase militante" em que as convulsões políticas do mundo (das heranças marxistas à Guerra do Vietname) encontraram ecos vários em títulos como One + One (1968), tendo como ponto de partida os Rolling Stones e as gravações do álbum Beggars Banquet, ou Le Gai Savoir (1969), inspirado no Émile, de Rousseau.

Essa digressão "militante" gerou títulos pedagógicos como Lotte in Italia (1969) ou Vladimir et Rosa (1971), mas foi vivida com crescente desilusão, já que várias estações de televisão que financiaram os filmes não os quiseram difundir. Efeito prático: um regresso crítico à grande indústria com Tudo Vai Bem (1972). Dominado pela presença de duas estrelas - Yves Montand e Jane Fonda -, o filme tem um lugar decisivo nas transformações temáticas e estéticas de Godard, até porque seria a partir daí que, por novo e fascinante paradoxo, ele começa a usar as novíssimas câmaras de video: Número Dois (1975), sobre a desagregação do espaço familiar e o poder crescente da televisão, foi a "bandeira" desse processo.

Televisão, meu amor
Salve-se quem Puder (1980) emerge, assim, como um momento decisivo, não apenas na evolução do seu realizador, mas para toda a história do cinema nas décadas finais do século XX. Aí encontramos o gosto de integrar formas de manipulação técnica das imagens que, ironicamente ou não, provêm do espaço televisivo, ao mesmo tempo que uma metódica contemplação da decomposição das relações humanas, porventura ansiando por algum resgate de natureza metafísica.

Paixão (1982), Nome: Carmen (1983), Eu Vos Saúdo, Maria (1985) ou Atenção à Direita (1987) são alguns dos capítulos emblemáticos dessa fase, com Godard, em alguns deles, em tom de calculada ironia, a assumir também funções de ator secundário. O desenlace de tudo isso tem o título, naturalmente ambíguo, de Nouvelle Vague (1990), numa espécie de espelho de um romantismo para sempre perdido, ainda que dolorosamente "reinventado" através do par formado por Alain Delon e Domiziana Giordano (a atriz italiana que Andrei Tarkovski revelara, em 1983, no seu Nostalgia).

Os trabalhos finais de Godard - Filme Socialismo (2010), o já citado Adeus à Linguagem e O Livro de Imagem (2018) - exprimem o fulgor de um artista liberto de todas as barreiras de "estilo" ou "género", continuando a aplicar com alegria algumas alternativas técnicas ligadas ao espaço televisivo. Godard protagonizou, assim, uma verdadeira guerra de linguagens que faz dele um dos poucos a revolucionar a história da própria televisão. Resta saber o que podemos, ou sabemos, fazer com a sua herança.


por João Lopes in Diário de Notícias, 14 de setembro de 2022
Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Diário de Notícias 

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