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Em 3500 a.C, as antas eram erguidas com engenho, paciência e esforço. Em 2017, bastou uma retroescavadora para destruir

Em 2017, a Anta do Zambujal, no Alentejo, foi destruída por se confundir as pedras que a compunham com um amontoado de pedregulhos. O sítio é conhecido como testemunho megalítico desde 1979. Uma equipa de arqueólogos está a estudá-lo.


Num afloramento de granito na Herdade do Zambujal, em Selmes, freguesia da Vidigueira, e num período temporal que os arqueólogos estimam possa ter sido entre 3500 e 3000 anos a.C., uma comunidade do Neolítico final ergueu uma anta para enterrar os seus mortos. A estrutura sobreviveu até aos dias de hoje mas há cinco anos não resistiu à ignorância humana. Mesmo assim, o que restou ainda surpreende os arqueólogos que têm andado a estudar o local. Começando pelo básico: como foram erguidas?

A anta foi utilizada entre o calcolítico e o período romano até que, em 2017, durante uma ação de limpeza de pedras (despedrega), quatro esteios (colunas de granito) que suportavam a laje que cobria a entrada da câmara megalítica e antecâmara e o início do corredor de cobertura da anta foram quebrados pela base e outros arrancados. As colunas de granito foram levadas para um aterro de pedras localizado a cerca de 500 metros da anta, a qual ficou totalmente destruída.

A observação do que resta do sítio arqueológico, depois de arrasado por uma retroescavadora, coloca uma surpreendente interrogação: como foi possível perfurar uma rocha tão dura quando só existiam - no período temporal em que a estrutura foi instalada — ferramentas em pedra ou osso? Mas as fundações que consolidaram os esteios durante milénios comprovam que, de alguma forma, foram abertas.

O arqueólogo Miguel Serra, que participa com outros arqueólogos da cooperativa O Legado da Terra na recolha de informação científica, ensaia ao PÚBLICO uma resposta: a anta foi construída com “engenho, paciência, esforço e dedicação”, evitando especular sobre o modus operandi que esteve na base da intervenção.

Nelson Almeida, investigador no Centro de Arqueologia da Universidade de Lisboa (Uniarq), acrescenta que “mesmo em cenários de destruição, é possível recolher informação”, como a que tem sido compilada nos vestígios que ficaram da Anta do Zambujal. As escavações que decorrem desde fevereiro, e estão na sua fase final de execução, recuperaram, para além de peças de cerâmica que permaneceram intactas, pontas de seta e uma alabarda em sílex. Também foram identificados materiais romanos “e até cartuchos de caça”, acrescenta Miguel Serra.

Destruição total

Numa outra intervenção que a Direcção Regional de Cultura do Alentejo ordenou em 2019 para interpretar o grau de afetação do monumento megalítico, os arqueólogos Jorge Vilhena e Nuno Inácio efetuaram uma sondagem que abrangeu a área da câmara megalítica e dos esteios, antecâmara, corredor e mamoa da anta e concluíram que a estrutura fora sujeita à “destruição total”.

Ficaram apenas elementos “remanescentes” da arquitetura megalítica original e vários recipientes de cerâmica associados à utilização funerária deste monumento. Na zona de átrio ou entrada do corredor de acesso ao interior da anta, os arqueólogos identificaram uma estrutura que pode corresponder a uma sepultura secundária posterior.

Não foram encontrados níveis conservados da “estrutura pétrea” de base e da cobertura de terra da mamoa, que se verificou ter sido “erradicada” com a terraplenagem feita para tapar a cova aberta pelo arranque dos esteios megalíticos.

“O local teve reocupação em época romana, como demonstram cerâmicas de construção e uma mó rotativa encontrados em escavação e em torno do lugar da anta”, descreve o relatório elaborado sobre a sondagem concluída em 2019, consultado pelo PÚBLICO.

O sítio já era conhecido e foi identificado “pelo menos desde 1979” numa pequena elevação de terreno. A anta estava “praticamente completa e bem à vista” e a laje que a cobria encontrava-se “caída dentro da câmara”, explicou ao PÚBLICO Nelson Almeida.

Um dos responsáveis da empresa Argumentchoise, Lda, proprietária do terreno onde se localizava a anta, diz “lamentar” o que aconteceu no decorrer de despedrega que “não abrangia” o espaço da estrutura megalítica, assim como a área com dois hectares onde permanecem algumas azinheiras, a maioria com mais de um século. “Foi desconhecimento aliado à falta de informação” do funcionário que entendeu tirar as “pedras” da colina onde permanecia a anta do Zambujal. “Não houve ordens dadas nesse sentido”, garante a empresa, que se “prontificou de imediato” a assumir os encargos com os trabalhos que a Cooperativa O Legado da Terra está prestes a concluir na recolha de informação sobre um dos poucos elementos megalíticos do género que existem no Baixo Alentejo.

Neste momento ainda não é possível antever o que vai ser feito no espaço ocupado pela anta, mas foi dada a garantia da sua “preservação”, adiantou o representante da empresa, admitindo que possa ser encarada a sua divulgação na vertente turística.

Os trabalhos realizados vão ser destacados num trabalho académico, compromete-se Nelson Almeida, admitindo que o resultado da investigação que está a ser realizada ao monumento megalítico possa vir a ser transposto para um livro a editar.

Proteger património megalítico

A destruição da Anta do Zambujal ocorreu num contexto em que se verificou um inusitado crescimento das culturas intensivas, com particular incidência no distrito de Beja. O património arqueológico foi afetado na Herdade da Torre de S. Brissos e no sítio da Salvada, no concelho de Beja, no monte de S. Bartolomeu, Alvito, no monte da Chaminé, Ferreira do Alentejo, e no monte da Contenda, Arronches, entre outros no distrito de Évora.

A dimensão e o número das ocorrências alertaram Direcção Regional de Cultura do Alentejo para a apresentação de uma candidatura, em Fevereiro de 2022, para classificação com carácter de “urgência” do megalitismo alentejano. Ana Paula Amendoeira, diretora regional, disse que a decisão “surge perante as várias destruições de património arqueológico resultantes do modelo de agricultura superintensiva que tem vindo a ser implementado no Alentejo, numa situação dramática e de crescente e sistemático desaparecimento da sua paisagem cultural”.

O conjunto a classificar é “inédito na sua dimensão” e corresponde à área de maior concentração de monumentos megalíticos da Península Ibérica e “uma das mais relevantes” à escala europeia, refere Paula Amendoeira. É formado por exemplares espalhados um pouco por todo o Alentejo, com destaque para os concelhos de Évora (283), Montemor-o-Novo (234), Mora (179), Reguengos de Monsaraz (171) e Arraiolos (137), os concelhos que têm mais concentração de estruturas megalíticas, de acordo com o documento publicado no Diário da República.

A classificação dos monumentos “é importante, mas não é suficiente para garantir a sua proteção”, conclui Miguel Serra.


por Carlos Dias in Público | 21 de junho de 2022
Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Público

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