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Frescos de Júlio Pomar no Batalha resistiram à tinta da censura da PIDE e foram agora postos em liberdade
Chegou a pensar-se que estariam irremediavelmente perdidos. Mas os murais censurados pela PIDE que o artista plástico pintou há 75 anos no cinema portuense foram descobertos com a ajuda de químicos.
Chegou a pensar-se que estariam perdidos para sempre. Primeiro foi a censura que quis escondê-los. Depois, o tempo encarregou-se de os ocultar durante décadas — ainda que a memória tivesse tratado de preservar aquela que é uma das obras mais emblemáticas de um nome maior do panorama artístico português. Mas eis que, ao fim de 75 anos, os frescos que Júlio Pomar (1926–2018) gravou nos anos 1940 no Batalha, que a PIDE decidiu esconder, ressurgiram depois de eliminadas sete camadas de tinta das paredes do cinema, que está a meses de reabrir as portas ao público. Os murais foram finalmente descobertos e, desta vez, é seguro dizer que estão num estado que permite a sua recuperação.
Sempre ali estiveram no edifício que completa esta semana 75 anos de existência, mas poucos foram os que tiveram oportunidade para vê-los. E os que lhes puseram a vista em cima não tiveram muito tempo para o fazer. O artista iniciou a obra em 1946, quando tinha apenas 20 anos, mas no ano seguinte foi preso por ordem da polícia política do governo de António de Oliveira Salazar, quando o cinema portuense foi inaugurado, ainda com as pinturas por acabar. Só no final de 1947, quando foi libertado, é que teve oportunidade de a terminar. Porém, no ano seguinte, a PIDE mandou cobrir os painéis com tinta - o maior, com cerca de cem metros, ocupa parte significativa do foyer principal do edifício e o mais pequeno foi pintado numa parede junto ao balcão do cinema, no andar superior.
O ato censório pouco teve a ver com a natureza deste trabalho em particular – dois murais alusivos à festa de São João. Foi a oposição do artista plástico ao regime de Salazar que lhe valeu este ato de vingança. Desde 1948, mais ninguém voltou a ver os dois frescos. As sucessivas camadas de tinta aplicadas ao longo dos anos foram-se acumulando, dando origem a dúvidas quanto à possibilidade de serem recuperados.
Em 2006, a Associação de Comerciantes do Porto, quando tentou reativar o cinema, pediu uma verificação do estado dos murais. Porém, de acordo com o relatório da altura, sobravam apenas os desenhos prévios das pinturas. Os frescos, acreditava-se na altura, teriam sido eliminados, eventualmente, após as paredes terem sido raspadas. Concluía-se então que o restauro seria impossível.
Manifesto antifascista
Já em 2017, quando a câmara alugou o edifício a privados por 25 anos por 3 milhões de euros, Rui Moreira chegou a anunciar na Assembleia Municipal do Porto que Júlio Pomar estaria disponível para refazer os painéis. Mas, no ano seguinte, quando o arquiteto responsável pelo projeto de reabilitação, Alexandre Alves Costa, adiantou não existir forma de recuperar o trabalho original, também afirmou que essa nunca seria uma hipótese para Júlio Pomar, que preferia que se encontrasse antes uma maneira de se mostrar que os painéis foram destruídos por razões políticas, transformando-se aquelas paredes numa espécie de manifesto antifascista.
Agora, já não será necessário pensar em planos secundários. Ainda com o espaço em obras, nos cem metros de parede do corredor da entrada da Praça da Batalha já é possível ver os frescos que a censura e o tempo esconderam. Qual vitória contra um regime que não resistiu à vontade do povo, esse manifesto antifascista será o mural original que o artista plástico pintou.
Guilherme Blanc, diretor artístico do futuro Batalha - Centro de Cinema, que abrirá portas no início de dezembro, sublinha o valor “patrimonial, artístico, simbólico e político” desta descoberta realizada nas “últimas semanas”. Só aconteceu, afirma, porque foi contratada uma equipa especializada para levar a cabo trabalhos de sondagem que, recorrendo apenas a químicos, conseguiu desvendar os dois frescos depois de se eliminarem sete camadas de tinta. “Foi surpreendente a facilidade em como rapidamente, através desta sondagem, se detetou a presença do painel na sua quase integralidade”, afirma.
Nesta fase ainda decorrem os trabalhos de sondagem, para depois se poder passar para os trabalhos de restauro, que não terão implicações nos novos prazos definidos para a reabertura do espaço. Depois de vários avanços e recuos, agora é seguro dizer que vai acontecer: “Face ao gesto censório, havia um grande ceticismo relativamente à possibilidade de sobrevivência da obra. Acreditava-se que a obra não tinha sobrevivido ao tempo e à censura. Mas veio a revelar-se o contrário”.
por e in Público | 3 de junho de 2022
Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Público